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HISTÓRIA E FICÇÃO NA LITERATURA ARGENTINA

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 44-50)

Considerando-se o estudo do romance em questão, pertencente ao conjunto da literatura argentina, torna-se necessário indicar, ainda que brevemente, que a problematização da relação entre história e ficção, e a relativização dos limites entre estes gêneros, revela-se profícua em tal tradição literária. Nos capítulos seguintes, ao se tratar da questão da intertextualidade como um dos procedimentos relativizadores dos limites entre história e ficção, tal questão será mais detalhada. No entanto, apresentam-se aqui, em linhas gerais, algumas observações.19

Com Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), em sua obra Facundo (1845), na qual apresenta a antinomia civilização ebarbárie, já se verifica a relação entre história e ficção. Como aponta o historiador Felipe Pigna (2005, p. 270), Sarmiento considerava que o grande problema da Argentina era o dilema entre a civilização e a barbárie, que só se resolveria com o triunfo da primeira. Sarmiento entendia que a civilização identificava-se com a cidade, com o urbano, o que estava em contato com o europeu, que significava progresso. Já a barbárie, ao contrário, era o campo, o meio rural, o atraso, o índio e o gaúcho. Destaca Pigna que o momento em que Sarmiento escreveu Facundo, publicado em 1845, era muito particular, pois a intolerância e os conflitos políticos eram comuns. O contexto histórico de sua produção é o das lutas civis entre Federalistas e Unitários, da ditadura de Rosas, a quem Sarmiento se opunha. Os adversários de Rosas representavam-no como a encarnação do absolutismo, arbitrariedade e barbárie (PRADO, 1996, p. 21).

Sarmiento pertenceu à chamada Geração de 1837, que busca retomar os ideais emancipadores de 1810. Influenciada pelos românticos europeus, esta geração pretendia

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Diante da impossibilidade de referir-se à relativização dos limites da ficção como historicização da ficção, pois se esta fosse historicizada deixaria de ser ficção e passaria a ser história, além do fato de o termo historicizar remeter à prática positivista do século XIX, pensou-se, nesta dissertação, em dizer “efeito de historicidade” para descrever o que, de fato, ocorre no romance, quando a ficção ganha aparência de história. Tal expressão é utilizada por Alcmeno Bastos (2007, p. 106) para designar o que acontece quando recursos ficcionais substitutivos, como criação de personagens, eventos e instituições análogas a personagens, eventos e instituições de extração histórica documentada são empregados na ficção. Na presente dissertação, como se verifica no capítulo 3, analisam-se os procedimentos

narrativos que são empregados no romance gerando o “efeito de historicidade”. 19

Embora pareça interessante desenvolver mais profundamente a relação entre a obra de Tomás Eloy Martínez e a série literária argentina, tal empreitada não é possível no momento. Portanto, apenas são discutidos alguns autores e obras que relacionam história e ficção, para demonstrar que sua obra se insere numa tradição literária.

promover o progresso liberal do país e rechaçar os intentos de Juan Manuel de Rosas, na disputa entre Federalistas e Unitários (DUTRA, 1994, p. 82); tendo efetiva participação na construção da nacionalidade argentina, a partir da independência, através do estabelecimento das bases da literatura nacional. Os autores desta geração preocupavam-se com a situação política e social que atravessava a Argentina e com a função do escritor (JOZEF, 2005, p. 48). Além disso, assentaram as bases da Argentina moderna, que começou a se configurar a partir de 1852 e teve seu pleno desenvolvimento sob o governo de Sarmiento (LUNA, 1996).

Esteban Echeverría (1805-1851), introdutor do Romantismo na América Hispânica, foi o principal expoente da Geração de 1837, em torno do qual esta se concentrava energicamente, segundo Doris Sommer (2004, p. 111). Em seu poema “La Cautiva” (1837), Echeverría apresenta a “cor local” argentina, passando do universal ao local, ao cantar o “deserto” e ao tratar da questão do índio e do rapto e cativeiro de mulheres brancas (LUNA, 1996). Além disso, contribui para elaboração do mito da cativa, presente na literatura argentina.

Outras obras significativas de Echeverría são o conto “El matadero”, publicado postumamente em 1871, que relaciona literatura e história, tratando metaforicamente do conflito entre Federalistas e Unitaristas; e o “Dogma socialista” (1846), compilação seletiva do socialismo utópico francês, que passou a ser a plataforma ideológica da Geração de 1837 (SOMMER, 2004, p. 112) e que tinha como conteúdo a declaração dos princípios que constituíam a República da Argentina (FIORUCCI, 2005, p.2). Em “Dogma socialista” desenvolve as ideias apresentadas no credo da Asociación de Mayo, organização que fundou em 1838, numa tentativa de derrotar Rosas.

Fracassado o intento de derrotar Rosas, vários integrantes da Geração de 1837 partem para o exílio de onde continuam a escrever suas obras. São chamados de “Os proscritos” (Sarmiento e Echeverría estiveram nesta condição). Echeverría resiste a partir, permaneceu o quanto pode, até que fugiu para Montevidéu (SOMMER, 2004, p. 113).

Outro autor marcante do período foi José Marmol, com a obra Amalia (1951), escrita no exílio em Montevidéu, que romanceia a ditadura rosista. Amalia faz parte do conjunto de obras que constrói um projeto de nação. Segundo Sommer,

a maior parte do romance é uma mistura maravilhosamente não ortodoxa de intrigas, diálogos de sala de visitas, descrições detalhadas de ambientes fechados e de vestimentas, dignas da oposição de periódicos “da moda”, documentos históricos e estudos de personagens de agentes historicamente identificáveis (2004, p. 125).

Segundo Bella Jozef (1980, p. 21), ser uma literatura política é uma característica geral da literatura argentina. Por isso, desde o Romantismo, a primeira tentativa de tratar os problemas americanos do ponto de vista americano, no caso, argentino, o que se busca são suas peculiaridades históricas e geográficas.

Vários autores dedicam-se a refletir sobre a nação, e, em suas obras, o dado histórico está presente: “gerações de escritores e leitores latino-americanos supunham que a literatura tem a capacidade de intervir na história, de ajudar a construí-la” (SOMMER, 2004, p. 25). Por isso, os autores dedicavam-se a elaborar projetos de construção nacional. Um destes é Ricardo Rojas (1882-1957), que ganha destaque como crítico literário que se preocupou em refletir sobre a identidade cultural da nação. Envolveu-se na corrente ideológica surgida no contexto das comemorações do Primeiro Centenário da Independência Argentina (1910), denominada “primeiro nacionalismo cultural”. O ambiente de comemoração expressava que a nação era efetivamente independente (ARCE, 2009, p. 148). Como no Romantismo, a literatura tem papel relevante na formação da nacionalidade. Reconsideravam-se, no século XX, as propostas feitas um século antes, no calor da emancipação. Se o século XIX foi marcado pela concepção de apagamento dos sinais das raízes americanas, para converter os americanos em europeus, de acordo com as elites “civilizadas”, “o Centenário parece justamente o momento oportuno para cristalizar em eventos factuais a definição dos territórios e a plena soberania” (ARCE, 2009, p. 148).20

A produção mais importante de Rojas foi a História da Literatura Argentina, obra que escreveu em quatro volumes que correspondem a formações nacionais: “Los gauchescos”, “Los coloniales”, “Los proscriptos” e “Los modernos”. Sobre a escrita desta obra, Rojas afirma que ninguém antes dele havia estudado o acervo bibliográfico argentino em seu conjunto (1924, p. 110).

Após estudar a história literária argentina, Rojas percebe em seu conjunto as quatro formações socioculturais já apresentadas e considera que, naquele momento, primeiro quartel do século XX, urgia refletir sobre os rumos da nação argentina. Para isto, propõe que a arte seja norteadora de tal reflexão, elaborando uma estética que defende, em sua doutrina, a síntese das culturas europeia e indiana, considerando como indiano tudo o que é próprio da América. Assim, em Eurindia (1924), Rojas propõe a fórmula “indianismo e exotismo” para explicar a história

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Tradução nossa. No original: “el Centenario parece justamente el momento oportuno para cristalizar en hechos fácticos la definición de los territorios y la plena soberania” (ARCE, 2009, p. 148).

política argentina, que não havia ainda alcançado os ideais propostos na Independência, e as renovações de sua história intelectual (1924, p. 17). Sua proposta de síntese distingue-se da concepção sarmientiana, “civilização e barbárie”, na qual se percebe a oposição destruidora do elemento indiano (americano) identificado com a barbárie. Rojas valoriza tal elemento, considerando-o igualmente formador da cultura argentina ao lado do elemento europeu.

Avançando-se um pouco na história da literatura argentina, encontra-se a produção literária de Jorge Luis Borges (1899-1986), na qual se observa também a ficcionalização da história, com elevado grau de estetização. Seus poemas vanguardistas “são o melhor exemplo da compenetração com a realidade argentina e sua história” (JOZEF, 2005, p. 162). Destaca-se o poema “Fundación mítica de Buenos Aires” (1929) em que apresenta outra versão para a fundação da cidade de Buenos Aires. Segundo Mariluci Guberman (2009, p. 80), “os temas mais abordados pelo poeta, ensaísta e contista argentino são: arte, rio, tempo, sonho, cegueira, morte, memória, esquecimento, espelho, biblioteca, ruína”. Verifica-se que em seus poemas, contos e ensaios, Borges dedicou espaço não só à tematização da história, mas à teorização sobre categorias históricas fundamentais, como o tempo, o espaço e a memória. Podem-se citar como exemplo os contos “Funes, o memorioso” e “O jardim de veredas que se bifurcam”.21

Em “Funes, o memorioso”, um jovem com uma memória prodigiosa tem lembranças de tudo, numa realidade infatigável que o impede de dormir. Sua insônia deve-se à memória total que possui. A partir disto, é possível indagar se esta não seria a pretensão da história – tudo saber, de tudo ter memória: “talvez todos nós saibamos no fundo que somos imortais e que, cedo ou tarde, todo homem fará todas as coisas e saberá tudo” (BORGES, 2007, p. 105). O narrador do conto constata que Funes havia aprendido tudo, mas suspeita que ele não fosse muito capaz de pensar, pois “Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo entulhado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos” (BORGES, 2007, p. 108). A propriedade de registrar tudo, a capacidade de ter memória de tudo não significa a reflexão sobre o todo. Os detalhes enchem a mente de Funes, mas não alcançam reflexão, nem encadeamento ou interpretação. Seria possível ler neste conto como seria se a história totalizante se materializasse, se realizasse, e concluir por sua inutilidade como mero acervo de detalhes.

Em “O jardim de veredas que se bifurcam”, discute-se o tempo e as várias possibilidades de soluções que um acontecimento poderia ter e, por conseguinte, as várias versões que uma

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No original: “Funes, el memorioso” e “El jardin de senderos que se bifurcan”. Ambos publicados em Ficciones, 1944.

história poderia ter. A concepção de tempo expressa no conto não é newtoniana – tempo uniforme, absoluto, linear; ao contrário, apresentam-se “infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades” (BORGES, 2007, p. 92, grifo do autor). Observa-se, na análise do conto, que a concepção de tempo difere da comumente aceita, então a história também é concebida de maneira distinta; consequentemente, outras possibilidades – amplas veredas – abrem-se para sua compreensão.

Uma produção literária mais recente, que também reflete preocupação com questões teórico-críticas, e que relaciona história e ficção, é a do escritor e teórico da literatura, Ricardo Piglia (1941), como exemplificado pelo romance Respiração artificial (1980).22Segundo Bella Jozef (2005, p. 272), Piglia “preocupa-se em analisar de que modo o romance reproduz e transforma as ficções que circulam em uma sociedade”.

Outro autor que merece destaque é Rodolfo Walsh (1927-1977), cujo conto “Esa mujer” dialoga com o romance Santa Evita, objeto de análise nesta dissertação. Além do mencionado conto, no qual mescla história e ficção, destaca-se o romance Operação Massa cre 23, no qual “reelabora os fatos que o tocaram, em 1956, na revolução de Valle” (JOZEF, 2005, p. 267). Denuncia corrupção e crimes políticos, relacionando jornalismo, história e ficção. A abordagem de tais eventos poderia ser feita apenas como matéria informativa. No entanto, Walsh analisa os fatos, encadeando-os em relação de causa e consequência, de mudança e permanência, semelhante à análise de um historiador. Operação massacre segue a tendência de vários romances hispano-americanos de abordar, tematizar, ficcionalizar eventos históricos. Há obras que optam pela abordagem tradicional dos eventos históricos e outras que os subvertem. Não se trata do estabelecimento da “verdade”, pois esta não é uma preocupação da ficção, mas sim do fornecimento de outras possibilidades, outras versões para os eventos que podem ter uma interpretação tornada “oficial” pela tradição histórica.

Como não se pretende esgotar o assunto neste trabalho, apenas indicar a produtividade da relação entre história e ficção, em linhas gerais, na literatura argentina, foram aqui mencionados apenas estes escritores. No entanto, outros mais poderiam ser citados e suas produções

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No original: Respiración artificial.

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analisadas, tais como: Manuel Puig, Juan José Saer, Luisa Valenzuela, Abel Posse, Osvaldo Soriano, dentre muitos outros.

Verifica-se, portanto, que a produção literária de Tomás Eloy Martínez insere-se numa tradição mais ampla de relacionamento entre a história e a ficção.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 44-50)