• Nenhum resultado encontrado

A MATÉRIA HISTÓRICA E O MITO

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 51-61)

2 FICCIONALIZAÇÃO DA HISTÓRIA

2.1 A MATÉRIA HISTÓRICA E O MITO

Considerando-se as observações feitas por Alcmeno Bastos (2007, p. 86) sobre a matéria de extração histórica, em cuja formação estão “os acontecimentos em si, as instituições, os lugares, tudo, enfim, que de algum modo contenha historicidade, como tal entendida a memória fixada para os pósteros, qualquer que tenha sido o meio empregado para seu registro documental”, o romance Santa Evita tem como matéria histórica a vida de María Eva Duarte de Perón, sua morte, e o sequestro e desaparecimento de seu cadáver embalsamado. Tal matéria constitui não um pano de fundo ou um cenário, mas o próprio enredo do romance.

Como já exposto anteriormente, na introdução desta dissertação, o romance apresenta uma narrativa sobre o mito de Evita, enfatizando a peregrinação do cadáver. Seria possível dizer que o romance põe em discussão o que teria ocorrido com o cadáver embalsamado de Evita, como foi sequestrado, quem o sequestrou e onde permaneceu durante os quinze anos em que esteve oculto. Caracteriza a narrativa de extração histórica o fato de tratar de eventos históricos, fazendo com que estes sejam mais que meros cenários ou simples incidências num determinado enredo. A matéria de extração histórica relaciona-se com o enredo. Como bem apontado por Alcmeno Bastos (2007, p. 86), a história não pode ser simplesmente um pano de fundo, um cenário pitoresco. Deve haver relação entre a vida dos personagens e os acontecimentos históricos, sendo necessário que o destino do protagonista e o da comunidade de que ele faz parte sejam intimamente relacionados.

É inegável que o destino de Eva Perón relaciona-se intimamente ao de seu país, Argentina. Em Santa Evita esta relação é verificada de forma intensa; apresentam-se, inclusive, situações que explicam a construção paulatina de tal relacionamento.

O autor seleciona elementos da realidade contextual para integrar a ficção, como já exposto no capítulo anterior. No caso aqui analisado, elementos que fazem parte da história são selecionados, desvinculados de suas origens para serem, posteriormente, projetados em outra contextualização. Dito de outra forma, embora a matéria narrada no romance seja histórica, ela é de extração histórica, ou seja, é tomada da história e reprocessada no interior do universo ficcional. Sofre um processo de traslado e de transformação; afinal outro tipo de discurso se processa – de histórico a ficcional. Os elementos constituintes da narrativa de extração histórica foram objeto de registro documental, escrito ou não, permitindo que esta narrativa seja

recuperada discursivamente. Além disto, apresentam alto grau de familiaridade para o leitor que tenha alguma informação sobre a história de uma determinada comunidade, preferencialmente uma comunidade nacional, possibilitando reconhecimento (BASTOS, 2007, p. 84, 104).24

Com isto se evidencia que na obra ficcional o relato não é idêntico ao histórico, mas a narrativa de ficção irá dialogar com o conhecimento das informações históricas. O tratamento dado aos acontecimentos históricos na ficção distingue-se do efetuado na historiografia. Em

Santa Evita, os eventos históricos são tratados de forma não tradicional. As informações históricas, passíveis de reconhecimento por parte do leitor, são elaboradas ficcionalmente de forma a discutir o status de possível versão oficial. A dinâmica da narrativa consiste em narrar o evento histórico, a versão mais comum, para logo em seguida apresentar questionamento sobre o narrado, através da introdução de novas fontes, outros documentos, antes ignorados, e outras testemunhas.

No entanto, ao se considerar que os eventos históricos ficcionais são tratados de forma distinta do discurso historiográfico, não se trata simplesmente de constatar que a obra de ficção possa subvertê-los, e sim do fato de que, na obra literária de ficção, os eventos históricos são representados ficcionalmente de acordo com as leis e os códigos da literatura. Um exemplo é a objetividade do discurso histórico que cede espaço à subjetividade da ficção; outros exemplos são a ênfase na construção do mito de Evita, e o tratamento do tempo na narrativa.

Enfatizar o mito junto ao relato histórico indica a ficcionalização da história. Em Santa Evita, o narrador realiza a construção do mito de Evita. Segundo Mircea Eliade (2004, p. 11), o mito narra uma história sagrada; para os antigos, os mitos relatavam de que modo algo foi produzido e começou a ser, a partir dos feitos dos deuses. Diante da manifestação do sagrado como algo distinto do profano, o homem se percebe frente a outra realidade, ao sobrenatural. Manifestando o sagrado, um objeto qualquer pode tornar-se outra coisa, simbolizar novos sentidos. Pode-se dizer que é o que ocorre com Evita e seu corpo. Eva Perón, a partir de sua participação na vida política da Argentina, torna-se, depois de sua morte, um mito. E seu corpo é o símbolo deste mito.

Quando Tomás Eloy Martínez publicou Santa Evita (1995), já se haviam passado quarenta e três anos desde a morte de María Eva Duarte de Perón. Entretanto, Evita continuava sendo uma referência para os argentinos. Eva Perón é um dos personagens históricos sobre quem

24

Analisar Santa Evita a partir da estética da recepção, considerando o leitor e a formação de sentido, seria um caminho possível, no entanto isto conduziria a outros rumos distintos dos objetivos desta dissertação.

mais se escreveu na Argentina. Seu mito tem sido elaborado em várias versões, sob formas variadas.

Segundo Beatriz Sarlo (1999, p. 302), depois de sua morte, Evita se converteu em mito:

Além de sua história real e de sua personalidade, Evita se converteu, assim que morreu, num mito ou, melhor dizendo, em vários mitos, pois sobre ela se projetaram distintas imagens identificadoras do peronismo: a providente, a mediadora entre o líder e seu povo e a combativa e militante, afastada das manobras táticas de Juan Domingo Perón. Em conjunto, simbolizou o peronismo irredento posterior a 1955.

Eva Perón morreu em julho de 1952. Em vida havia sido tudo: “porta-bandeira dos

humildes” e mulher do chicote. Morta, converteu-se em um mito: força mobilizadora de

energias sociais, princípio de identificação, promessa e utopia.25

O historiador Felipe Pigna (2007, p. 13) afirma que Eva Perón reúne todas as condições para ser um mito: chegou ao ponto mais alto partindo de muito baixo; morreu muito jovem e no esplendor da vida; despertou sobre si todos os sentimentos menos um – a indiferença; o amor de seu povo, os descamisados, sobreviveu a sua morte; era um dos símbolos mais evidentes do movimento peronista.

Em Santa Evita, o que se faz é reconstruir este mito que já existia na sociedade argentina, destacando, sobretudo, o cadáver de Evita que o simboliza. Como afirma Barthes (1978, p. 199- 200), o mito é uma fala, uma narrativa que conforma um signo; é um modo de significação, uma forma. Como forma, tudo pode constituir um mito, desde que seja susceptível de ser julgado por um discurso. Assim, o discurso do narrador, que conta as aventuras ou desventuras do cadáver de Evita, fundamenta sua versão do mito. O narrador tem consciência de que faz uma versão: “Cada quien construye el mito del cuerpo como quiere, lee el cuerpo de Evita con las declinaciones de su mirada. Ella puede ser todo” (MARTÍNEZ, 1995, p. 203).26

Assumindo a função de teórico da literatura, o narrador enumera os elementos que construíram o mito de Evita na Argentina (MARTÍNEZ, 1995, p. 183-197): 1º - ascensão; 2º - morte precoce; 3º - atuação política; 4º - amor de conto de fadas; 5º - fetichismo popular; 6º - relato das doações; 7º - monumento inconcluso.

25

Tradução nossa. No original: “Más allá de su historia real y de su personalidad, Evita se convirtió, luego de muerta, en un mito o, mejor dicho, en varios mitos, pues sobre ella se proyectaron distintas imágenes identificadoras del peronismo: la providente, la mediadora entre el líder y su pueblo y la combativa y militante, alejada de las maniobras tácticas de Juan Domingo Perón. En conjunto, simbolizó al peronismo irredento posterior a 1955.

Eva Perón murió en julio de 1952. En vida había sido todo: “abanderada de los humildes” y mujer del látigo. Muerta,

se convirtió en un mito: fuerza movilizadora de energías sociales, principio de identificación, promesa y utopía”.

26Em português: “Cada um lê o mito do corpo como quer, lê o corpo de Evita com as declinações de seu olhar. Ela pode ser tudo” (MARTÍNEZ, 1996, p. 176). Utiliza-se, daqui para frente, em todas as notas contendo a tradução, a

edição em português publicada no Brasil pela Companhia das Letras, cuja referência completa encontra-se nas referências bibliográficas.

Sua ascensão foi meteórica: levou apenas quatro anos para sair do anonimato de pequenos papéis na rádio e chegar ao posto de Primeira Dama e a “un trono en el que ninguna mujer se había sentado: el de Benefactora de los Humildes y Jefa Espiritual de la Nación” (MARTÍNEZ, 1995, p. 183).27 O pouco tempo contribui para intensificar e impactar o povo, tanto no que diz respeito a suas realizações como à ideia de sua perda, ou seja, de sua morte. Além disso, permite a identificação da história de Evita com a dos contos de fadas. Evita é ainda a “Cenicienta de las telenovelas” (MARTÍNEZ, 1995, p. 203), a que concretizou o sonho das garotas.

O fato de ter morrido ainda jovem, aproxima Evita ao músico e cantor Carlos Gardel e do líder revolucionário Che Guevara, outros mitos argentinos, falecidos em 1935 e em 1967, respectivamente. Mas a idade que tinha ao falecer também a aproxima de Cristo, o que remete ao imaginário de sua sacralização. O narrador esclarece que o que passa com os que morrem jovens é que sua mitologia se alimenta tanto do que fizeram como do que poderiam fazer se vivessem ainda, o que permite várias especulações (MARTÍNEZ, 1995, p. 185).

Como Robin Hood, Evita não se resignou a ser vítima (MARTÍNEZ, 1995, p. 186). Antes de conhecer Perón, já fazia trabalhos de assistência aos necessitados, talvez impulsionada por sua situação pessoal. Após conhecê-lo, ampliou sua atuação, criando a Fundação de Ajuda Social María Eva Duarte de Perón para oferecer “una vida digna a las clases sociales menos favorecidas” (MARTÍNEZ, 1995, p. 189)28

e para fazer desaparecer as obras de caridade das damas da sociedade. Evita considerava a assistência um direito do cidadão e não caridade que chamava “ostentação da riqueza”, como se pode verificar em La ra zón de mi vida (PERÓN, 1951, p. 182), livro escrito, ou ditado a outros, por Evita.

A história de amor entre Perón e Evita se parece com a dos contos de fadas. Ela desejava o melhor homem. Pensou encontrar este ideal em Perón e conseguiu conquistá-lo. O narrador, de forma onisciente e alimentando o mito, diz que Evita sentia que estavam predestinados a estarem juntos. Perón era o redentor e ela, a oprimida (MARTÍNEZ, 1995, p. 191). Conheceram-se durante um evento beneficente, em 15 de janeiro de 1944, no ginásio Luna Park, em prol das vítimas do terremoto de San Juan. O narrador diz que Evita criou situações para conseguir sentar-

27Em português: “um trono jamais ocupado por mulher alguma: o de Benfeitora dos Humildes e Chefe Espiritual da Nação” (MARTÍNEZ, 1996, p. 73).

se ao lado de Perón e, quando apresentada a ele, teria lhe dito “gracias por existir” (MARTÍNEZ, 1995, p. 192).29

Havia também o fetichismo, o que, segundo o narrador (MARTÍNEZ, 1995, p. 193-194), conferiu grande importância ao mito. Vários objetos tocados por Evita passaram a fazer parte do seu culto.

O que Martínez narrador chama “relato dos dons” são as histórias que cada família peronista conta, quer dizer, todas as famílias possuem um relato de algo que lhes doou Evita, e que as faz agradecidas. Assim, “la tradición oral va de mano en mano, el agradecimiento es infinito. Cuando llega el momento de votar, los nietos piensan en Evita” (MARTÍNEZ, 1995, p. 195).30 Tanto os eleitores como os militantes políticos de hoje seguem alimentando-se da figura de Evita, muitas vezes ainda em matéria bruta, sem reelaborá-la.

A ideia do Monumento ao Descamisado, concebida por Evita em 1951, em cujo projeto original havia no centro um trabalhador musculoso, e que depois mudou para a figura da própria Evita, além de um sarcófago, não se realizou: “Después de los funerales, la euforia del monumento se fue apagando. (… ) Pero la memoria fúnebre de Evita no se ha movido de ese lugar” (MARTÍNEZ, 1995, p. 196).31

Tudo isso contribuiu para que se formasse o mito de Evita. Para construir sua versão do mito, o narrador segue uma estrutura básica: narra a origem de Eva Perón, quem foi, o que pensavam dela, o que aconteceu a seu cadáver e o que representa para a sociedade.

Sobre a origem de Eva Perón, o narrador destaca que veio de “baixo”, era pobre, filha natural, atriz medíocre que, ao começar a trabalhar era “una joven de facciones tristonas y busto escuálido” (MARTÍNEZ, 1995, p. 82).32

No entanto, se transformou rapidamente após conhecer Perón, e tempos depois “tenía la mirada llena de cicatrices y hablaba con voz imperativa” (MARTÍNEZ, 1995, p. 84).33 Sua origem foi determinante em sua trajetória e atuação. Pensava em solucionar os problemas mais elementares da classe baixa (trabalho, casa, saúde) talvez porque ela mesma não teve estas coisas. Pensava na justiça social, porque talvez ela própria tenha sido humilhada pelas senhoras das entidades de caridade. Presenteava as crianças com

29Em português: “Obrigada por existir” (MARTÍNEZ, 1996, p. 167).

30Em português: “A tradição oral segue de mão em mão, a gratidão é infinita. Quando chega o momento de votar, os netos pensam em Evita” (MARTÍNEZ, 1996, p. 169).

31 Em português: “Passados os funerais, a euforia do monumento foi se apagando. (...) Mas a memória fúnebre de Evita não arredou pé desse lugar” (MARTÍNEZ, 1996, p. 170).

32Em português: “uma jovem de traços tristonhos e busto esquálido” (MARTÍNEZ, 1996, p. 71).

brinquedos, porque quiçá ela mesma não os teve na infância. Queria desesperadamente ser atriz, porque não tinha voz. Tratava o povo como provavelmente queria que a tivessem tratado. Sua origem a define; se não fosse pobre e ilegítima, provavelmente não conheceria tão bem os “grasitas”.34

Narrar quem foi Eva Peron não é tarefa fácil, sobretudo porque despertou sentimentos intensos e opostos que lhe renderam títulos e epítetos os mais diversos. A maneira como se referiam a ela já mostra o surgimento do mito, pois este tem origem oral e só depois se transforma em relato escrito.

Martínez narrador aponta os apelativos com que os militares mencionavam a Evita: “a Evita se le decía “esa mujer”, pero en privado le reservaban epítetos más crueles. Era la Yegua o la Potranca, lo que en el lunfardo de la época significaba puta, copera, loca” (MARTÍNEZ, 1995, p. 22).35 Além desses, havia: “Bicha, Cucaracha, Friné, Estercita, Milonguita, Butterfly” (MARTÍNEZ, 1995, p. 131).36 Em nota de pé de página, o narrador esclarece que:

Yegua y Potranca eran formas corrientes de aludir a Evita entre los oficiales opositores a Perón desde, por lo menos, comienzos de 1951. Friné y Butterfly fueron apodos puestos de moda por las columnas de Ezequiel Martínez Estrada en el semanario Propósitos. Bicha y Cucaracha eran, según Botana [Helvio Botana], nombre de la vagina en el

lunfardo carcelario. Estercita y Milonguita derivan del tango “Milonguita”, compuesto

en 1919 – año del nacimiento de Evita – por Samuel Linning y Enrique Delfino. Su estrofa más celebrada es ésta: ¡Estercita! / Hoy te llaman Milonguita, / flor de lujo y de placer, / flor de noche y cabaret. / !Milonguita! / Los hombres te han hecho mal, y hoy darías toda tu alma / por vestirte de percal (MARTÍNEZ, 1995, p. 131).37

Não recebeu apenas apelidos depreciativos, mas também títulos honoríficos por parte do povo: “los títulos honoríficos se acumulaban sobre la agonizante Evita: Abanderada de los Humildes, Dama de la Esperanza, Collar de la Orden del Libertador General San Martín, Jefa

34

Segundo o Diccionario del habla de los argentinos (2008; referência completa ao final), o adjetivo coloquial depreciativo grasa refere-se ao que expressa ou manifesta vulgaridade. O que se conclui, portanto, é que ao empregá-lo no diminutivo, Evita estabelecia uma relação de carinho com os trabalhadores pobres, considerados vulgares pelas classes alta e média.

35 Em português: “Evita era chamada de “essa mulher”, mas em conversas privadas lhe reservavam alcunhas mais

cruéis. Ela era a Égua ou a Potranca, o que na gíria portenha da época significava puta, vadia, louca” (MARTÍNEZ, 1996, p. 21).

36

Na edição em português, tais termos não foram traduzidos (MARTÍNEZ, 1996, p. 114).

37 Em português: “Yegua

[égua] e Potranca eram maneiras de os oficiais opostos a Perón se referirem corriqueiramente a Evita desde, pelo menos, 1951. Friné [lendária prostituta da Roma antiga] e Butterfly [borboleta] foram apelidos lançados por Ezequiel Martínez Estrada na sua coluna do semanário Propósitos. Bicha [eufemismo para cobra] e Cucaracha [barata] eram, conforme Botana, nomes para vagina na gíria carcerária portenha. Estercita e

Milonguitaderivam do tango “Milonguita”, composto em 1919 – ano do nascimento de Evita – por Samuel Linnig e

Enrique Delfino. Sua estrofe mais celebrada é a seguinte: ¡Estercita! / Hoy te llaman Milonguita, / flor de lujo y de placer, / flor de noche y cabaret. / !Milonguita! / Los hombres te han hecho mal, y hoy darías toda tu alma / por vestirte de percal” (MARTÍNEZ, 1996, p. 115).

Espiritual y Vicepresidente Honorario de la Nación, Mártir del Trabajo, Patrona de la provincia de La Pampa, de la ciudad de La Plata y de los pueblos de Quilmes, San Rafael y Madre de Dios” (MARTÍNEZ, 1995, p. 20).38

No contato com o cadáver, verificam-se duas atitudes opostas: enquanto o embalsamador, doutor Pedro Ara, queria protegê-lo e preservá-lo, referindo-se a ele respeitosamente – Senhora (MARTÍNEZ, 1995, p. 132), o Coronel Moori Koenig o odiava e queria destruí-lo, ainda que não pudesse fazê-lo.

Da mesma foram, observa-se a oposição de sentimentos que Evita despertava no modo como era chamada. Embora houvesse os que a chamavam de forma depreciativa, os que a amavam chamavam-na, carinhosa e familiarmente, Evita e, como Pedro Ara, Senhora. Esse substantivo similar ao da Virgem Maria – Nossa Senhora – indica a passagem ao âmbito do sagrado. De Senhora, Evita passa a Santa, Santa Evita, Nossa Mãe (MARTÍNEZ, 1995, p. 262, 390).

Muito antes de Eva tornar-se “Evita”, sua mãe, sem saber, vaticinou seu destino mítico nomeando-a María Eva. De acordo com a tradição cristã, Eva foi a primeira mulher, a mãe da humanidade e também a primeira pecadora, responsável pelas dores e pelo papel subjugado de todas as mulheres. Seu primeiro nome, María, por sua vez, é o da mãe, da protetora de todos, da boa que consola e que intercede diante de Deus por seus filhos, é a compadecida. Há controvérsias sobre a ordem de seus nomes. Alguns dizem que seria Eva María e que, para o casamento com Perón, foi alterado, colocando-se o nome da santa antes do da pecadora. O que importa é que em seu nome estava o que Evita representava, a santa e a pecadora, ou seja, seu nome contribuiu para seu mito.

Esta alternância de sentimentos e de maneiras de nomear Evita é perceptível no diálogo entre o Coronel Moori Koenig, outro coronel, Ferrucio, sua esposa, Ersilia, e um homem nomeado como Parientini, no balneário onde o Coronel esteve confinado enquanto os militares davam um destino ao corpo de Evita. Ersilia defende a Evita: “Con las mujeres, Evita no tenía problemas. Yo la habría cuidado. Habría tenido con quién conversar. No me sentiría tan sola”

38Em português: “os títulos honoríficos se acumulavam sobre a agonizante Evita: Defensora dos Humildes, Dama da

Esperança, Colar da Ordem do Libertador General San Martín, Chefe Espiritual e Vice-presidente Honorária da Nação, Mártir do Trabalho, Padroeira da província de La Pampa, das cidades de La Plata, Quilmes, San Rafael e

(MARTINEZ, 1995, p. 295).39 Ya para Parientini, Evita “era una resentida. Se daba corte con la plata de los otros” (MARTÍNEZ, 1995, p. 296).40 Ersilia o chama de traidor: “Ella no tenía

ninguna obligación de hacer lo que hizo. (…) Pudo vivir a lo grande y andar de fiesta, como las otras primeras damas. Y no. Se rompió el alma por los pobres. Se mató. Vos mejor te callás, Caín. Vos fuiste peronista hasta el año pasado” (MARTÍNEZ, 1995, p. 296).41 Esse diálogo parece revelar os dois posicionamentos acerca de Evita: ou era amada, ou odiada, e para qualquer lado havia argumentos.

Enquanto os humildes a amavam, a elite que a odiava a via de uma maneira peculiar: “Los argentinos que se consideraban depositarios de la civilización veían en Evita una resurrección obscena de la barbarie. (…) La súbita entrada en escena de Eva Duarte arruinaba el pastel de la

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 51-61)