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QUEBRA DA LINEARIDADE TEMPORAL

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 61-65)

2 FICCIONALIZAÇÃO DA HISTÓRIA

2.2 QUEBRA DA LINEARIDADE TEMPORAL

O segundo procedimento ficcionalizador da história é a quebra da linearidade temporal. Sendo o tempo e o espaço as categorias primordiais da história, seu tratamento é relevante para se determinar a que tipo de discurso se está exposto. Basicamente, o tempo da história é apresentado de forma linear. A quebra da linearidade, as interferências, o manuseio do tempo, as idas e vindas, não são aceitas no discurso histórico, sendo, ao contrário, perfeitamente possíveis e aceitáveis, ou mesmo desejáveis, no discurso ficcional, o que caracteriza a complexidade da obra literária. Portanto, o tratamento do tempo na ficção visa a fins estéticos.

Verificam-se em Santa Evita dois planos temporais: o tempo narrado e o tempo da narração. Chama-se aqui tempo narrado à referência temporal dos eventos mencionados no romance, tais como momentos da biografia de Evita, situações envolvendo o sequestro e desaparecimento do cadáver, dentre outros. Refere-se, portanto, à narração efetiva dos acontecimentos numa sequência não linear. Este tempo é sempre passado. Já o tempo da narração refere-se a todos os momentos em que, no romance, o narrador explicita o tempo presente, o momento em que elabora o romance, em que comenta a escrita deste, de forma metaficcional.

Para maior clareza, elaborou-se nesta dissertação uma linha do tempo de Santa Evita.51 É possível verificar, em tal linha do tempo, como o romance é apresentado de forma não linear. Em

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vários momentos, parte-se do passado para o presente da narração, ou o contrário. Às vezes, uma data já mencionada é revisitada com vistas a esclarecer os aspectos que a cercam, que a tornam singular no meio de outras datas.

A narração inicia com os momentos finais de Evita, pouco antes de sua morte em 26 de julho de 1952: “Al despertar de un desmayo que duró más de tres días, Evita tuvo al fin la certeza de que iba a morir” (MARTÍNEZ, 1995, p. 11).52

Nos parágrafos seguintes, o narrador já apresenta uma comparação entre Evita morrendo e a menina que chegou a Buenos Aires em 1935: “No parecía la misma persona que había llegado a Buenos Aires en 1935 con una mano atrás y otra adelante, y que actuaba en teatros desahuciados por una paga de café con leche” (MARTÍNEZ, 1995, p. 11).53 Além desta comparação, a narração apresenta uma pessoa que a conheceu, comentando sua transformação nos últimos quatro anos e retornando a 1952, ao quarto de hospital onde está Evita.

Este início dá mostras do que será a narrativa ao longo de todo o romance: várias idas e vindas no tempo que, às vezes, desconcertam o leitor. O contorcionismo temporal que se verifica no romance se deve ao fato de que o narrador discute os eventos que narra. Emprega o recurso de relatar episódios para, logo após, informar que teve conhecimento de outras versões que passa a narrar, tendo o cuidado de citar suas fontes, explicitando como chegou até elas.

Após narrar de forma poética a morte de Evita, o narrador apresenta um personagem que será importante para o enredo do romance, o coronel Carlos Eugenio de Moori Koenig, um dos militares que planejou e executou o sequestro do cadáver de Evita. Deste ponto, a narrativa desloca-se para o ano de 1950, quando o coronel havia sido destacado para espionar Evita, e retorna a 1952, ocasião em que Juan Domingo Perón é empossado para cumprir o segundo mandato de Presidente da República.

O acontecimento em questão neste momento é a última aparição em público de Evita, que insiste em comparecer à cerimônia de posse de seu marido. Para isto, necessitou de altas doses de analgésicos e de uma estrutura de gesso, utilizada por baixo de um grosso casaco de pele, que lhe permitiu permanecer de pé durante a passagem em carro aberto pela via pública:

Le pusieron dos inyecciones, una para que no sufriera y otra para que mantuviera la lucidez. Le disolvieron las ojeras con bases claras y líneas de polvo. Y, como se

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Em português: “Ao acordar de um desmaio que durou mais de três dias, Evita teve por fim a certeza de que ia

morrer” (MARTÍNEZ, 1996, p. 11).

53Em português: “Não parecia a mesma pessoa que havia chegado a Buenos Aires em 1935 com uma mão na frente

empecinaba en acompañar al presidente de pie en la inclemencia de un auto descubierto, le fabricaron a las apuradas un corsé de yeso y alambres para mantenerla erguida (MARTÍNEZ, 1995, p. 38).54

Deste episódio, parte-se para uma conversa que Evita teria travado com sua mãe, Juana Ibarguren, no dia seguinte, sobre o sentimento que a unia a Perón. Então o narrador salta para 1955 e relata a insegurança de Juana com a renúncia de Perón e sua tentativa de reaver o cadáver de sua filha, bem como o clima de instabilidade no país naquele momento (MARTÍNEZ, 1995, p. 46).

Aqui o tempo narrado dá lugar, momentaneamente, ao tempo da narração. É quando o narrador esclarece sobre os personagens do romance, sendo a primeira vez que a narrativa se faz em primeira pessoa:

En esta novela poblada por personajes reales, los únicos a los que no conocí fueron Evita y el Coronel. A Evita la vi sólo de lejos, en Tucumán, una mañana de fiesta patria; del coronel Moori Koenig encontré un par de fotos y unos pocos rastros. Los diarios de la época lo mencionan de modo escueto y, con frecuencia, despectivo. Tardé meses en dar con su viuda, que vivía en un departamento austero de la calle Arenales y que aceptó verme al cabo de una postergación tras otra (MARTÍNEZ, 1995, p. 55).55

Desde o momento em que se menciona o tempo da narração pela primeira vez, percebe-se que se trata do final dos anos 1980 e início dos anos 1990. O ano exato, 1992, fica claro ao final, pois o narrador diz que em 1989 começou a pesquisar sobre Evita após receber um telefonema de um militar do Serviço de Inteligência do Exército, chamando-o para um encontro, no qual lhe contariam a história completa do cadáver de Evita (MARTÍNEZ, 1995, p. 385) e que durante três anos ficou ruminando a história até decidir narrá-la.

Essa abertura ao tempo da narração, à metaficção, é feita várias vezes ao longo do romance, gerando a sensação de realidade para o leitor que imagina estar diante de um narrador que tem provas do que está narrando, sendo, portanto, real o que narra. Estaria suspensa, desta forma, a convicção do leitor de estar diante de uma obra ficcional, já que há profusão de detalhes expressos por suas datas históricas reais. Embora Roland Barthes (1970), ao discutir um conto de

54 Em português: “Aplicaram-lhe duas injeções, uma para que não sofresse e outra para que mantivesse a lucidez.

Disfarçaram suas olheiras com bases claras e linhas de blush. E como teimava em acompanhar o presidente em pé nos rigores de um carro aberto, fizeram às pressas um colete de gesso e arame para mantê-la ereta” (MARTÍNEZ, 1996, p. 34).

55Em português: “Neste romance povoado de personagens reais, os únicos que não conheci foram Evita e o Coronel.

Evita eu ainda pude ver de longe, em Tucumán, em uma manhã de feriado naciona; do coronel Moori Koenig só encontrei algumas fotos e uns poucos rastros. Os jornais da época o citavam de passagem e, muitas vezes, de modo depreciativo. Levei meses para encontrar sua viúva, que morava num vestuto apartamento da rua Arenales e que só

Flaubert, apresente o efeito de real como criado a partir da menção de detalhes que parecem inúteis ao conto, mas que, no entanto, estão ali para dar verossimilhança, realidade, no caso da metaficção não se pode dizer que esta seja um detalhe, pois, em Santa Evita, adquire importância na elaboração da obra. Assim, mesmo que não se trate de um detalhe, gera igualmente efeito de real.

No entanto, todo este relato, ainda que bem fundamentado em datas históricas, se constrói de forma ficcional, pois o tratamento do tempo não se dá como no discurso histórico. Para o relato histórico, o tempo fica melhor organizado ao se apresentar em ordem cronológica, linear, sem contorcionismos. O discurso da história não possui a liberdade da ficção para quebrar a linearidade temporal e, brincando com o tempo, apresentar outras possibilidades de compreensão da história. O historiador que se apresentasse desta forma, com tal abertura ao imaginário, fatalmente correria o risco de ver sua obra não reconhecida como histórica pelos seus pares.

Além da data da morte de Evita, 26 de julho de 1952, outras datas significativas para o peronismo e, consequentemente, para a história argentina são ficcionalizadas em Santa Evita, tais como: a renúncia de Evita à candidatura ao cargo de Vice-presidente da República, em 1951; a renúncia de Perón, em 20 de setembro de 1955; o sequestro do cadáver de Evita em 1955; o exílio de Perón, em 3 de outubro de 1955; a Lei Marcial da Revolução Libertadora, em 9 de junho de 1956; o ano em que o cadáver de Evita é devolvido a Perón ainda no exílio, em Madri, 1971; o ano de regresso de Perón à Argentina, 1973; o retorno do cadáver à Argentina, em novembro de 1974, e seu traslado da residência presidencial de Olivos ao cemitério da Recoleta em outubro de 1976. Um largo período de tempo é coberto para se relatar a história do peronismo, considerando-se principalmente o mito mais emblemático deste movimento: Evita Perón, a mãe dos descamisados.

Estas datas históricas públicas são entremeadas por outras datas, pertentecentes entretanto, ao âmbito privado, aos bastidores, e que se constituem de grande importância para desvendar o que estaria oculto no discurso histórico oficial. Não caberia aqui mencionar todas as datas que formam parte do romance Santa Evita, nas quais se apoia o narrador para ficcionalizar a história.56 Foram citadas as mais emblemáticas para a história argentina e que permitem perceber este trabalho de ficcionalização, como a matéria histórica e o tempo são tratados na ficção, de

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forma distinta do que seriam no discurso histórico, mas capaz de criar um efeito de apagamento das margens entre história e ficção.57

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 61-65)