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A F ILOLOGIA EM XEQUE : C RÍTICOS , R EVISORES E OUTROS P ARRICIDAS

2 O PERA P HILOLOGICA : TENÇÕES PARA A F ILOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE

2.3 A F ILOLOGIA EM XEQUE : C RÍTICOS , R EVISORES E OUTROS P ARRICIDAS

Sob o signo da erudição, a Filologia dos oitocentos figurou como uma complexa prática crítica, num compromisso quase que estritamente relacionado com os corpora da tradição clássica ocidental. Isso porque tanto a Igreja Cristã quanto os intelectuais humanistas, agentes do processo de transmissão da cultura clássica para o Ocidente, se valeram, com objetivos bem diferentes, do cultivo das “línguas e culturas clássicas” (grego e latim) como estratégia de legitimação cultural.

A língua e a cultura latinas somadas ao repositório cultural grego transmutaram- se num signo de toda plenitude da “cultura erudita”154. Salvaguardadas as devidas proporções e usos específicos, tanto o Império Romano como a Igreja, mas também os humanistas do século XVI (renascentistas) tiveram interesse pela Filologia, sobretudo como forma de capitalizar essa tradição com interesses bastante específicos.

Para isso, ajudaram a produzir um aparato teórico-metodológico que elevou a Filologia a diferentes graus de especialização, tudo isso fruto das transformações no campo social, político, cultural, bem como epistemológico. Mas, certamente, foi no século XIX que a conformação mais complexa da área pôde estabelecer-se de modo completo.

Segundo Erich Auerbach (1892-1957), a Filologia é:

[...] o conjunto das atividades que se ocupam metodicamente da linguagem do Homem e das obras de arte escritas nessa linguagem. Como se trata de uma ciência muito antiga, e como é possível ocupar-se da linguagem de muitas e diferentes maneiras, o termo Filologia tem um significado muito amplo e abrange atividades assaz diversas. [...]155

Dentro dessas atividades “assaz diversas”, há os seguintes ramos:

a) a Edição Crítica dos Textos, preocupada com a preservação do patrimônio cultural escrito de uma dada civilização;

b) a Linguística, para Auerbach, tão antiga quanto a Edição de Texto, mas que, nos tempos modernos, mudou totalmente de objeto e de métodos;

c) as Pesquisas Literárias, a saber:

154 BURKE, Peter. Linguagens e comunidades nos primórdios da Europa Moderna. Tradução

Cristina Yamagami. São Paulo: Editora UNESP, 2010.

155 AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. Tradução José Paulo Paes. 4. ed. São Paulo:

 a bibliografia e a biografia;  crítica estética; e

 História da Literatura;

d) a Explicação dos textos, comprometida com a iluminação de textos que são difíceis de serem compreendidos ou se tornaram difícil de compreender por conta dos processos de mudança linguística.

Auerbach, então, para além da atividade de edição de texto, considera que todas as atividades que articulam língua, texto e cultura podem ser ditas filológicas. Nesse entendimento, fica representada uma concepção ampla de Filologia que está necessariamente ligada às diversas práticas relacionadas, ao longo da história do Ocidente, às letras, ao “amor às letras” (sentidos presentes na etimologia da palavra Filologia), mas também aos intelectuais eruditos que eram, além de filólogos,

[...] linguistas [...], etnógrafos, historiadores, folcloristas, arqueólogos e não tinham problema de identidade disciplinar, pois se sabiam participantes de uma vasta empresa de aquisição de conhecimentos diversificados, mas harmonizáveis em torno de um interesse comum pela palavra documental ou artística e pelo seu comportamento na história. Conhecerem-se todos eles por filólogos era tradicional e apropriado’. [...]156

Ou seja, eram filólogos por ter essa formação bastante diversa e com fonte no conhecimento (universal, por certo).

No ambiente lusófono, bastante marcado pela influência de outras tradições europeias, o Dr. José Leite de Vasconcellos, autor das celebérrimas Lições de Filologia

Portuguesa, relatava, no começo do séc. XX, que a Filologia abrangia:

[...] História da língua (Glotologia, Glótica, Linguística, e seus ramos), com a Estilística e a Metrificação;

História literária:

1) História da literatura (em sentido amplo), com a Crítica Literária; 2) Bibliografia.

Faz-se aplicação prática da Filologia, quando se edita criticamente, e se comenta, um texto. – Não se confunda crítica literária com edição crítica, pois esta só procura restituir à primitiva pureza um texto que se acha deturpado157.

156 CASTRO, Ivo. O retorno à Filologia. In: PEREIRA, Cilene da Cunha; PEREIRA, Paulo Roberto Dias

(Orgs.). Miscelânea de estudos linguísticos, filológicos e literários in memoriam Celso Cunha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. p. 512.

157 VASCONCELOS, José Leite de. Lições de Filologia Portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Livros de

Consciente da polissemia da palavra, dada a senilidade dos termos, e das transformações provocadas pelos avanços científicos, Leite de Vasconcelos explica a amplitude das práticas filológicas e define os circunspectos que trouxeram à baila o ofício de filólogo até o século XX.

Essa concepção ampla de Filologia nasce, portanto, da concepção clássica, ou seja, da Filologia Clássica. Porém, em meio às mudanças que resultaram na valorização das culturas vernáculas, emergiram Filologias nacionais sob o paradigma romântico europeu (Filologia portuguesa, francesa, italiana etc.). Nele, o conceito de nação é celebrado à máxima potência. Essa mudança de corpus, de modo geral, manteve os compromissos epistêmicos da vertente tradicional, mas também criou novas demandas.

Para Rita Marquilhas, leitora de Ivo Castro158, essa Filologia com adjetivos pátrios, surge

[...] em ambiente romântico, numa Europa napoleónica onde despontavam novas nações, num clima de popularização da instrução, com novas gramáticas e dicionários a serem constantemente publicados, a alimentarem a questão da relação da língua com a “raça” e a defesa do purismo linguístico e literário [...]. Essa foi uma Filologia que ganhou sólido prestígio tanto na universidade como fora dela e, mais importante ainda, conseguiu que os seus princípios se convertessem numa doutrina crescentemente popular, com um impacto que prolongou até hoje [...]159.

Vale ressaltar que a Filologia Clássica não foi vencida pelas Filologias vernáculas. Ao contrário, aquela continua e tem preservado muito da concepção lata de que se constituiu, embora numa dimensão bem mais restrita aos ambientes de erudição acadêmica; esta, mais acessível, tem sido campo de transformações bastante intensas e tem compromisso direto com a legitimação de diversos projetos de nação.

A questão, de fato, não é simples. É que o declínio do latim como língua de cultura universal e o fenecimento do vigor da lógica de pertencimento gestada pela comunidade religiosa (cristã), bem como com a “elefantíase” das dinastias absolutistas, conforme aponta Benedict Anderson160, fez com que o nacionalismo emergisse como arranjo cultural a partir do qual os antigos domínios axiomáticos, que resguardavam também a Filologia no escopo da cultura clássica, foram desestabilizados.

158 CASTRO, Ivo. Livro de José de Arimateia. 1984. Dissertação (Doutorado em Linguística

Portuguesa) – Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Lisboa.

159 MARQUILHAS, Rita. Filologia oitocentista e Crítica Textual. In: CONGRESSO INTERNACIONAL

FILOLOGIA, MEMÓRIA E ESQUECIMENTO, 1., Lisboa, 2008. Actas... Lisboa: Faculdade de Letras, 2008. p. 355-367.

160 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do

O questionamento da autoridade universal das línguas e culturas clássicas possibilitou que a prática filológica fosse utilizada para estandardizar os textos fundacionais das línguas vernáculas. Além disso, há outras razões para o acontecimento do “impulso vernacularizante”, como chamou Anderson, a saber: difusão dos vernáculos como língua de centralização político-administrativa e consequente abandono do latim; o advento do capitalismo como mola propulsora do mercado editorial, este cada vez mais intenso após a difusão da imprensa; o impacto da Reforma Protestante, cujo sucesso se deve também ao capitalismo editorial. Além desses, arrolamos as transformações fruto do aumento da alfabetização e das práticas de letramento, também fruto das mudanças nas práticas de cultura escrita humanísticas.

Sobre isso afirma Benedict Anderson:

[...] A aliança entre o protestantismo e o capitalismo editorial, explorando edições populares baratas, logo criou novos e vastos públicos leitores – entre eles, de importância nada pequena, comerciantes e mulheres, que geralmente sabiam pouco de latim –, ao mesmo tempo que os mobilizava para finalidades político-religiosas.161

As línguas vernáculas, no momento em que passaram a ser escritas, lançaram as bases para que as consciências nacionais se firmassem a partir de uma tradição gráfica, com literatura amplamente cultivada. Assim, as línguas faladas também passaram a ter os próprios textos do passado, à maneira da tradição clássica.

Certamente, isso favoreceu a emergência de práticas filológicas não clássicas: primeiro, de grupos de língua e, depois, de línguas nacionais. No caso dos grupos, as línguas românicas, em especial, a questão parece ter sido também em função das influências e heranças da língua latina, já que ela foi o principal fator de formação das línguas românicas. Para Joaquín Rubio Tovar162, “[…] unos de los hechos que condicionaron o favorecieron la fragmentación de la unidad de tantos saberes fue la creación de las filologías modernas, que nacieron para ocuparse de las lenguas vivas y de sus literaturas […]”163.

161 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do

nacionalismo. Tradução Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 75.

162 RUBIO TOVAR, Joaquín. La vieja diosa: de la Filología a la posmodernidad (algumas notas sobre la

evolución de los estudios literários. Alcalá de Henares: Centro de Estudios Cervantinos, 2004. p. 30.

163 “Um dos fatos que condicionaram ou favoreceram a fragmentação da unidade de tantos saberes foi a

criação das filologias modernas, que nasceram para ocupar-se das línguas vivas e de suas literaturas.” [Tradução nossa].

Do mesmo modo que a Filologia Tradicional tinha interesse pelos textos do passado que não eram mais compreendidos hodiernamente, as Filologias Modernas, com qualificativos pátrios, voltaram-se para os textos medievais no afã de descobrir a erudição ancestral das respectivas nações, uma vez que a garantia do sucesso de um povo estava diretamente relacionada à complexidade da tradição.

Diante disso, a tendência da especialização do conhecimento também atinge o campo filológico. As perspectivas Clássicas e Românicas, Germânicas e Eslavas – dentre outros grupos de língua – podiam funcionar de modo global, mas, no momento em que os interesses nacionais mobilizaram a atuação especializada numa língua só, a perspectiva ampla de Filologia, totipotente, começou a soçobrar. Integramos, ainda, como causa disso a emancipação dos Estudos Linguísticos e Literários, cada vez mais acentuada a partir da segunda metade do século XIX. Nas Lições de Leite de Vasconcelos, ao ser definida a concepção de Filologia, vemos, com clareza, essa tendência especializadora:

[...] Nas minhas prelecções entendo de ordinário por FILOLOGIA PORTUGUESA o estudo da nossa língua em toda a sua amplitude, no tempo e no espaço, e acessòriamente o da literatura, olhada sôbre tudo como documento formal da mesma língua [...].164

Fica claro no excerto que o interesse do professor Leite de Vasconcelos é pela face linguística, por certo, já com interesses que iam ao encontro das tendências de estudos linguísticos cada vez mais formais. Herdeiro dessa tradição é o professor Celso Ferreira da Cunha, um dos mais renomados filólogos e, com certeza, um dos grandes nomes da Filologia Portuguesa no mundo. Na última aula ministrada na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, por ocasião da aposentadoria compulsória (1987), o mestre propôs uma reflexão, em tom memorialístico, sobre a

Filologia e vida. Nela, ele apresentou o ideário de um estudioso “[...] que viveu numa

universidade autárquica, mas que sofreu os distúrbios arbitrários e que esteve dezenas de anos sob liberdade vigiada [...]”165.

A carreira intelectual do renomado professor começa, como a de vários humanistas brasileiros, nos bancos do curso pré-jurídico da Faculdade de Direito.

164 VASCONCELOS, José Leite de. Lições de Filologia Portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Livros de

Portugal, 1959. p. 9.

165 CUNHA, Celso. Filologia e vida. In: CUNHA, Celso; CUNHA, Cilene. Sob a pele das palavras:

Devido às transformações impostas pelos golpes militares, ele deixa a área de Direito e reencontra sentido de vida nas Letras, no curso da Universidade do Distrito Federal. Nessa Universidade, desenvolveu os sentidos da prática; mas, acima de tudo, aprendeu a cultivar um “nacionalismo sadio”, em que valorizavam a cultura brasileira de maneira ímpar.

Aluno da primeira geração de filólogos brasileiros, tais como Antenor Nascentes, com quem aprendeu Romanística, e Sousa da Silveira, com quem se doutorou em Filologia Portuguesa, o professor Cunha tornou-se um “amante das letras”. Àquela época, década de trinta do século XX, “[...] o título de filólogo representava [...] o maior galardão que podia almejar um estudioso em Portugal e no Brasil [...]”166.

Ao filólogo atribuíam o cultivo e domínio da língua(gem), mas, principalmente, a possibilidade de reconhecer, resgatar, restituir a cultura dos povos através da língua. Nessa direção, estão representadas as aspirações do filólogo e as dimensões dessa tarefa bem expressas nas palavras de Maria Corti167: “[...] [v]isione poliedrica, pluridimensionale del documento esaminato, che se chiama Filologia [...]168”. A metáfora espacial utilizada para expressar a completude e totalidade não é meramente estética. Ela representa a ambição do ofício do filólogo.

Além disso, há, nessa tradição, uma perspectiva devocional que demonstra como o valor simbólico da eruditio é elemento funcional para o labor filológico. Notamos isso nas referências emocionadas do professor Cunha no discurso a que já nos referimos:

[...] Filólogo era Leite de Vasconcelos, santo de nossa particular devoção, sábio entre os sábios, como nos inculcava Sousa da Silveira, e cujas Lições de Filologia portuguesa todos os companheiros daqueles saudosos tempos – Antônio Houaiss, Antônio Pádua, Crisanto Martins Filgueiras e Olavo Nascentes – tínhamos por breviário, que devia ser conhecido em todas as minúcias [...]169

Esses eruditos podem ser aproximados, não sem as imperfeições que decorrem de qualquer comparação, ao status dos intelectuais fiéis aos ideais universais. Segundo Sergio Paulo Rouanet, ao discutir A crise dos universais, os partidários do

166 CUNHA, Celso. Filologia e vida. In: CUNHA, Celso; CUNHA, Cilene. Sob a pele das palavras:

dispersos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Academia Brasileira de Letras, 2004. p. 422.

167 CORTI, Maria; SEGRE, Cesare. I Metodi attuali della critica in Italia. Torino: Edizioni Rai

Radiotelevisione Italiana, 1980.

168 “[...] visão poliédrica, pluridimensional do documento examinato, que se chama Filologia”. [Tradução

nossa].

169 CUNHA, Celso. Filologia e vida. In: CUNHA, Celso; CUNHA, Cilene. Sob a pele das palavras:

universalismo acreditam nos traços gerais e universais da natureza humana. Nessa perspectiva, ele caracteriza três tipos de universalismos: o político (relacionado à crença numa sociedade mundial), o ético (concernente à validade universal dos preceitos morais e éticos) e o cognitivo, que

[...] considera evidente que todos os homens e mulheres são seres racionais, e que as verdades descobertas pela razão e corroboradas pelos procedimentos apropriados valem universalmente. Só existe uma matemática, e a lei da gravidade é verdadeira para todos.170

A rigor, os intelectuais foram forjados nesse paradigma e muito do que os saberes mais consolidados e hegemônicos professam até hoje está na razão direta dos preceitos universais. Não é sem razão que deles, em geral, se esperam posicionamentos que visem à verdade e à justiça, provavelmente, inspirados em ideais iluministas.

Por essa razão, é bastante comum que o intelectual detentor do conhecimento universal torne-se, sem grandes exceções, legislador e, em seu entorno, construa brigadas taxonômicas fortemente marcadas por uma hierarquia de valores apoiada em pressupostos naturalizados inventados na tradição europeia. A grande tensão para nós não é aderir a essa ou àquela tradição, mas tornar universal e, portanto, natural, tácita, uma cosmovisão local e étnica elaborada.

Esse é o discurso epistemológico que permitiu a invenção de disciplinas obstinadas em perseguir “verdades universais”, vertentes teóricas hegemônicas e que também justificou a ação colonial europeia. Segundo Zygmunt Bauman, o raciocínio funcionava num esquema binário em que o lado positivo sempre pendia para a tradição superior, europeia, ao passo que o inferior, negativo, o outro, o “marcado”:

[...] Era evidente para todos [...] que o Ocidente era superior ao Oriente, os brancos aos negros, o[s] civilizados aos rudes, o culto ao não educado, o são ao insano, o saudável ao doente, o homem à mulher, o normal ao criminoso, o mais ao menos, os ricos à austeridade, a alta produtividade à baixa produtividade, a alta cultura à baixa cultura [...]171.

Exemplo marcante disso, além da aculturação dos autóctones da América, foi a colonização (cultural) da África. Segundo Simon Battestini,

170 ROUANET, Sergio Paulo. A crise dos universais. In: NOVAES, Adauto (Org.). O silêncio dos intelectuais. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 70.

171 BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e intérpretes: sobre modernidade, pós-modernidade e

[...] [a] ideologia colonialista tomou como justificativa a promoção de uma parte “desvalorizada” da humanidade, mas negou de forma sistemática todos os valores dos povos que subjugava. Para poder ser colonizada a África deveria ser inculta, exótica, confusa, selvagem, misteriosa, inocente... e evidentemente iletrada [...]172.

Afora as ciladas que o discurso “universal” pode oferecer ao ser elevado à estatura dogmática, como demonstrou Battestini, o ideal universal também consolidou os esquemas de valoração no que tange à cultura, literatura e artes, obviamente, a partir dos paradigmas da cultura clássica.

No que se refere ao universal como adjetivo de Literatura, conceito difundido por Goethe no século XIX, temos de visualizar, ainda que de modo apressado, os efeitos desse discurso173 e a implicação do filólogo em relação a esses corpora. De início, precisamos considerar que a ideia de Literatura Universal, nas formulações goethianas, visavam à superação dos limites de investigação crítico-literária frequentemente relacionados às fronteiras nacionais. Por isso, a concepção supranacional de literatura precisou ser reclamada, bem como a noção que possibilita pensar um humanismo universal, que seria a justificativa para pensar numa cultura mundial.

Assim, inferimos que a difusão das práticas letradas e a apropriação dos gêneros literários, em geral legados da cultura clássica174, pelos diversos movimentos nacionalistas possibilitaram fomentar um conceito ao mesmo tempo plural e universal em torno da noção de Literatura.

Universal, principalmente, pelo fato de o modelo tomado por muitas nações, principalmente a alemã, ter sido o dos gregos antigos que serviu de ponto de referência na história da arte, na filosofia da arte e na Filologia175; plural, quase determinantemente, pelas diferenças linguísticas e culturais nas quais se aclimataram e foram reelaborados os repositórios culturais gregos. Assim, parece evidente que universal, nos termos da Literatura Universal, não passa mais que os compromissos estéticos, artísticos e culturais celebrados, há priscas eras, pelos gregos antigos.

Desse modo, em muitas narrativas do historicismo literário, principalmente das (ex-) colônias europeias, é comum observarmos explicações que limitam a existência de

172 BATTESTINI, Simon. Escritas africanas (inventário e problemática). In: CATACH, Nina (Org.). Para uma teoria da língua escrita. Tradução Fúlvia M. L. Moretto. São Paulo: Ática, 1996. p. 156.

173 AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura ocidental: filologia e crítica. Tradução Samuel Titan e

João Ângelo Oliva Neto. São Paulo: Editora 34, 2007.

174 MACHADO, Roberto. O Nascimento do Trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.

175 SUSSEKIND, Pedro Viveiros de Castro. Helenismo e classicismo na estética alemã. 2005. 288p.

Tese (Doutorado em Filosofia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

uma dada literatura à influência dos monumentos literários europeus. Esse constructo tem um fundo: o processo de colonização linguística e cultural e se estende para outras esferas do saber. Para Silviano Santiago,

[...] [é] importante notar como a colonização, no mundo moderno, só podia ser uma atividade docente, onde a memória era o dom mais requisitado. A tal ponto que historiadores contemporâneos nossos julgam acreditar que a origem de uma "inteligência brasileira" se dê quando colégios são criados no século XVI. Ou seja: quando a história alheia é imposta como matéria de memorização, de ensino, imposta como a única verdade. Desnecessário é salientar o compromisso violento da categoria de "inteligência", nesse contexto, com o mais ardoroso etnocentrismo. Etnocentrismo esse que traduz a concepção do mundo pré-cabralino presente nos primeiros colonizadores, pois davam eles à civilização indígena o estatuto de tábula rasa. Triste "inteligência brasileira" que, ao querer alçar o vôo da reflexão histórica, ainda se confunde com preconceitos quinhentistas! [...].176

O binarismo tradição versus o estatuto “tábula rasa”, sem exageros, é a estrutura que tem mantido uma plena hierarquia no corpus da Literatura Universal, cujo topo é a tradição clássica e a base as literaturas que dela, cada vez mais, se afastam. Esses

corpora – afirma Auerbach – foram constituídos a partir do impulso histórico do

humanismo que tem como melhor expressão o romantismo alemão.

Preconizavam, a rigor, não só o levantamento de novos materiais ou a