• Nenhum resultado encontrado

RELAÇÃO ENTRE HISTÓRIA E FICÇÃO

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 32-44)

O romance Santa Evita, por se tratar de obra literária e não de documento histórico, sofre, portanto, análise literária na presente dissertação. Como se observa no referido romance a relação entre história e ficção, faz-se necessário refletir sobre tal fato. Não se tem como propósito aqui levantar exaustivamente a relação entre estes dois gêneros – histórico e ficcional, mas situar o presente trabalho num contexto mais amplo.8

Ficção poética de um lado e informação histórica por outro: a fenda entre estes dois polos tem inquietado teóricos, críticos e novelistas (CAMPANELLA, 2003, p. 13). Observando-se a história da literatura, verifica-se a presença da relação entre história e literatura desde a Antiguidade, já na Ilíada, cuja autoria se atribui a Homero (século IX ou VIII a. C.). Nesta, pode- se perceber o entrecruzamento entre literatura, mito e história sem que se distinga, por parte do

8

Estudos minuciosos sobre a temática podem ser encontrados em Introdução ao romance histórico, de Alcmeno Bastos (2007) e América: história e ficção, de André Trouche (2006).

poeta-narrador, o que era de procedência histórica ou de procedência mítica (BASTOS, 2007, p.15).

Aristóteles, em sua Poética (1966, p. 78), estabelece limites entre a função do historiador e a do poeta: enquanto o historiador narra o que aconteceu, o poeta narra o que poderia ter acontecido:

Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postas em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa), – diferem, sim, em que um diz as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder (Cap. IX).

A ênfase aristotélica estava na verossimilhança, não na métrica, e privilegiava o poeta por aproximar-se do universal, enquanto o historiador trataria do particular: “Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular” (ARISTÓTELES, 1966, p. 78).

Segundo Alcmeno Bastos (2007, p. 19-20), vários escritores e/ou teóricos da literatura retomam a distinção aristotélica entre o poeta e o historiador, dentre eles os irmãos Edmond e Jules Goncourt (“A história é um romance que foi, o romance é a história que poderia ter sido”) e Balzac (“A história é ou deveria ser o que foi, ao passo que o romance deve ser o mundo melhor”). Aristóteles estabeleceu os limites, no entanto só no século XIX, com a definição da história como ciência ensejou-se uma separação, mas ainda assim, nem sempre foi um divórcio muito claro ou de longa duração (ESTEVES; MILTON, 2007, p. 11). Embora possam parecer contraditórias, a ficção e a história têm apresentado uma trajetória comum ao longo do tempo.

Dentre os vários gêneros ficcionais, o romance revela-se bastante frutífero na tematização da história. Segundo Henry James (1995, p. 21), a única razão para a existência de um romance é a de que ele tenta de fato representar a vida. Tal consideração de James permite recordar que, como a história trata da vida humana, da presença humana no mundo, tentando registrar os feitos dos seres humanos ao longo de sua existência no tempo e no espaço, aproxima-se do romance. No entanto, uma vez mais evocando James (1995, p. 26), afirma-se a liberdade que o romancista tem na representação da vida, que o distingue do historiador:

um romance, em sua definição mais ampla, é uma impressão direta e pessoal da vida; isso, para começar, constitui seu valor, que é maior ou menor de acordo com a intensidade da impressão. Mas não haverá intensidade alguma, e, portanto, valor algum se não houver liberdade para sentir e dizer.

Alimentando a constante recriação do gênero romance dá-se, no século XIX, o surgimento da forma narrativa do romance histórico, que privilegia a tematização dos eventos históricos, sem que o romance perca seu caráter de obra de ficção. Entretanto, antes mesmo de se configurar tal gênero na Europa, na América já se mesclavam história e ficção desde a chegada dos europeus. O conjunto de relatos que narravam a empresa colonizadora, chamados de crônicas de conquista, apresenta dados históricos unidos à fantasia mitológica, com a qual se tentava explicar a novidade deste outro mundo que os colonizadores europeus tinham diante dos seus olhos. Assim, “a história da América começou a ser narrada nos moldes narrativos e de pensamento da Idade Média, que legou um tom visionário e um esquema providencialista a todo projeto narrativo posterior” (GONZÁLES ECHEVARRÍA, 1984, p. 9).9

Ao tentar narrar a história da América, os cronistas lançaram mão, com frequência, de recursos imaginativos: “Os cantos do edifício histórico que os cronistas quiseram construir estavam unidos pela argamassa mágica da imaginação e da fantasia. Sem que o propusessem, estes historiadores lançaram o cimento do que viria a ser a grande narrativa americana dos nossos dias” (GONZÁLES ECHEVARRÍA, 1984, p. 10).10 Devido a esta forma de narrar, na qual informações históricas eram colocadas lado a lado com imaginação mitológica, este conjunto de relatos foi visto num momento como literatura, em outro como história.

Segundo Enrique Pupo-Walker (1984, p. 89), as crônicas das Índias, nossas letras coloniais, representaram uma maneira sui generis de pensar e sentir a história, constituindo, em muitos sentidos, nova plenitude textual no discurso histórico do mundo ocidental. A presença alucinante do mundo americano transborda os moldes estreitos e envelhecidos que havia canonizado a historiografia medieval.

Com isto, torna-se perceptível que, no relato da conquista, o mundo novo é narrado de forma distinta da que se havia estabelecido na Europa, que há séculos já distinguia a epopeia das crônicas históricas. Para narrar o desconhecido, a novidade americana, utilizaram-se fórmulas que seriam mais comuns aos relatos épicos, nos quais o mito se apresentava fortemente.

9

Tradução nossa. No original: “la historia de América se comenzó a narrar en los moldes narrativos y de pensamento de la Edad Media, que legó un tono visionario y un esquema providencialista a todo proyecto narrativo posterior”. 10

Tradução nossa. No original: “Los cantos del edifício histórico que los cronistas quisieron construir estaban unidos

por la argamassa mágica de la imaginación y la fantasia. Sin proponérselo, estos historiadores echaron los cimentos

Isto nos remete ao pensamento desenvolvido por Ricardo Rojas em Eurindia (1924)11 que culmina em sua proposição estética: a síntese cultural das culturas europeia (o exótico) e indiana (como indiana, Rojas considera tudo o que é próprio da América). Relacionando a estética eurindiana ao já exposto aqui, seria possível afirmar que a maneira de se relatar a história estaria no campo do exótico que aqui, na América, foi plasmado a outra forma narrativa, ao relato ficcional, à maneira indiana, fazendo da história e da ficção uma síntese. Ou seja, as narrativas de extração histórica12 seriam a síntese entre a história e a ficção.

Afirma Pupo-Walker (1984, p. 98), que aqueles esforços primários de intelecção criativa podem ser vistos hoje como fundamentos da escritura americana inaugurada no século XVI. Esta escritura se considera como um espaço que transcende as modalidades convencionalizadas da palavra escrita para dar lugar à inserção ideológica e às variantes inumeráveis que agregam a reflexão e a criatividade. Segundo Manuel Durán (1984, p. 289), as madrinhas que presidem o nascimento da América são a imaginação, a fantasia, a lenda e a literatura; e isto tem consequências para o posterior desenvolvimento das letras, em particular da narrativa.

Verifica-se, portanto, nas crônicas da conquista, uma origem para a narrativa de extração histórica hispano-americana, cujo vigor pode ser atestado atualmente. Sendo assim, o que se tem hoje como estética literária que une história e ficção é um retorno a um modelo preexistente. Tal retorno já havia sido empreendido no século XIX, no qual alguns autores, ao dirigirem seus olhares à história, recriaram-na, acrescentando-lhe ingredientes procedentes de zonas literárias, legendárias, imaginativas, como por exemplo, Facundo, de Sarmiento. Ora, depreende-se daí que sempre que a América está diante de uma nova configuração, as fronteiras entre as narrativas se desmancham. Antes, no século XVI, a narrativa inaugurava o Novo Mundo, a invenção da América, propriamente dita, com a conquista. No século XIX, reinventa-se a América, agora no ideal republicano pós-independência. É preciso, portanto, narrar sua origem. Para tal, recorre-se à ficção, que se situa na bifurcação entre história e mito, segundo o narrador de Santa Evita

(MARTÍNEZ, 1995, p. 365).

Uma questão se coloca, portanto, sobre por que na América Latina, sobretudo na América Hispânica, as narrativas de extração histórica ganharam fôlego renovado no século XX e

11

Rojas propõe uma estética da nacionalidade argentina calcada na síntese dos elementos europeus, que chamou de exóticos, e indianos (americanos).

12

adentraram vigorosamente o século XXI. Embora não se pretenda aqui responder esta questão,13 seria possível pensar que não se trata de um mero gosto local, ou uma coincidência. Logo, um possível encaminhamento para encontrar uma resposta passaria pelo fenômeno da busca da identidade empreendida pela própria América, uma tentativa de pensar-se a partir de si mesma, ou reinventar-se uma vez mais.

Analisando algumas obras escritas entre 1969 e 1999, na Argentina e em outros países hispano-americanos, e considerando-as como romances históricos, Hebe Campanella (2003) aponta as causas para a renovação do referido gênero neste período. Segundo a autora, embora alguns críticos, na América Latina, pensem que tal renovação foi provocada por reação à literatura dos anos 70 – autorreferencial, formalista, preocupada com os problemas da linguagem, do símbolo e do signo –, outros confessam a necessidade íntima de conhecer o passado mais prolixamente que através da história oficial; ou atribuem a este novo olhar dos romances históricos uma intenção de fugir do presente angustiante, cruel, incontrolável. Desta forma, o romancista apelaria, muitas vezes, principalmente nas obras que apresentam paródias burlescas, para o grotesco deformante, evidenciando propósitos de dessacralizar os relatos oficializados, desenrijecer os heróis nacionais. A crítica social, portanto, disfarçada na retórica literária, apontaria não só para o passado, mas também para o presente (p. 29).

Sobre o romance histórico latino-americano, afirma Carlos Fuentes:

Os escritores da América ibérica nos propõem uma contribuição própria da literatura. A linguagem é a raiz da esperança. Trair a linguagem é a sombra mais longa de nossa existência. A utopia americana, criação da linguagem, foi viver na mina e na fazenda, e dali se mudou para a vila miséria, para a povoação penúria e para a cidade perdida. Com ela, da selva à choça, da mina aos barracos fluiu uma multidão de linguagens, europeias, indígenas, negras, mulatas, mamelucas. O romance latino-americano nos pede que expandamos estas linguagens, todas elas, libertando-as do costume, do esquecimento ou do silêncio, transformando-as em metáforas inclusivas, dinâmicas, que admitam todas as nossas formas verbais: impuras, barrocas, conflituosas, sincréticas, policulturais (2007, p. 23).

De maneira poética, tais afirmações de Fuentes possibilitam recordar o caráter inovador do Novo Mundo, não só em termos geográficos, das novas terras, ou populacionais, as novas gentes, mas literários também, no que se refere à novidade das formas de narrativa inauguradas na América.

13

Segundo Antonio Esteves e Heloisa Milton (2007, p. 10), faltam pesquisas que permitam determinar com precisão essa atual tendência à recriação do passado.

Como já observado, a tematização de eventos e personagens históricas tem grande aproveitamento na produção literária latino-americana no século XX, levando Seymour Menton (1993) a identificar esta ênfase a partir de 1979 e a propor o conceito de novo romance histórico latino-americano. Como características desse romance, Menton aponta: a subordinação da reprodução mimética de determinado período histórico, em graus distintos, à apresentação de algumas ideias filosóficas; a distorção consciente da história mediante omissões, exageros e anacronismos; a ficcionalização de personagens históricos; a metaficção ou os comentários do narrador sobre o processo de criação; a intertextualidade; e a presença de conceitos bakthinianos – dialogismo, carnavalização, paródia e heteroglosia (1993, p. 42-44).

Seymour Menton estabelece também um marco temporal para que uma obra possa ser reconhecida como romance histórico: sua ação deve desenvolver-se total ou parcialmente num passado não experimentado diretamente pelo autor (1993, p. 32). Com isto, exclui de seu estudo romances que, embora possuam dimensões históricas, abordam um período experimentado diretamente pelo autor (1993, p. 33).

No que se refere ao marco temporal, o posicionamento de Menton é discutido por Alcmeno Bastos (2007, p. 95) que nele identifica a confusão entre autor e narrador, ignorando a autonomia do narrador, sendo tal critério externo ao universo ficcional.

Além da questão ficcional, observa-se que este é um falso problema também do ponto de vista historiográfico. Verifica-se no requisito apontado por Menton a valorização de uma concepção de história que privilegia a visão retrospectiva. Nesta concepção, própria do século XIX, concebia-se a objetividade como uma tomada de distância em relação aos problemas do presente, ou seja, o evento pertencia ao campo histórico, mas só seria elemento do conhecimento histórico erudito após passarem-se vários anos para que os traços do passado pudessem ser arquivados e catalogados (FERREIRA, 2000, p. 113). A história tinha como objetivo a descrição por meio de documentos. Com o passar do tempo esta visão começa a sofrer crítica, ao se considerar que o recuo no tempo não garantiria a objetividade da história, pois todo historiador é tributário da sua época (FERREIRA, 2000, p. 115).

A Escola dos Annales, responsável por profundas mudanças no fazer histórico no século XX, tampouco trouxe alterações da postura anterior no que se refere ao período de interesse e às fontes. O século XX carregava o estigma de estudo problemático, considerando-se o fato de os historiadores nele estarem inseridos, vivendo-o como presente, e a legitimidade de sua

abordagem pela história foi constantemente questionada (FERREIRA, 2000, p. 117). Considerava-se que a falta de documentos e a consequente valorização do testemunho, para o trabalho com a história contemporânea, traria o risco de cair no puro relato jornalístico. Entretanto, Jacques Le Goff afirmou que a conquista da história contemporânea pela história nova era tarefa urgente (2005, p. 71), mencionando que “Lucien Febvre e Marc Bloch eram fascinados pelo presente, por mais que um fosse setecentista e o outro medievalista. Marc Bloch concebia como uma audácia necessária estender o domínio da história até o conhecimento do presente” (2005, p. 70, grifo do autor).

Na década de 90, registraram-se transformações importantes nos diferentes campos da pesquisa histórica:

Revalorizou-se a análise qualitativa e resgatou-se a importância das experiências individuais, ou seja, deslocou-se o interesse das estruturas para as redes, dos sistemas de posições para as situações vividas, das normas coletivas para as situações singulares. Paralelamente, ganhou novo impulso a história cultural, ocorreu um renascimento do estudo do político e incorporou-se o estudo do contemporâneo (FERREIRA, 2000, p. 118).

As novas abordagens favoreceram a aceitação do valor dos testemunhos diretos. A chamada história oral passa a utilizar-se de entrevistas, testemunhos como fontes para o desenvolvimento da história do tempo presente, que trata do estudo do contemporâneo imediato, instantâneo. Considerando-se, portanto, a valorização do campo de estudo do tempo presente, não cabe mais a rejeição ao tratamento dos fatos contemporâneos pelo autor.

Outro ponto discutível do posicionamento de Menton diz respeito à característica do novo romance latino-americano que trata da história de forma a distorcê-la através de omissões, exageros e anacronismos (1993, p. 43). Considera-se, na presente dissertação, não apenas a “distorção” da história por meio de métodos que apontam para a construção da paródia, mas a apresentação da discussão sobre a história como uma construção através da elaboração de versões históricas fictícias, apontando-se para sua textualização.

André Trouche (2006, p. 29) considera apressada a classificação novo romance histórico latino-americano, como proposta por Menton, devido à existência de um enorme abismo entre o romance histórico tradicional e as narrativas produzidas nas últimas décadas (1980-2000), na América Latina.

Além do novo romance histórico latino-americano, outra terminologia que tenta explicar este fenômeno da relação entre história e ficção é a proposta por Linda Hutcheon (1991): metaficção historiográfica.

O contexto no qual Hutcheon insere sua proposição é o da pós-modernidade. Como características, a situação pós-moderna teria, segundo Navajas (1996, p. 19), a indeterminação epistemológica, a negatividade axiológica e a heterogeneidade formal. Com isto, a práxis estética pós-moderna se converteu numa ausência de princípios e de valores definidos. Esta estética pós- moderna seria, segundo Navajas (1996, p. 16), o pós-modernismo14. E o que caracteriza o pós- modernismo na ficção, de acordo com Linda Hutcheon, é a metaficção historiográfica (1991, p. 11). Embora não apresente claramente uma definição, a autora apresenta a ideia de que as metaficções historiográficas são “romances famosos e populares que, ao mesmo tempo, são intensamente autorreflexivos e mesmo assim, de maneira paradoxal, também se aproximam de acontecimentos e personagens históricos” (1991, p. 21). Hutcheon afirma que a metaficção historiográfica

recusa a visão de que apenas a história tem uma pretensão à verdade, por meio do questionamento da base dessa pretensão na historiografia e por meio da afirmação de que tanto a história como a ficção são discursos, construtos humanos, sistemas de significação, e é a partir dessa identidade que as duas obtêm sua principal pretensão à verdade (1991, p. 127).

E não apenas recusa a pretensão da verdade histórica, como a metaficção historiográfica “se aproveita das mesmas verdades e das mentiras do registro histórico” (HUTCHEON, 1991, p. 152).

Considera-se, na presente dissertação, em concordância com o exposto por Alcmeno Bastos (2007, p. 44), que não é apropriada esta ideia do aproveitamento das verdades e das mentiras do registro histórico por parte da metaficção historiográfica, pois a questão da verdade ou da mentira do registro historiográfico não se constitui num problema para a ficção: “Aceitá-lo é ainda admitir alguma espécie de subordinação do poeta ao historiador, pois, ao escolher a mentira, o ficcionista avaliza uma classificação distintiva proveniente de outro processo discursivo” (BASTOS, 2007, p. 44, grifo do autor).

De fato, ao estabelecer-se como ciência, no século XIX, a história possuía tal pretensão à verdade. No entanto, no decorrer do século XX, como já apontado aqui, a própria ciência

14

O termo é empregado em relação ao posmodernism anglo-saxão (corresponde à pós-vanguarda hispano- americana), e não ao pós-modernismo da primeira metade do século XX.

histórica verificou a impossibilidade de atingir tal ideal. A verdade refere-se ao verificável, ao que possa ser comprovado por vias documentais, nas quais se apoia o historiador. Obviamente isto é absolutamente desnecessário à ficção.

Segundo Bastos, a afirmação de que a história não existe senão como texto, deve ser relativizada:

pois se de fato é impossível recuperar integralmente um evento, a própria reconstituição discursiva parte da premissa de que tal evento ocorreu de fato, mesmo que também seja irrecuperável sua integridade identificadora. Se como fato histórico entendemos algo além de sua ocorrência e de seu completo deperecimento, algo que se deposita numa espécie de superfície temporal e jamais se extingue de todo, permanecendo tanto nos resíduos materiais – objetos, ruínas – quanto nos imateriais – o mais poderoso dos quais a memória é transmitida –, então a história existe sim (2007, p. 44, grifo do autor).

Embora faça tais ressalvas, Bastos considera que a mais produtiva das ideias propostas por Hutcheon parece ser a do estatuto comum de discurso atribuído à história e à metaficção historiográfica e à ficção histórica, por extensão, qualquer que seja sua modalidade, pois

flexibiliza a ideia de que o registro histórico seja o lugar único da verdade, pois coloca em evidência a impossibilidade do discurso verbal cientificamente objetivo, neutro e incontestável. Não que o discurso historiográfico deva entregar-se à irresponsável acolhida de toda e qualquer versão, mas pela consciência necessária de que o acesso ao passado só pode dar-se discursivamente (2007, p. 45).

Outra crítica ao conceito de metaficção historiográfica foi apontada por André Trouche (2006) que, embora considere tal “inovação tecnológica”15 uma fórmula mais adequada do que a novo romance histórico, afirma que o estabelecimento desse novo paradigma constitui-se em um subgênero, uma interface, do que denominou de forma mais abrangente de narrativas de extração histórica.16

André Trouche apresenta o conceito de narrativa de extração histórica (2006, p. 44), que caracteriza a narrativa que enceta diálogo com a história, como forma de produção de saber e como intervenção transgressora. Este conceito leva em consideração a existência da relação entre

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 32-44)