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NARRADOR-AUTOR-PERSONAGEM

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 76-81)

2 FICCIONALIZAÇÃO DA HISTÓRIA

2.4 NARRADOR-AUTOR-PERSONAGEM

O quarto elemento que permite a ficcionalização da história no romance Santa Evita é o narrador que se apresenta como autor e personagem do romance. O narrador constitui o elemento estruturador básico da narrativa, sem o qual esta não existe (GANCHO, 2002, p. 26). Segundo Charaudeau e Maingueneau (2006, p. 342), para que haja narrativa faz-se necessário, em primeiro lugar, a representação de uma sucessão temporal de ações; em seguida, uma elaboração que estruture e dê sentido a essa sucessão de ações e de eventos no tempo. Cabe lembrar que os autores consideram que “a ação se caracteriza pela presença de um agente – humano ou

83Em português: “Essa convicção lhe deu forças para continuar vivendo” (MARTÍNEZ, 1996, p. 311).

antropomorfo – que provoca a transformação (ou tenta impedi-la), enquanto o evento ocorre como efeito de causas, sem a intervenção intencional de um agente (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2006, p. 28, grifo dos autores).

A recomendação básica, feita a quem se aproxima do universo da leitura literária, diz respeito a não confundir autor e narrador. Obviamente, o autor é uma pessoa com existência real, entidade civil, externa ao universo ficcional, e o narrador é ente ficcional, criatura de um autor (BASTOS, 2007, p. 102). Entretanto, o narrador pode remeter ao autor, por compartilharem ambos o mesmo nome, e porque a matéria narrada apresenta-se como participante da vida do narrador. Neste caso, emprega-se o recurso da narrativa em primeira pessoa em tom testemunhal. Em Santa Evita, Tomás Eloy Martínez insere-se como personagem e narrador. De acordo com Bella Jozef (2005, p. 268), Martínez, jornalista, cronista e romancista, é acima de tudo um jornalista que, em seus romances, faz um acerto de contas com seu tempo. Como narrador de

Santa Evita, Martínez parte em busca de informações que possam esclarecer a história do sequestro do corpo de Eva Perón, dedica-se a levantar sua biografia, a refletir sobre seu mito na sociedade argentina e, além disso, reflete sobre a própria elaboração do romance. Para realizar esta dupla reflexão, Martínez lança mão do ensaio. Complexifica-se no romance a função do narrador, pois este atua como investigador, ensaísta e historiador, relativizando-se os limites entre história e ficção.

O narrador personagem revela-se no terceiro capítulo do romance, quando começa a narrativa em primeira pessoa do singular: “En esta novela poblada por personajes reales, los únicos a los que no conocí fueron Evita y el Coronel” (MARTÍNEZ, 1995, p. 55)85. Seu nome, idêntico ao do autor, é revelado quando narra o telefonema que recebeu, em 1989, no qual militares queriam encontrá-lo para esclarecer as informações que ele tinha sobre o cadáver de Evita: “– ¿Tomás Eloy? / Hay poca gente que me llama así: sólo amigos cercanos, del exilio; también, a veces, mis hijos” (MARTÍNEZ, 1999, p. 385).86

A inclusão do “eu”, ou seja, da primeira pessoa do singular, é um indício da ficcionalização da história. Afinal, no texto histórico, o “eu” é proscrito, desaparece, exclui-se a personalidade do historiador que se ofusca,

85

Em português: “Neste romance povoado de personagens reais, os únicos que não conheci foram Evita e o Coronel”

(MARTÍNEZ, 1996, p. 49).

86 Em português: “– Tomás Eloy? / Poucas pessoas me chamam assim: só amigos chegados, do exílio; às vezes, também meus filhos” (MARTÍNEZ, 1996, p. 330).

reaparecendo apenas em raras oportunidades: em trechos bem delimitados (início ou fim de capítulos, notas e discussões com outros historiadores); ou, então, sob formas atenuadas, pelo emprego de nós, que associa autor e leitores ou por uma referência à corporação de historiadores através de expressões mais impessoais, por exemplo, a gente, diz-se. Do mesmo modo, ele evita implicar-se em seu texto, tomar partido, indignar-se, manifestar suas emoções, inclusive, de apoio (PROST, 2008, p. 238, grifo do autor).

Embora os eventos narrados sejam de extração histórica, a opção por apresentá-los a partir da perspectiva de um narrador que está envolvido, não só com a narração, mas também com os eventos que narra, pois estes o marcam, permite considerar que ocorre a ficcionalização da história. A narração não é feita por um historiador no sentido tradicional do termo, mas por um narrador que assume o papel de um historiador não convencional, pois mescla ficção e história.

O narrador de Santa Evita constrói-se como um indivíduo que narra não só a história do que aconteceu com o corpo embalsamado de Evita, mas também sua própria experiência com o mito que descreve e sua transformação pessoal ao longo do processo de investigação e escrita, narrando sua experiência. Segundo Walter Benjamin (1994, p. 198), a fonte a qual recorreram todos os narradores é a experiência que passa de pessoa a pessoa. Afirma Benjamin que “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros” (1994, p. 201). Figurando entre os mestres e os sábios, o narrador possui o dom de contar sua vida: “sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida” (BENJAMIN, 1994, p. 221).

Um exemplo do relato da experiência do narrador verifica-se quando este se impressiona com os malefícios que se abateriam sobre os que se aproximam do corpo embalsamado de Evita. A viúva do Coronel diz-lhe que todos os que estiveram com o cadáver acabaram mal. Martínez responde-lhe que não acredita nestas coisas, mas a viúva o adverte: “– Que Dios lo ampare, entonces. Si va a contar esa historia, deberia tener cuidado. Apenas empiece a contarla, usted tampoco tendrá salvación” (MARTÍNEZ, 1995, p. 59).87

Conta o narrador que, depois deste encontro, passou vários dias nos arquivos dos jornais, pois se o malefício invocado pela viúva do Coronel era verdadeiro, ele encontraria algum fato que o confirmaria (MARTÍNEZ, 1995, p. 61).

Embora realize pesquisas em jornais, é na literatura que encontra as pistas que procura: no conto “Esa mujer”, de Rodolfo Walsh.88

O conto menciona os infortúnios sofridos por dois

87Em português: “Neste caso, que Deus o proteja. Se pretende contar essa história, deveria ter cuidado. Assim que

começar a conta-la, o senhor também não vai ter salvação” (MARTÍNEZ, 1996, p. 52).

88

No capítulo 3 desta dissertação, tratar-se-á do processo intertextual entre o texto de Walsh e o romance de Martínez, e ao mesmo tempo da ficcionalização do jornalista.

oficiais da Inteligência: um matou a esposa e outro teve o rosto desfigurado num acidente. O narrador diz que, em suas pesquisas, encontrou registros de outros acidentes envolvendo o traslado do corpo de Evita (MARTÍNEZ, 1995, p. 61).

Além da investigação que faz, o narrador relata a dificuldade de narrar a história de Evita. Sente-a escapar, embora soubesse o que desejava contar e qual seria a estrutura da narração (MARTÍNEZ, 1995, p. 62). Afirma que estava doente de depressão (MARTÍNEZ, 1995, p. 64) e o que o levantou da cama foi a história de Evita, pois desde que recebeu o telefonema do militar que queria falar com ele sobre o que aconteceu ao corpo, recuperou o ânimo: “con alivio, advertí que mi depresión estaba retirándose sola. Volví a ver la realidad como un vasto presente donde todo, por fin, era posible” (MARTÍNEZ, 1995, p. 388).89

Talvez o fato de haver estado doente antes e sentir-se bem após começar a narrativa o tenha feito eliminar a possibilidade de incorrer na maldição que rondava o cadáver.

Martínez narrador começa a se sentir cercado por um feitiço, uma maldição, quando recebe a notícia da morte de sua mãe que havia falecido dias antes, mas seus irmãos só conseguiram avisá-lo após o enterro, pois haviam perdido o número de seu telefone, e ninguém conseguia encontrá-lo: “Hicimos una larga búsqueda. Todos lo habían perdido. Fue como si estuvieras dentro del cerco de un maleficio” (MARTÍNEZ, 1995, p. 76).90

A partir deste ponto, começou a sentir-se enjoado à noite, e os médicos não sabiam como curá-lo. Somente quando parou de escrever, sentiu-se melhor. Percebeu que, quando tentava viajar, caíam nevascas que obrigavam os aeroportos e as vias principais a fecharem. Com o encerro forçado, começou a escrever novamente, foi quando saiu o sol como uma abençoada primavera antecipada sobre Nova Jersey, cidade em que morava (MARTÍNEZ, 1995, p. 77).

Quando pensava que tudo estava bem, o narrador voltava a ser rondado pela expectativa do malefício. Recebe uma carta do filho de Raimundo Masa, homem que quase havia morrido junto com sua família quando tentava cumprir uma promessa pela recuperação da saúde de Evita. Na carta, dizia-lhe: “Si usted me andaba buscando, ya no me busque. Si usted va a contar la historia, tenga cuidado. Cuando empiece a contarla, no va a tener salvación” (MARTÍNEZ, 1995,

89Em português: “Com alívio, notei que minha depressão estava recuando sozinha. Voltei a ver a realidade como um vasto presente onde tudo, por fim, era possível” (MARTÍNEZ, 1996, p. 333).

90 Em português: “Perguntamos a Deus e ao mundo. Todos tinham perdido o número. Era como se você estivesse cercado por um feitiço” (MARTÍNEZ, 1996, p. 66).

p. 77).91 Conta o narrador que já havia ouvido esta advertência antes e a havia desprezado, então agora era tarde para voltar atrás.

Junto com a carta, recebe cópias de artigos do Coronel publicados no jornal El Trabajo, de Mar del Plata, entre 20 e 25 de setembro de 1970, uma semana antes de sua morte. Os quatro primeiros artigos, escritos sob pseudônimo, narravam o sequestro do cadáver e detalhes pequenos da operação de ocultação. O último, assinado pelo Coronel Moori Koenig, revelava a existência de cópias idênticas ao corpo, enterradas em lugares diferentes; e que o corpo verdadeiro estava sepultadas nas margens de um rio na Alemanha. O narrador fica impressionado com o fato de o Coronel ter escolhido para assinar os quatro primeiros artigos o pseudônimo de “lord Carnavon”, “el nombre del arqueólogo inglés que despertó a Tutankamón de su descanso eterno y pagó esa osadía con la vida” (MARTÍNEZ, 1995, p. 78).92

Decide não se deixar levar pelas superstições, mas imagina que Evita passa a rondá-lo. Quando se cansa de escrever, sai de carro sem rumo pelas ruas de Nova Jersey, escutando rádio. Numa dessas ocasiões, Sinead O’Connor canta “Don’t cry for me Argentina”. O narrador diz, poeticamente, que Evita canta através de Sinead O’Connor, e se pergunta: “¿Yo busco a Evita o Evita me busca a mí?” (MARTÍNEZ, 1995, p. 203).93

Percebe que, em Nova Jersey, talvez ninguém conheça a Evita, nem a Argentina, como ele. Embora o musical de Tim Rice tenha tornado Evita conhecida, a história que se conhece dela não é verdadeira:

Nadie, tal vez, sabe quién fue de veras; la mayoría supone que Argentina es un suburbio de Guatemala City. Pero en mi casa, Evita flota: su viento está, todos los días deja su nombre en el fuego. Escribo en el regazo de sus fotos: la veo con el pelo al viento una mañana de abril; o disfrazada de marinero, posando para una tapa de la revista Sintonía; o sudando bajo un abrigo de visón, al lado del dictador Francisco Franco, en el férreo verano madrileno; o extendiendo las manos hacia los descamisados; o cayendo entre los brazos de Perón, ojerosa, en los huesos. Escribo en su regazo, oyendo los patéticos discursos de los meses finales, o fugándome de estas páginas para ver otra vez en copias de video las películas que aqui no ha visto nadie: La pródiga, La cabalgata del circo, El más infeliz del pueblo, en las que Evita Duarte se mueve con torpeza y recita con dicción atroz, atriz de última, la bella: “¿No es acaso lo bello sino el comienzo de lo terrible?”

(MARTÍNEZ, 1995, p. 204).94

91 Em português: “Se o senhor estava me procurando, não procure mais. Se vai contar a história, tenha cuidado.

Quando começar a contá-la, não vai ter mais salvação” (MARTÍNEZ, 1996, p. 66).

92 Em português: “o nome do arqueólogo inglês que perturbou o descanso eterno de Tutankâmon e pagou essa ousadia com a própria vida” (MARTÍNEZ, 1996, p. 67).

93Em português: “Eu estou atrás de Evita ou é Evita quem está atrás de mim?” (MARTÍNEZ, 1996, p. 176).

94Em português: “Talvez ninguém saiba quem ela foi na realidade; a maioria imagina que Argentina é um subúrbio

de Guatemala City. Mas, na minha casa, Evita paira no ar: seu sopro está; todos os dias deixa seu nome no fogo. Escrevo no regaço de suas fotos: eu a vejo com o cabelo ao vento em uma manhã de abril; ou vestida de marinheiro, posando para a capa da revista Sintonía; ou suando em bicas sob o casaco de visom, ao lado do ditador Francisco Franco, no impiedoso verão madrileno; ou estendendo as mãos para os descamisados; ou caindo entre os braços de Perón, com fundas olheiras, só pele e osso. Escrevo no seu regaço, ouvindo os patéticos discursos dos meses

Por isso narra sua experiência, não como a verdade sobre Evita, mas como uma das possibilidades de compreensão da história – a sua própria, a de Evita e a da Argentina. E como esta é a sua narrativa, pode construí-la de modo a torná-la ficcionalizadora da história, apresentando a linguagem poética como uma forma de narrar.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 76-81)