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Nas tramas de Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá: crítica filológica e estudo de sexualidades

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(1)

I

NSTITUTO DE

L

ETRAS

P

ROGRAMA DE

P

ÓS

-

GRADUAÇÃO EM

L

ETRAS E

L

INGUÍSTICA

A

RIVALDO

S

ACRAMENTO DE

S

OUZA

Nas tramas de Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá:

crítica filológica e estudo de sexualidades

Salvador 2014

(2)

Nas tramas de Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá:

crítica filológica e estudo de sexualidades

Tese apresentada ao Programa de Pesquisa e Pós-graduação em Letras e Linguística, Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, como requisito para obtenção do grau de Doutor em Letras.

Orientador: Prof.ª Dr.ª Rosa Borges dos Santos

Salvador 2014

(3)

Sistema de Bibliotecas - UFBA

Souza, Arivaldo Sacramento de

Nas tramas de Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá: crítica filológica e estudo de sexualidades / Arivaldo Sacramento de Souza.- 2014.

359 f.: il

Anexos

Orientador: Prof.ª Drª. Rosa Borges dos Santos

Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia. Instituto de Letras. Salvador, 2014.

1. Filologia. 2. Teatro. 3. Homosexualidade. I. Santos, Rosa Borges dos. II. Universidade Federal da Bahia. III. Instituto de Letras. IV. Título.

CDD – 401 CDU - 80

(4)

A meu tio Pedro Barros, homem negro e homossexual que me ajudou a entender a vida.

(5)

Aos meus ancestrais por tudo que me têm concedido! Adupé!

A Deus – porque minha mãe me ensinou –, mas não por aquilo que insistem em dizer sobre Ele...

Às minhas irmãs-mainha, Line, Mari-e-Ári, Darlene, meu Ari, Taína e a meu pai (pela ironia que isso provoca)...

A Glaybson, meu amor pleno e absoluto...

À minha professora-orientadora-amiga-conselheira Rosa Borges, obrigado pelos momentos de (im)paciência...

À Prof.ª Risonete Souza, pela afetividade sem igual...

À Prof.ª Célia Telles, pelos biscoitos e por tanto que não se pode dizer só aqui... Ao Prof. Marcello Moreira, por todas as referências, comentários e auxílios...

Aos meus amigos Cris Daltro, Hugo, Thiago e Ricardo por todas as andanças, socorros e providências de São Jorge...

À Rosinês de Jesus, pela beleza e encanto diário...

A Carlos Felipe, Danniel Carvalho, Lucas Santos e Ton Israel, por todos os DPs com alçamentos e traduções e transcrições revisadas...

A Antônio Eduardo (Dudu), pelo encanto, serenidade e todas as crises e fidelidade... À Lívia Magalhães por toda a ajuda com os recursos informáticos...

À ETTC, especialmente, a Isabela Almeida e Luís César que me mostraram que Greta Garbo somos nós!

(6)

[...]

Não pensem que é um papo torto É só um jeito de corpo

Não precisa ninguém me acompanhar1 [...]

[...] Fui fogo, depois de ser cinza. Ah, algum, isto é que é, a gente tem de vassalar. Olhe: Deus come escondido, e o diabo sai por toda parte lambendo o prato... Mas eu gostava de Diadorim para poder saber que estes gerais são formosos [...]2.

1 VELOSO, Caetano. Jeito de corpo. In: In:______. Letra só: sobre as letras. São Paulo: Companhia das

Letras, 2003.

(7)

Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá – texto de Fernando Mello que dramatiza

uma relação homoerótica conturbada entre um enfermeiro idoso e um jovem desabrigado do interior do Rio de Janeiro – tem sido encenada desde a década de 1970 com grande repercussão no cenário artístico nacional brasileiro, inclusive, surpreendentemente, no contexto político sob o qual o Brasil viveu o regime de repressão ditatorial militar. A história de todo esse processo ficou documentada no Arquivo Nacional de Brasília, no Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas, e nos textos dos jornais de grande circulação, a partir dos quais podem ser recuperadas as tensões culturais e os discursos de repressão às expressões de sexualidades dissidentes. É exatamente por isso que, ao estudar essa tradição textual e a recepção do texto de Mello, podemos compreender o problema posto por esta pesquisa, qual seja: o estudo crítico-filológico dos scripts teatrais de Greta Garbo... que encenam as homossexualidades, observando as inter-relações entre o processo de transformação pela circulação social do texto com as ações, muitas vezes coercitivas e homofóbicas, de diferentes sujeitos que mediaram a liberação, veto ou corte de trechos da peça. Para isso, do ponto de vista teórico-metodológico, investimos, em diálogo com as teorias de desconstrução da metafísica tradicional, na renovação da práxis filológica no sentido de entendê-la como uma atuação crítica e investigativa das materialidades textuais, visando à leitura das pluralidades tanto das lições de cada script quanto das intervenções censórias que transformaram o texto. Assim, ao passo que compreendemos as formas de sociabilidades textuais da peça de Mello, experienciamos uma reflexão teórica sobre: (i) a atuação crítica do filólogo como intelectual humanista contemporâneo; (ii) a construção de edições e arquivos hipertextuais de orientação pragmática que escapam à gramática do cientificismo teleológico editorial; e (iii) a leitura filológica para resgate de memórias e de narrativas de sujeitos destituídos do discurso historiográfico oficial.

(8)

Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá – a Fernando Mello´s text that dramatizes a

troubled homoerotic relation between an old nurse and an unsheltered young man in the countryside of Rio de Janeiro – has been acted since the 1970s with great repercussion in the national Brazilian artistic scenario, including, surprisingly, in the political context under which Brazil experienced dictatorial military repression. The history of all this process is documented in the National Brazilian Archive, in the Censorship Division Fund of Public Entertainment, and in the texts of widely circulated newspaper, from which the cultural tensions and the repressive discourse to the dissident sexual expressions can be recovered. This is the reason why by studying this textual tradition as well as Mello´s text reception, it is possible to understand the problem this research poses: the philological-critical study of the theatrical scripts of Greta Garbo… that act homosexualities, by observing the interrelations between the transformational process by the social circulation of the text with the action, many times homophobic and coercive, from different subjects that mediated release, interdiction or cut in parts of the play. For so, from a theoretical-methodological standpoint, we invested, in a dialogue with the deconstruction theories of traditional metaphysics, in the renewal of philological praxis to understand it as an investigative and critical act of textual materialities, aiming the reading of pluralities not only of the lessons of each script, but also the censored interventions that transformed the text. Thus, as we understand the textual sociability ways of Mello´s play, we experience a theoretical reflection about: (i) the critical work of the philologist as a contemporary humanist intellectual; (ii) the construction of editions and hipertextual archives of pragmatic orientation that escape the grammar of the editorial teleological scientism; and (iii) the philological reading for rescuing the memories and narratives of subjects deprived of official historiographical discourse.

(9)

Figura 1: Capa LP Extra 11

Figura 2: Edótica: edição crítica 58

Figura 3: Carimbo DPF – Superitendência Regional/RJ 133

Figura 4: Carimbo da Sociedade Brasileira de Autores Teatraos – Feira de

Santana, BA 134

Figura 5: Exemplo da sumarização dos contextos de [D70] com [I74] e [D75] 137

Figura 6: Index AHGG 242

Figura 7: Estréia 242

Figura 8: Scripts 243

Figura 9: Scripts reunidos 244

Figura 10: Script 70 244

Figura 11: Balões de comentário 245

Figura 12: Extras 246

Figura 13: Órgão Central de Censura 249

Figura 14: Órgãos Centrais de Censura e Descentralizados de Censura 251

Figura 15: Atores da montagem 262

Figura 16: Datiloscrito 1970, folha 44 267

Figura 17: Parecer 1, 27 de dezembro de 1971 268

Figura 18: Parecer 2, 31 de dezembro de 1971 282

Figura 19: Parecer 3, 14 de janeiro de 1972 285

Figura 20: Carimbo de liberação 288

Figura 21: Parecer do Ensaio Geral 289

Figura 22: Mário Gomes, de Renato; Arlete Salles, de Mary; e Nestor

Montemar, de Pedro 295

Figura 23: Renato e Pedro 296

Figura 24: Certificado de Censura anverso 297

Figura 25: Certificado de Censura verso 298

Figura 26: Valores dos ingressos da peça por ano 301

Figura 27: Prisão de homossexuais na Cinelândia 304

Figura 28: Parecer da COARTE 310

Figura 29: Cortes no script da COARTE 311

Figura 30: Relatório de Ensaio Geral COARTE 314

Figura 31: Parecer n. 13524/74 317

Figura 32: Despacho do Chefe da DCDP 318

Figura 33: Modificações Textuais nos scripts 324

Figura 34: Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá (COARTE) 332

Figura 35: Capa da Revista da SBAT 333

Figura 36: Mário Gomes e o caso da cenoura 335

Figura 37: Confronto entre os testemunhos do Script D75 338

(10)

Quadro 1: Tipos documentais do Dossiê Greta Garbo 127

(11)

1 PRIMEIRAS PALAVRAS 11

2 OPERA PHILOLOGICA: TENÇÕES PARA A FILOLOGIA NA

CONTEMPORANEIDADE 21

2.1 DA NECESSIDADE DAS “ORIGENS” DA FILOLOGIA 26

2.2 DIFUSÕES DA PRÁTICA FILOLÓGICA NO OCIDENTE: AS EDIÇÕES

TELEOLÓGICAS 46

2.3 AFILOLOGIA EM XEQUE:CRÍTICOS,REVISORES E OUTROS PARRICIDAS 61

2.4 CRÍTICA FILOLÓGICA: DESAFIOS PARA UMA PROPOSTA 95

3 IKA KÓ DOGBÁ 116

3.1 PARA UMA EDIÇÃO DE GRETA GARBO, QUEM DIRIA, ACABOU NO IRAJÁ 121 3.1.1 A edição impressa ou a impressão de um devir 131

3.1.1.1 Critérios e transcrição 134

3.1.1.2 Transcrição semidiplomática com confronto sinóptico condensado 139

3.1.2 Arquivo Hipertextual de Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá 237

3.1.2.1 Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá em Arquivo Hipertextual 241

4

GRETA GARBO, QUEM DIRIA, ACABOU NO IRAJÁ OU A

HOMOSSEXUALIDADE ENCENADA: CIRCULAÇÃO E O PROCESSO DE CENSURA DE UMA PEÇA DE FERNANDO MELLO

247 4.1 GRETA GARBO, QUEM DIRIA, ACABOU NO IRAJÁ SOB CENSURA 260 4.1.1 A submissão à censura em 1971: Greta Garbo entre críticos,

censores e admiradores 266

4.1.2 Greta Garbo, em São Paulo e na Bahia, quem diria? 309

5 PALAVRAS FINAIS 344

REFERÊNCIAS 346

(12)

1PRIMEIRAS PALAVRAS

Em 1983, Gilberto Gil lançou um longplay chamado Extra, cuja capa3 trazia alegoricamente referências sobre o momento artístico, cultural e social por que os artistas brasileiros passavam e como eram interpretados nos anos em que os militares ocuparam o poder.

Na capa (cf. Figura 1), vemos o

cantor fotografado num

enquadramento de busto, naquilo que em fotografia chamamos de primeiro

plano, cujo objetivo primordial é captar a expressão facial do sujeito. Com um black

power, sem camisa, brinco na orelha, Gil apresenta o olhar enigmático que não nos

encara, mas olha ao largo horizonte; a boca ensaia um movimento entre o riso e a fala. Destacam-se, ainda, três figuras nos ângulos de um triângulo reto: no topo, um disco voador; embaixo, do lado esquerdo, um globo de vidro transparente; do lado direito, um veado, trotando cuja sombra nos orienta sobre o ponto com que a luz da câmera capturou o instante.

De todo esse arranjo, são as figuras simbólicas do veado e do disco voador que interessam aqui para perceber o projeto estético no disco. O título Extra dialoga com a imagem do disco voador na construção metafórica tropicalista, cuja androginia e dissidência dos componentes eram lidas socialmente como coisas de outro mundo, de extraterrestres. A imagem do veado lépido e faceiro aparece como um avatar moderno dos modos de atuar na cena artística e epistemológica, tanto pelos dribles dos aprisionamentos empreendidos pela política vigente no período, como pela subversão dos padrões estéticos e morais que orientavam o sentido da existência humana. O mundo não cabia mais nos contornos do pensamento do patriarcado cristão.

Uma das faixas do disco causou grande polêmica. Já pelo nome da canção

Veado, podemos perceber as provocações suscitadas pela referência e declaração da

3 GIL, Gilberto. O veado. Disponível em: <http://www.gilbertogil.com.br/

sec_disco_info.php?id=209&letra>. Acesso em: 13 out. 2013.

(13)

sexualidade “desviante” empreendida por Gilberto Gil. Prova disso é a leitura literal da imprensa, cuja “vontade de saber”4, por muitas vezes, localizou o cantor como homossexual. É o que lemos numa declaração de Gil, de junho de 2002, a Marcelo Fróes, comentando uma entrevista na Playboy:

[...] A imprensa insiste no assunto. “Eu falei que não gostava, que não tinha interesse pelo sexo masculino. Disse então que tinha uma coisa ideológica com o veado, porque gostaria de ter aptidões homossexuais. Ideologicamente, eu ambicionava aquilo – para ter uma visão mais aberta da sexualidade e do bissexualismo, afinal de contas, todo ser humano é filho de um pai e de uma mãe e traz no seu código genético elementos masculinos e femininos”, explica. “A gente ainda era muito tropicalista, com aquela coisa da provocação. Vestia macacão, usava lua e estrela no cabelo, dava bitoca diante de fotógrafo no camarim e usava trancinhas feitas de sabão no cabelo. Tudo aquilo era ideológico, e é um espírito que prevaleceu por muitos anos.” [...]5.

A utilização da (homos)sexualidade como estratégia de confronto dos padrões hegemonizados não se configura apenas como uma defesa de uma performance de prazer, e sim como uma atitude política contra os padrões severamente impostos pela tradição falocêntrica ocidental. A sexualidade, em sua dimensão política, é que está em questão. Conforme Bourdieu6, podemos pensar a construção e organização social a partir de uma narrativa masculina de dominação da diferença, cujo topo está marcado pelo homem, heterossexual, europeu, e a base pela diferença que surge comparativamente.

Desse modo, a androginia que desorganizava o modo de percepção do masculino e do feminino, a visão natural de homem, mulher e mundo, era vista como patologia desviante contra a qual, por bem da sociedade, o Estado deveria se posicionar. Precisamos ressaltar, contudo, que essa demanda não foi apenas de cima para baixo. O senso comum, embora fosse relativamente tolerante a um ou outro sujeito, hostilizava a homossexualidade por meio da argumentação detratora do cristianismo e do argumento biológico da reprodução.

A vigilância do comportamento sexual alcançou, no período na década de 1970, os domínios do Estado, não apenas os das relações do quotidiano, do reles xingamento. Havia repressão em bares, boates, nas ruas e em todos os lugares em que havia

4 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução Maria Thereza da

Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

5 FRÓES, Marcelo. Encarte da “Caixa Palco”. Disponível em:

<http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_info.php?id=22&texto>. Acesso em: 15 out. 2013.

6 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução Maria Helena Kühner. 4. ed. Rio de Janeiro,

(14)

homossociabilidades7. Numa canção posterior ao período, nos verso de Caetano Veloso, podemos compreender como a situação, ainda hoje, é preocupante: “[...] todo mundo quer saber com quem você se deita, nada pode prosperar [...]”8.

Mas o “veado” de Gil, ainda é mais simbólico, transborda a esfera sexual e atinge, ideologicamente, a dimensão política da vida e liberdade de expressão. A canção traz versos que revelam os problemas sociais que atingem tanto os homossexuais como os heterossexuais, bissexuais, para além das respectivas identidades de gênero e sexualidade. Embora se fale de sexo, a sexualidade não é essencializada como um fim em si mesmo, é, ao contrário, a condição de denúncia dos esquemas falaciosos de naturalização de concepções culturalmente construídas para operar regimes de opressão, de controle do outro e manutenção de hierarquias.

Assim, observamos que a canção Veado, ao encenar a homossexualidade também carrega uma discussão, sem reatividade, da condição do artista, das concepções de mundo alternativas ao padrão e das novas propostas de vivência de mundo. O testemunho direto disso vem da própria voz de Gil. Ele afirma em seu site Gilberto

Gil.com:

[...] naquele momento o tema estava muito associado a nós, artistas que fazíamos a defesa da estética do androginismo – incorporando inclusive a ornamentália feminina em princípio proibida ao homem mas enfim assumida por nossa geração como forma de afirmação de autonomia de ideia, proposta, gosto, de contestação do conservadorismo – e que nos colocávamos contra a histórica perseguição policial e a matança de homossexuais no Rio, em São Paulo, nas grandes cidades, como resultado de uma intolerância social em relação a eles. Por tudo isso, O Veado é uma música ideológica. [...]9

O “veado” configurava-se, assim, como uma tomada de construção – não de resposta ao padrão – de novas formas de enunciação de vida, à revelia do que o “conservadorismo” limitava. Era uma forma de militância social contra a homofobia que assolava diversos homossexuais no Brasil. Essa multiplicidade de sentidos está estampada desde a primeira estrofe da canção:

Como é lindo Escapulindo pulando

7 GREEN, James. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo:

Unesp, 2000.

8 VELOSO, Caetano. Luz de Tieta. In:______. Letra só: sobre as letras. São Paulo: Companhia das

Letras, 2003.

9 GIL, Gilberto. O veado. Disponível em: <http://www.gilbertogil.com.br/

(15)

Evoluindo Correndo evasivo Ei-lo do outro lado Quase parado um instante Evanescente

Quase que olhando pra gente Evaporante

Eva pirante [...]10.

A liberdade do cervídeo, “[...] escapulindo pulando/evoluindo/correndo evasivo [...]”, atesta os modos de liberdade, de não aprisionamento e sobrevivência que insiste em não se dobrar aos desígnios da ordem estabelecida. Marca-se pela evolução que nos olha, como o cantor na capa do disco, de longe só para mostrar-se perto. O olhar suspeito e suspensivo torna quaisquer formas de apreensão do real, na configuração naturalista de sexualidade, “evaporante”. O “veado”, e aqui está a angústia, não pode ser definido em termos de homem ou mulher; mas como outro construto de gênero e sexualidade, além da gramática determinística fundada pela mitificação da diferença biológica dos sexos. Trata-se de uma “Eva pirante”: “Eva”, signo de mulher cuja desobediência deu-se em nome do prazer e curiosidade pelo fruto proibido, pela vontade, demasiada humana, de experimentar; “pirante”, a atualização do mito como uma “desobediência epistêmica”11 do patriarcado judaico-cristão.

Retomar a tradição para desafiá-la a partir dos próprios mitos é uma constante do movimento contracultural. Esse processo pode ser compreendido dentro do que Derrida chama de “economia”12, isto é, um gesto crítico que mantém diálogo com aquilo que se quer desconstruir, aproveitando a função polissêmica e de conflito que todo signo carrega. A rasura no próprio signo é a garantia da fala de vozes de sujeitos silenciados pela indiferença praticada pelo discurso falocêntrico.

Na segunda estrofe, a situação se intensifica e a rede de referências se amplia drasticamente, à medida que imagens socialmente construídas sobre gays aparecem:

[...] O veado Greta Garbo

Garbo, a palavra mais justa Que me gusta

Que me ocorre

Para explicar um veado

10 GIL, Gilberto. O veado. Disponível em:

<http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_info.php?id=209&letra>. Acesso em: 13 out. 2013.

11 MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/projetos globais. Tradução Solange Ribeiro de Oliveira. Belo

Horizonte: UFMG, 2003.

12 DERRIDA, Jacques. A Escritura e a diferença. Tradução Maria Beatriz M. Nizza da Silva. São Paulo:

(16)

Quando corre

Garbo esplendor de uma dama Das camélias

Garbo vertiqualidade [...] Ser veado

Ser veado

Ter as costelas à mostra E uma delas

Tê-la extraída das costas Tê-la Eva bem exposta Tê-la Eva bem à vista [...]13.

A imagem de Eva transviada, dessa vez, é figurada em Greta Garbo, cuja referência objetiva nos remete à atriz sueca, cuja fama ocasionada pelos filmes da MGM (Metro-Goldwyn-Mayer) percorreu o mundo e preencheu as narrativas de identidade de diversos homossexuais e travestis, num processo revigorante de suplementação de identidades a partir de ícones pops.

Esse é o caso de um texto de ficção (e ao mesmo tempo “depoimento”14) produzido por Fernando Mello, em 1970, cujo título marca os trânsitos identitários que lemos em Veado de Gilberto Gil, a saber: Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá. Nesse drama, corpus deste dissídio crítico-filológico, como aponta o verso de Gilberto Gil, “o veado [é] Greta Garbo” e a história contada é de um idílio amoroso fraturado na solidão, na desilusão romântica frente à derrocada da experiência humana: o exílio.

O enredo é simples: Pedro é um homossexual mais velho, habitué das noites cariocas na região da Cinelândia, que, numa noite de muita chuva, conhece Renato, jovem interiorano, aparentemente inocente, perdido na selva de pedra. Interessado no rapaz, convida-o para passar a chuva em seu apartamento no Irajá. Essa chuva dura meses e é sob ela que constroem um caso de amor fortemente atravessado pela presença feminina de uma prostituta, loira e interiorana, chamada Mary. Pedro se reconhece como Greta Garbo, ou melhor, Pedro Garbo, Pedroca, Sebastiana, Rainha Vitória, Oscar Wilde e Matilde, num caleidoscópio de performances de identidade que mostram o abalo da erudição tradicional que marginalizou os gays e a disseminação no tecido da cultura de uma estética “garbosa”, para acompanhar a metáfora de Gil.

Escrita em 1970 e encenada a partir de 1973, quase que ininterruptamente, Greta

Garbo, apelido que ganhou entre o público e nas coberturas jornalísticas do período,

borra as fronteiras dicotômicas entre o real e o ficcional por trazer ao palco um

13 GIL, Gilberto. O veado. Disponível em:

<http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_info.php?id=209&letra>. Acesso em: 13 out. 2013.

(17)

“espelho” cruel da vida humana e de seus vazios. Sobre isso, em entrevista, o autor afirma: “[...] a peça é muito cruel, porque as coisas que eu falo são por si só cruéis. A peça só fala em solidão e fica provado que as pessoas estão terrivelmente sós. Não sei o que é engraçado, mas as pessoas riem [...]”15.

Esse riso, ao passo que pode ser compreendido como fruto direto da comédia, é também lido pela crítica como uma “angústia de quem vive”16, uma gargalha como a de Ulisses na fuga do ciclope Polifeno, com a diferença de que o monstro não vai embora, nem Ulisses escapa; persiste nas “esquinas da badalação”, nas batidas policiais, nos espancamentos e na felicidade clandestina de sujeitos patologizados científica e socialmente por uma sociedade que se inventou normal só para designar os anormais e reservá-los espaços inóspitos de sociabilidade.

Por isso, a fala de Mello vai ao encontro da letra de Gilberto Gil num duro escrutínio da condição de “veado”, isto é, da experiência dissidente da vida humana narrada para além da ficção existencial falocrata: “[...] Ser veado/Ter as costelas à mostra/E uma delas/Tê-la extraída das costas/Tê-la Eva bem exposta/Tê-la Eva bem à vista [...]”17. É assim que, atingidos pelas costelas à mostra de Eva, pela costela expropriada das costas adâmicas – livre do simulacro judaico-cristão da cópia de Adão – procuramos assumir um lugar de crítica através do conflito e do disparate.

Essa crise nada mais é do que a necessidade de constituir outras possibilidades narrativas outrora solapadas pelo discurso que se outorgou como absoluto. Desse modo, tomando a lição do hibridismo identitário de Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá, como criatividade e afirmação positiva de vida, produzimos também uma releitura da práxis filológica a fim de renovarmos a compreensão de texto em sua produção, transmissão e circulação social. Mais que uma odisseia de regresso, ou reclamação de um lugar perdido, ou ausência que precisa ser preenchida, neste texto tencionamos ler através dos acionamentos das vertentes críticas que constituem um aparato epistemológico de subversão do falocentrismo.

Para isso, tomamos Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá como corpus dissidente para leitura e transformação da nossa abordagem teórica e crítica empreendida por meio da Filologia. Assim, ao mesmo tempo em que lemos o texto

15 MORAES, Anamaria. Jovens em cena. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 4, 6 set. 1973. [grifo

nosso].

16 MORAES, Vinicius. Soneto da Fidelidade. In: ______. Poemas, sonetos e baladas. São Paulo:

Edições Gavetas, 1946. p. 15.

17 GIL, Gilberto. O veado. Disponível em:

(18)

criticamente, transformamos a nossa identidade teórica pelos conflitos epistemológicos surgidos no processo de leitura e construção da nossa práxis filológica.

Temos em mente que as perspectivas teóricas e científicas são construídas sob a historicidade de uma tradição cultural, são criações científico-sociais18, e os sujeitos-pesquisadores são formados em (e formadores de) uma episteme19 que elegeu a masculinidade como gramática de dominação nas relações políticas, sociais e culturais. Por isso, não parece grave afirmar que a cientificidade da tradição ocidental é uma obra fecunda da atuação do falocentrismo com a qual, sem desconfiança, não podemos ler

Greta Garbo.

Assim, atingidos pelo questionamento do status quo configurado pelas rasuras da enunciação das subjetividades epistemológicas divergentes20, podemos apresentar esta pesquisa a partir de três vertentes que se configuram como arranjos críticos atravessados pela “desconstrução”21, são eles: (i) Opera Philologica: tenções para a

Filologia na contemporaneidade; (ii) Ika Kó Dogbá; e (iii) Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá ou a homossexualidade encenada: Circulação e o Processo de censura de uma peça de Fernando Mello.

Esse atravessamento desconstrutor implica – em todas as seções – a releitura daquilo que foi recalcado na narrativa de mundo produzida na metafísica ocidental, isto é, visa trazer à baila o que foi ocultado em nome de uma interpretação de mundo que insiste em se enunciar como neutra, natural, universal, sem as marcas das subjetividades responsáveis por esse engendramento. Consoante a isso, Foucault afirma que

[...] a interpretação se confronta com a obrigação de interpretar a si mesma infinitamente e de sempre se retomar. Donde duas conseqüências importantes. A primeira é que a interpretação sempre será interpretação através de “quem?”; não se interpreta o que está no significado, mas, no fundo, quem colocou a interpretação [...]22.

Desse modo, a atuação como leitor no processo de desconstrução é um enfrentamento de perspectivas hermenêuticas entre nós e os outros, num exercício, a um

18 SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. (Orgs.) Epistemologias do Sul. São Paulo:

Cortez. 2010.

19 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 2005.

20 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato

Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

21 DERRIDA, Jacques. A Escritura e a diferença. Tradução Maria Beatriz M. Nizza da Silva. São Paulo:

Perspectiva, 1971.

22 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud e Marx: theatrum philosoficum. Tradução de Jorge Lima

(19)

só passo, de denúncia e alteridade. Essa leitura dos agenciamentos de sentido produzidos, repercute do primeiro ensaio mais teórico acerca da práxis filológica ao último, em que estudamos o processo de censura à peça. Isso é o que explica o fato de termos tomado Veado, de Gilberto Gil, para mostrar, de modo alegórico e com uma referência explícita ao nosso objeto de pesquisa, como a discussão de gênero e sexualidade presente na peça de Fernando Mello é uma discussão política, teórica e identitária de repercussão paradigmática na construção teórico-metodológica aqui empreendida.

Na primeira seção, dialogamos com a opera philologica, ou melhor, com o repertório legado desde a Antiguidade Clássica para a tradição ocidental tencionando buscar na história dos métodos aplicados ao tratamento dos textos práticas que não se orientassem exclusivamente pelo princípio da correção, unidade e coerência textual, concepções caras ao pensamento aristotélico. A questão que orienta a nossa argumentação é a seguinte: o desenvolvimento de uma Filologia preocupada com a pureza textual, preservação e harmonia decorre da idealização do texto como um todo “acabado”, uno, abstrato e “correto”.

Por outras palavras, o que queremos dizer é que, invariavelmente, a tradição metodológica da Filologia investiu forças para a construção de edições críticas que atendessem à ideia de texto harmônico, disposto conforme uma interpretação idealista. Para isso, ainda hoje, tem desenvolvido uma tecnologia de higienização das diferenças em detrimento dos estudos das pluralidades textuais.

De fato, a Filologia nunca escondeu os “erros”, “lições” ou “variantes” presentes na diversificação das tradições textuais; todavia, no lugar de perceber a historicidade dos gêneros, as relações entre a escrita e a oralidade que nos obrigam a rever as disposições textuais e trazer a história do processo de transmissão textual para a configuração da arquitetura da edição do texto (salvaguardadas as exceções que nos obrigam a não generalizar), ela criou um método universal de reconstrução de originais válido para textos da Antiguidade, do Medievo, da Modernidade e da Contemporaneidade. Ao longo da seção, discutimos sobre o que teria garantido essa unidade, senão o pensamento metafísico de matiz socrático-platônico, verve com a qual temos construído idealismos de diversas ordens que, no dizer nietzschiano, nos assalta do devir.

Além disso, o diálogo com o tradição dos métodos filológicos possibilitou compreender que as narrativas de origem do método filológico, desenvolvida pelos

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manuais de iniciação, relegaram os procedimentos construídos pela Escola de Pérgamo, que, ao contrário da Alexandrina que defendia o princípio da analogia (da semelhança) purgadora, lia os textos e procurava explicações pela anomalia, convivendo, se não de todo bem, com as “irregularidades”, procurando explicá-las por meio de leituras alegóricas.

A partir dessa imagem da anomalia, sem os compromissos estoicistas, pinçamos, à maneira derridiana, a lição pergamense do convívio com a diferença, apostando, com certa obviedade, que a criação se dá por meio da releitura das tradições, já que estamos certos de que interpretar é “[...] tecer um tecido com os fios extraídos de outros tecidos-textos [...]”23 recalcado pela hegemonização alexandrina que, cedo, compactuou tradição com o pensamento idealista socrático-platônico. Procuramos, ao final da seção, propor, de modo ensaístico, uma agenda para a atuação crítica a partir do grifo filológico, aclimatando já as renovações a partir do “paradigma emergente”24 da contemporaneidade, no que tange ao texto, à língua e à cultura.

Essa escolha pela leitura das anomalias, ou seja, do disparate textual – agora já sem vínculos com a abordagem pergamense – gerou a confecção da segunda seção Iká

kó dogbá. Esse título é um provérbio iorubá cuja tradução pode ser feita como “os

dedos não são iguais”, uma referência epistêmica que nos orienta pensar o convívio entre as diferenças, caras ao pensamento não ocidental tal qual o pergamense. O que nos dá fôlego nessa seção é a imagem da pluralidade na unidade e o desafio de desenhar um arranjo editorial em que o descentramento de todos os scripts de Greta Garbo, quem

diria, acabou no Irajá (datiloscrito de 1970, impresso de 1974 e o datiloscrito de 1975)

apareçam como centros provisórios. Assim, rompemos com o compromisso teleológico de estabelecimento textual, de matiz platônico, e assumimos a historicidade pelo viés crítico e filológico.

Depois da releitura do modus operandi da crítica filológica focando a dissidência histórica dos textos e da constituição de um artefato editorial pragmático, sem as expectativas que acomodam o texto na idealismo platônico, construímos uma terceira seção em que, à medida que explicamos o processo de censura à peça de Fernando Mello, deslindamos (a) a história do processo de repressão aos homossexuais no Rio de Janeiro; (b) as formas de homossociabilidades inventadas no contexto de repressão militar como forma de resistência; e (c) a leitura alegórica da homossexualidade como

23 DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Tradução Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 1991. 24 SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2008.

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expressão de resistência, provocação e denúncia frente ao conservadorismo moralista e opressor que, na década de 1970, encontrava no governo militar a expressão mais viril.

Essa terceira seção, portanto, concretiza a utopia de toda a pesquisa, afinal, é com ela que consolidamos, através da alegoria de “Eva à vista”, “Veado Greta Garbo”, “dama das camélias”, uma interpretação histórica de sujeitos homossexuais marginalizados da historiografia oficial. Além disso, renovamos nossa atuação intelectual filológica, conferindo-lhe um sentido político e atuante, principalmente, para o resgate da memória de homossexuais, muitos dos quais subalternizados pelas diferenças de raça e classe, reprimidos no contexto da ditadura militar; para a memória do teatro brasileiro; e para a experiência editorial da Filologia na contemporaneidade.

Por fim, precisamos discorrer acerca do sistema de referência e citação que adotamos neste texto. Temos como ponto consultivo e norteador as Normas Brasileiras da Associação Brasileira de Normas Técnicas25. Por isso, optamos pelo sistema de notas de referências pela agilidade com que podemos recuperar as informações, todavia não utilizamos as expressões abreviadas que são comuns a esse tipo de sistema, uma vez que, conforme a NBR10520, “[...] as citações da mesma obra podem ser referenciadas de forma abreviada, utilizando [...] expressões [...]”26 latinas abreviadas. Assim, compreendemos o “poder ser” como opção e não como a obrigação de um “deve ser” e, por essa razão, sempre repetimos a referência completa, evitando, pois, o uso cifrado dos “latinismos”.

25 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRAS DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 6023; 6024; 6027; 6028; 10520;

12225; 14724; 15287. Brasília, DF: ABNT, 2003-2011.

26 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRAS DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 10520. Brasília, DF: ABNT, 2002.

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2OPERA PHILOLOGICA: TENÇÕES PARA A FILOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE

Propor uma pesquisa que, nos dias de hoje, se afirme filológica é, para muitos estudiosos, uma questão bastante controversa. Primeiro, porque não são raras as narrativas que situam a Filologia numa das fases do passado (ultrapassado) de disciplinas mais contemporâneas, como é o caso das recentes abordagens dos estudos literários e da Linguística Moderna27. Além disso, não é raro que quase sempre se confunda Filologia com Linguística Histórica ou com os movimentos oitocentistas como foi o caso dos Neogramáticos28. Segundo, pelo fato de a Filologia estar quase sempre associada ao trabalho com o corpus grego e greco-latino29, ou seja, à Filologia Clássica. Terceiro, por ela estar associada a uma erudição tout court ratificadora de um humanismo etnocentricamente constituído e, portanto, com um compromisso estrito com o cânone ocidental. É exatamente por conta dessas tensões que a Filologia sofreu um recrudescimento e, não fosse a renovação de suas práticas, quase teria soçobrado.

Mas, afinal, em que consiste a Filologia e por que estamos buscando falar desse lugar em pleno século XXI? Essas são perguntas difíceis de responder e os caminhos são, da mesma forma, complexos; mesmo assim intentaremos apresentar nossas convicções de modo a enunciar os posicionamentos que escolhemos tomar.

À primeira vista, um dos caminhos encontrados pela maior parte dos pesquisadores e dos manuais da área30 para responder à questão proposta é recorrer à etimologia da palavra para a definição, muitas vezes confiados na objetividade da análise. Afirmam: o étimo vem do grego Φιλολογοζ que passou ao latim (e a diversas outras línguas) na forma philologus “amigo da palavra”, “[...] aquele que apreende a palavra, a expressão da inteligência, do pensamento alheio e com isso adquire conhecimentos, cultura e aprimoramento intelectual [...]”31. Diante dessa definição bastante ampla, não é de se estranhar que os sentidos da palavra tenham-se modificado à medida que foram reconfiguradas as disposições epistemológicas, sociais, culturais,

27 ROBINS, R. H. Pequena história da Linguística. Tradução de Luiz Martins Monteiro. Rio de Janeiro:

Ao Livro Técnico, 2004.

28 CANO AGUILAR, Rafael. Introducción al análisis filológico. Madridd: Castilia, 2000.

29 MAINGUENEAU, Dominique. O discurso literário. Tradução Adail Sobral. São Paulo: Contexto,

2006.

30 Mais adiante, discutiremos os saberes sobre a Filologia que circulam nos manuais de Crítica

Textual/Filologia e, então, apontaremos quais são os que deram base à nossa análise.

31 BASSETTO, Bruno Fregni. Elementos de Filologia românica. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 2005. v.1. p.

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políticas e econômicas das práticas de leitura e de cultura escrita – escopo no qual e a partir do qual se fez Filologia no Ocidente.

Para Celso Cunha, em Ofício de Filólogo, a palavra “filólogo” é registrada de maneira bastante polissêmica e pode ser flagrada da seguinte forma: em Platão, onde se documentou pela primeira vez o uso da palavra, Philólogos é usada, no Fedro, como adjetivo “‘admirador da palavra’, ‘que gosta de falar’, ‘bem falante’”32 e como substantivo, na República, “‘amigo do raciocínio, da argumentação’”33; em seguida, o sentido é alterado para “‘erudito’, ‘douto’, ‘letrado’”34 como evidenciaram os textos de Eratóstenes de Cirene (295?-214?); na acepção restrita de Crítica Textual, Cunha afirma que os gregos utilizavam as palavras “‘kritikós’ ou ‘grammatikós’”35; por fim, ele afirma que

[e]ssa ideia de ser filólogo um letrado erudito vai generalizar-se não só entre escritores gregos, como Estrabão e Dionísio de Halicarnasso, mas também entre os latinos Cícero, Suetônio e Sêneca. [...] E os autores subsequentes gregos e latinos, acentuaram cada vez mais essa relação da Filologia com os estudos literários de caráter erudito. É o que vemos em Plutarco (Morales 645c), Isócrates (Antidosis §316) e Cícero (Ad Atticum 13, 12, 3). Sêneca (Epistulae 108, 24) chega a conceituar a Filologia como a explicação, o comentário de textos dos escritores.36

A generalização de philólogos como eruditos de que trata Cunha, até então diletante, encontrará, com os filólogos alexandrinos dos séculos III e II a. C., “um labor fundamental para a preservação do patrimônio literário da humanidade. [Pois a] famosa biblioteca de Alexandria teria armazenado no primeiro século de sua existência de duzentos mil a 490 mil volumes [...]”37. Seria, então, entre os eruditos de Alexandria que a Filologia iria configurar-se como modelo a ser perseguido pelas gerações

32 CUNHA, Celso. Ofício de filólogo. In: ______. Sob a pele das palavras: dispersos. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira; Academia Brasileira de Letras, 2004. p. 341. (Organização, introdução e notas Cilene da Cunha Pereira).

33 CUNHA, Celso. Ofício de filólogo. In: ______. Sob a pele das palavras: dispersos. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira; Academia Brasileira de Letras, 2004. p. 341. (Organização, introdução e notas Cilene da Cunha Pereira).

34 CUNHA, Celso. Ofício de filólogo. In: ______. Sob a pele das palavras: dispersos. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira; Academia Brasileira de Letras, 2004. p. 341. (Organização, introdução e notas Cilene da Cunha Pereira).

35 CUNHA, Celso. Ofício de filólogo. In: ______. Sob a pele das palavras: dispersos. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira; Academia Brasileira de Letras, 2004. p. 341. (Organização, introdução e notas Cilene da Cunha Pereira).

36 CUNHA, Celso. Ofício de filólogo. In: ______. Sob a pele das palavras: dispersos. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira; Academia Brasileira de Letras, 2004. p. 341. (Organização, introdução e notas Cilene da Cunha Pereira).

37 CUNHA, Celso. Ofício de filólogo. In: ______. Sob a pele das palavras: dispersos. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira; Academia Brasileira de Letras, 2004. p. 341. (Organização, introdução e notas Cilene da Cunha Pereira).

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vindouras e cobraria o ânimo para salvaguardar, numa missão higienista e preservadora da aura de sentidos, os textos que constituem a suposta base do pensamento ocidental.

Dada essa amplitude temática e de atribuições e à potência conferida pelo capital legitimador, inclusive de importantes masters narratives38, vários intelectuais interessaram-se pela autoridade filológica e deram usos, funções e objetivos bastante diferentes. A cada paisagem epistemológica, a Filologia teve sua compleição renovada para atender às demandas de cada contexto sócio-histórico39, o que só intensificou a problemática para os que se arvoraram a defini-la de modo rigoroso. Por essa razão, a definição etimológica, produzida em contextos específicos da cultura grega e greco-romana, não pode ser usada de modo a-histórico, nem como pressuposto da primazia do sentido etimológico sobre os sentidos adquiridos nas redes discursivas nos variados contextos históricos.

Desse modo, convencemo-nos, cada vez mais, de que a posição que oferece melhor ângulo para o entendimento da Filologia é a leitura de sua constituição sócio-histórica40. Por isso, não podemos definir a Filologia de maneira tão simples como se só bastasse consultar um verbete num dicionário de língua vernácula ou mesmo outra obra lexicográfica mais específica em busca de um conceito rigoroso. Discutir Filologia é sempre, antes de tudo, lidar com certa memória senil, cujas feições são percebidas pelas fissuras das produções de edições e atividades críticas legadas, principalmente, por intelectuais humanistas e/ou os que, direta ou indiretamente, são herdeiros desse sistema de pensamento.

Em outra direção, escolhemos, aqui, apresentar os pontos de tensão sobre a questão sem que, ao final, pretendamos estabelecer a verdade sobre a Filologia ou constatar uma solução definidora. Nosso caminho será apenas o de apontar como compreendemos Filologia e por que resolvemos entendê-la, para os nossos fins, como ponto estratégico para confecção de posturas críticas gestadas por meio de leituras das

38 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do

nacionalismo. Tradução Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

39 ELIA, Sílvio. A Crítica textual em seu contexto sócio-histórico. In: ENCONTRO DE ECDÓTICA E

CRÍTICA GENÉTICA, 3; Anais... João Pessoa: UFPB; APML; FECPB; FCJA, 1993. p. 57-64.

40 Eis uma das possíveis contradições desta escrita: embora admitamos que seja a observação histórica das

práticas alcunhadas de filológicas o caminho mais certo para se chegar a uma compreensão da Filologia, não faremos nenhum escrutínio à maneira de uma “história da disciplina X”. Só abordaremos aspectos que julgamos necessários para a argumentação ora proposta, o que nos acarretará, certamente, incoerências, impertinências e “heresias” típicas de um candidato à Filologia. De um “jovem filólogo”, como disse Tavani ao Jean Marie D’Heur.

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interações entre língua e cultura nas tramas da produção, circulação e transmissão dos textos.

Sem pretensões exaustivas, mas também sem descuidar das principais questões para a discussão que propomos, tomaremos três grandes momentos capitais que, segundo os historiadores da Filologia, foram importantes para a constituição do modus

faciendi da “ciência filológica”, quais sejam: o contexto da Antiguidade, o movimento

Humanístico do séc. XVI e os desdobramentos que, a partir dele, se radicalizaram no séc. XIX. Em cada período desses, pretendemos destacar aspectos responsáveis, ainda que indiretamente, pela polissemia desafiadora que constitui, hoje, a abordagem filológica.

Assim sendo, abdicamos de quaisquer angústias ou obrigações típicas de explicações históricas de uma disciplina ou campo do saber, que se arvora em falar em nome da origem como lugar da verdade genuína. De fato, escapamos – com o perdão da metáfora inadequada – do princípio que orienta a chamada lectĭo antiquior, ou melhor, da ideia de que a “lição” mais antiga para os sentidos de philologĭa seja, de fato, a hierarquicamente verdadeira. Com isso, confessamos ser nossa leitura uma versão “interessada” em alguns aspectos relacionados aos estudos filológicos de tradição ocidental.

Esse argumento provém da leitura nietzschiana de Foucault, para quem:

[...] procurar [uma] origem é tentar recolher o que era “antes”, o “aquilo mesmo” de uma imagem exatamente adequada a si; é tomar como acidentais todas as peripécias que puderam ocorrer, todas as artimanhas, todos os disfarces; é querer tirar todas as máscaras para finalmente desvelar uma identidade primeira. Ora, se o genealogista tem o cuidado de escutar a

história em vez de crer na metafísica, o que ele aprende? Que por trás das coisas há “algo completamente diferente”: não absolutamente seu segredo essencial e sem data, mas o segredo de que elas são sem essência ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas. A razão? Mas ela nasceu, de forma inteiramente

“razoável”, do acaso. E o apego à verdade e o rigor dos métodos científicos? Da paixão dos cientistas de seu ódio recíproco, de seus debates fanáticos e infindáveis, da necessidade de vencer a paixão – armas lentamente forjadas ao longo de lutas pessoais. [...] O que se encontra no começo histórico das

coisas não é a identidade ainda preservada de sua origem – é a discórdia entre as coisas, o disparate [...].41

41 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a Genealogia e a História. In:______. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. 2. ed. Tradução Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense

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Assim, quando se aprontam respostas para as perguntas: “qual seria a identidade primeira da Filologia?”, “qual a real origem dela?” e “de onde viria o apego aos métodos científicos?”, temos sempre versões construídas “peças por peças” para fazer valer um projeto essencialista de Filologia, traduzido, muitas vezes, em argumentos de fidedignidade e preservação do original que, não raro, representam uma “vontade de poder”42.

Por isso, a investigação que pretendemos aqui tem por objetivo ler as configurações teórico-metodológicas assumidas como filológicas, a fim de tensionar as definições hegemônicas para outros enfoques possíveis e pouco privilegiados. Além disso, ao observarmos as práticas filológicas que foram, sumariamente, silenciadas (arquivadas) pela tradição, poderemos assumir renovadas ações filológicas.

Desse modo, ao escapar dos conceitos de origem e de verdade, queremos situar nossa leitura da história das práticas filológicas a partir de um “olhar perspectivo” que se opõe à história-continuidade. A recusa pela investigação da “origem” da Filologia dá-se pelo fato de esdá-se procedimento buscar a “essência exata das coisas [...] anterior a tudo que é externo, acidental e sucessivo”43.

A outra questão diz respeito à “história-continuidade”. Para Foucault,

[a] história contínua é o correlato indispensável à função fundadora do sujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou poderá ser devolvido; a certeza de que o tempo nada dispersará sem reconstituí-lo em uma unidade recomposta; a promessa de que o sujeito poderá, um dia – sob a forma da consciência histórica –, se apropriar, novamente, de todas essas coisas mantidas a distância pela diferença, restaurar seu domínio sobre elas e encontrar o que se pode chamar sua morada. Fazer da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da consciência humana o sujeito originário de todo o devir e de toda prática são as duas faces de um mesmo sistema de pensamento. [...]44

Por isso, a nossa indagação se afasta desse cenário, afinal ele pretende criar uma linearidade que exclui, camufla e esconde a diferença, a ruptura, a descontinuidade, a divergência e o desalinhamento dos acontecimentos. À medida que elabora uma narrativa pura, cujo método parece ser o da higienização dos desvios, excessos e dissidências, a história linear falseia uma versão da história que tem um compromisso

42 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução Paulo César de Souza. São

Paulo: Companhia das Letras, 1998.

43 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a Genealogia e a História. In:______. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. 2. ed. Tradução Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2005. p. 262. (Coleção Ditos e Escritos II).

44 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de

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com a naturalização dos fatos e, consequentemente, com a produção de uma verdade “objetiva”, quer dizer, sem os efeitos subjetivos de quem a produziu: plenamente imparcial.

Contra isso, o próprio Foucault argumenta e nos inspira a reconhecer as parcialidades de uma narrativa e assumir a perspectiva que visa flagrar os discursos que insistem em naturalizar princípios como “origem”, “verdade” e “pureza”... Nesse sentido, Foucault afirma que a

[...] história, genealogicamente dirigida, não tem por finalidade reencontrar as raízes de nossa identidade, mas, ao contrário, obstinar-se em dissipá-la: não busca demarcar o território único de onde viemos, essa primeira pátria à qual os metafísicos nos prometem que voltaremos: ela pretende fazer aparecer

todas as descontinuidades que nos atravessam [...]45

Pois é nessa obstinação de fazer emergir as descontinuidades que a perspectiva genealógica pode ajudar na investigação que constituiremos nesta pesquisa.

2.1DA NECESSIDADE DAS “ORIGENS” DA FILOLOGIA

Antes de fazer uma incursão, como dissemos “interessada”, nas pesquisas que versam sobre o contexto de emergência da Filologia, julgamos interessante observar o que alguns manuais revelam sobre as narrativas de origem da Filologia. Em geral, estão posicionadas como estratégia de definição (e, portanto, legitimação) da “ciência filológica”.

Escolhemos posicionar nossa mirada numa das atividades diversas que se abrigam sob a alcunha “Filologia”: a atividade de edição de texto (Crítica Textual). Isso se deve ao fato de ter sido, segundo Erich Auerbach46, a atividade que mais preservou a compleição da Filologia no Ocidente.

Por essa razão, recorremos aos manuais de Crítica Textual de maior circulação, ou seja, aqueles que, devido ao sucesso – muitas vezes fruto da escassez – ou devido à recente publicação, constituem referências bibliográficas sobre a matéria. Da análise, observamos que todas as obras apontaram as origens da Filologia para Alexandria (onde

45 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a Genealogia e a História. In:______. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. 2. ed. Tradução Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2005. p. 279. (Coleção Ditos e Escritos II).

46 AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. Tradução José Paulo Paes. 4. ed. São Paulo:

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se formulou o princípio da analogia e unidade do texto), sem considerar, salvo algumas exceções, as divergências e problemáticas específicas daquele contexto.

Os livros consultados foram os seguintes: Introdução à Edótica47, de Segismundo Spina (publicado em 1977); Iniciação à Crítica Textual48, Leodegário de Azevedo Filho (publicado em 1987); La edición de textos49, Miguel Ángel Pérez Priego (publicado em 1997); Introducción al análisis filológico50, Rafael Cano Aguilar (publicado em 2000); Fundamentos da Crítica Textual: história, metodologia,

exercícios51, de Barbara Spaggiari e Maurizio Perugi (publicado em 2004);

Fundamentos de Crítica Textual52, de Germán Orduna, mas editado por Leonardo Funes y José Manuel Lucía Megías (2005); e Introdução à Crítica Textual53, de César Nardelli Cambraia (publicado em 2005)54.

A partir da análise, pudemos perceber que as apropriações das práticas alexandrinas, bem como as narrativas de fundação da Filologia, foram recortes que evidenciaram crenças e escolhas que não deixam de estar na companhia de lembranças e esquecimentos relacionados às vertentes filológicas de cada autor. No manual de Cambraia, talvez por ele ter dedicado um breve capítulo à questão, temos duas considerações que mereceram nossa atenção especialmente para os propósito desta pesquisa. São elas:

a) os alexandrinos não suprimiam passagens dos textos, apenas as assinalavam e comentavam;

b) além dos alexandrinos havia – e quase nenhum outro manual diz isso, a exceção de Spina que o faz com severa rapidez – a Biblioteca de Pérgamo, de orientação estoicista, onde também se fazia Filologia, mas não sob o princípio alexandrino da “analogia” (princípio de regularidade da língua), e, sim, pela “anomalia” (a organização pressupunha irregularidades).

47 SPINA, Segismundo. Introdução à Edótica: crítica textual. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1977. p. 60. 48 AZEVEDO FILHO, Leodegário. Iniciação em Crítica Textual. Rio de janeiro: Presença, 1987. p. 8. 49 PÉREZ PRIEGO, Miguel Ángel. La edición de textos. Madridd: Síntesis, 1997. p. 11-12.

50 CANO AGUILAR, Rafael. Introducción al análisis filológico. Madridd: Castilia, 2000.

51 SPAGGIARI, Barbara; PERUGI, Maurizio. Fundamentos da crítica textual: história, metodologia,

exercícios. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.

52 ORDUNA, Germán. Fundamentos de crítica textual. Madridd: Arco;Libros, 2005.

53 CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

54 Cabe-nos afirmar que há outras obras que, direta ou indiretamente, poderiam contribuir, porém não

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Outro manual que não escapa à constante narrativa sobre as origens da Filologia é os Fundamentos de Crítica Textual, de autoria de Germán Orduna55. No primeiro

capítulo da seção La “edición crítica”, podemos ler a seguinte declaração:

Esa rama especial de la Filología que, desde la época de los alejandrinos se ocupó de la edición de textos literarios y que, a través de siglos de exégesis bíblica formuló, en el siglo XVIII, los fundamentos de la moderna Crítica Textual, no tuvo dudas acerca de qué era una “edición crítica” porque, al menos, estaba claro que ésta era el objetivo y término de todos sus afanes y trabajos. Cuando, a lo largo del siglo XIX, desde los tiempos de Karl Lachmann hasta Gastón Paris, Joseph Bédier y Don Quentin, el arte de editar textos antiguos pasa a ocuparse de los escritos en lenguas surgidas en Europa durante el Medioevo, también los objetivos están claros y, por tanto, los problemas y discusiones se centran en la metodología más apropiada y eficaz para lograr esas ediciones dentro de la mayor seguridad científica56.

Notamos que o recurso histórico utilizado por Orduna é também aquele que remonta aos alexandrinos como o ponto de partida das práticas filológicas no Ocidente. Tal discurso inventa uma Filologia grega e latina que descarta as práticas dissidentes das práticas editoriais baseadas na correção do texto, principalmente, pelo dogma do

usus scribendi.

Mas a questão não é só essa. Ele nos dá provas de que a tradição filológica entende a prática dos alexandrinos como um paradigma que vai se aperfeiçoando, evolutivamente, até o ápice “de la mayor seguridad científica”57, passando, é claro, por Karl Lachmann até Gaston Paris, Joseph Bédier e Dom Quentin, num incessante culto monumental à tradição confeccionada em Alexandria. Também neste manual ignora-se que a crítica do texto não foi apenas higienização das intervenções espúrias da tradição, mesmo falando da prática alexandrina. Orduna mantém a hipótese transcendental de que a Crítica Textual teria sido sempre, ainda que por métodos diferentes (que iriam do mais subjetivo – precário, talvez – ao mais rigoroso), a busca pela edição de texto, isto é, pelo estabelecimento do texto.

55 ORDUNA, Germán. Fundamentos de crítica textual. Madrid: Arco; Libros, 2005. p. 17.

56 “Esse ramo especial da Filologia que, desde a época dos alexandrinos se encarregou da edição de textos

literários e que, através de séculos de exegese bíblica, formulou no século XVIII, os fundamentos da moderna Crítica Textual, não tinha dúvidas sobre o que era uma “edição crítica” porque, pelo menos, estava claro que esta era o objetivo e fim de todos os seus afãs e trabalhos. Quando, ao longo do século XIX, desde os tempos de Karl Lachmann até Gastón Paris, Joseph Bédier y Don Quentin, a arte de editar textos antigos passa a se encarregar dos escritos em línguas surgidas na Europra durante o medievo, também os objetivos estão claros e, portanto, os problemas e discussões se concentram na metodologia mais apropriada e eficaz para conseguir essas edições dentro da maior segurança científica”. [Tradução nossa].

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Da maioria das obras analisadas, podemos perceber uma forja da Filologia grega como uma prática quase que exclusivamente alexandrina. Assim, perguntamo-nos: quais seriam as razões, diretas ou indiretas, desses interesses? Qual a função dessas referências à origem grega da práxis filológica nos diversos manuais consultados? A seguir, levantamos, de modo mais sintético, algumas inferências que ajudam a ilustrar a perspectiva de nossa leitura:

a) a miragem de uma Filologia grega como prática exclusivamente analogista foi uma estratégia para legitimação de vertentes filológicas posteriores; b) a configuração da escola alexandrina quase sempre é exposta de modo

redutor, a ponto de apenas aparecerem grifados os aspectos que interessam às breves histórias da Filologia;

c) as referências dos manuais contemporâneos aos intelectuais alexandrinos já ilustra o ideal, ainda presente em abordagens editoriais teleológicas, de que é preciso recorrer às origens para “transliterar” a verdade;

d) o valor sócio-cultural (canônico) dos textos homéricos, sob os quais se experimentaram as mais relevantes atividades críticas alexandrinas, foi um fator decisivo para que vigorasse a crítica do texto através da diorthosis (διόρθωσις);

e) a Filologia alexandrina foi tomada como o gérmen que possibilitou, sob influência do pensamento hegeliano (Volksgeist), o nascimento da ciência filológica, cujo compromisso é da preservação e intelecção da cultura do mundo;

f) o traço que parece marcar a construção da Filologia ocidental é o preceito da “fidedignidade/fidelidade do texto”, isto é, o idealismo do texto – inspirado na crítica alexandrina. Esse traço vai ser reiterado pelas abordagens de estabelecimento de texto: tanto do texto original como da “última vontade do autor”, mas também da vertente que se preocupa com a constituição de

corpora para estudos linguísticos.

Desse modo, podemos afirmar que as diversas leituras das origens da Filologia funcionam como recortes, com “tesoura e cola”58, num interessante procedimento de

58 COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Tradução Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte:

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arquivamento59 da memória. Assim, foram recriadas, através de citações colhidas do tecido filológico alexandrino, os mitos de fundação não apenas da Filologia oitocentista, como também da Crítica Textual que se desenvolve durante o século XX. Para compreendermos ainda mais o recurso de citação, valemo-nos da metáfora construída por Antoine Compagnon, que narra o processo da “ablação” da seguinte forma:

[q]uando cito, extraio, mutilo, desenraizo. Há um objeto primeiro, colocado diante de mim, um texto que li, que leio; e o curso de minha leitura se interrompe numa frase. Volto atrás, re-leio. A frase relida torna-se fórmula autônoma dentro do texto. A releitura a desliga do que lhe é anterior e do que lhe é posterior. O fragmento escolhido, membro amputado; ainda não o enxerto, mas já órgão recortado e posto em reserva. Porque minha leitura não é monótona nem unificadora; ela faz explodir o texto, desmonta-o, dispersa-o. [...]60

Através dessa “colagem” de Compagnon, vislumbramos a compreensão do processo pelo qual qualquer narrativa é marcada, subjetivamente, por um trabalho de eleição de aspectos “relevantes” para a história. Não seria, pois, diferente para o caso da história da Filologia, da qual foram excluídas, recortadas, e mutiladas as vozes dissidentes da “Escola de Pérgamo” e reduzidas a vivacidade e a diversidade da atividade crítica desenvolvida pelos eruditos de Alexandria.

Assim, o percurso filológico ocidental foi uma trajetória de reinterpretações marcadas por contrastes culturais e sociais, que se plasmou nos diferentes modos de proceder a ação filológica. Tudo isso é confeccionado a partir da permanência do traço do ideal que, segundo Nietzsche61, foi muito caro à filosofia de Platão. Sobre isso, Derrida chega a afirmar que “[o platonismo] instala toda a metafísica ocidental na sua conceitualidade [...]”62.

Mas, especificamente no diálogo entre Fedro e Sócrates, quando se narra o mito de Theuth e Thamus sobre a invenção da escritura, é que ouvimos a seguinte declaração:

SÓCRATES – O uso da escrita, Fedro, tem um inconveniente que se assemelha à pintura. Também as figuras pintadas têm a atitude de pessoas

59 DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Tradução Claudia de Moraes Rego.

Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

60 COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Tradução Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte:

UFMG, 2007. p. 9.

61 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução Paulo César de Souza. São

Paulo: Companhia das Letras, 1998.

62 DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Tradução Rogério Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005. p.

Referências

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