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D IFUSÕES DA PRÁTICA F ILOLÓGICA NO OCIDENTE : AS EDIÇÕES TELEOLÓGICAS

2 O PERA P HILOLOGICA : TENÇÕES PARA A F ILOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE

2.2 D IFUSÕES DA PRÁTICA F ILOLÓGICA NO OCIDENTE : AS EDIÇÕES TELEOLÓGICAS

O sucesso desse legado tem sido tão efetivo que, só a partir do século XIX, ele começou a ter indícios de questionamentos mais efetivos. Prova disso é a crença de Pfeiffer109 acerca da repercussão do método filológico no Ocidente. Para ele,

[…] [l]a historia pocas veces se repite, pero en los tiempos modernos encontraremos una sucesión de tres etapas análogas, en gran escala, a la del siglo III a. de C. Primero vino la renovación de la Filología en el Renacimiento italiano, durante los siglos XIV y XV d. de C., encabezada por los grandes poetas desde Petrarca a Poliziano. Luego seguió una expansión enciclopédica, en Francia y en los Países Bajos en los siglos XVI y XVII, en la cual la ciencia desempeñó un papel […]110.

Assumimos, aqui, uma compreensão semelhante à que foi postulada por Pfeiffer, discordando, entretanto, do fato de se tratar de uma repetição. Ao contrário, trata-se de uma reinvenção e/ou continuação de uma abordagem que se consagrou graças ao (i) cultivo da cultura livresca clássica, (ii) à manutenção do compromisso da pureza textual como marca da verdade e (iii) à permanência do princípio da analogia e da diorthosis (correção) nas atividades de edição.

Pela narrativa do “mito de fundação” da Filologia construído no ocidente, temos uma resposta enfadonhamente recorrente em todos os textos acima consultados: a Filologia teria tido seu marco inicial entre os alexandrinos que, magistralmente, teriam construído uma abordagem metodológica fundamentada na diorthosis, isto é, emenda, correção, restauração do texto.

Contudo, não estavam só entre os gregos as práticas de preservação de texto, mas em todas aquelas culturas que precisaram preservar, por motivos religiosos ou não, textos fundamentais. Foi a tradição ocidental que elegeu os alexandrinos em meio a diversas outras práticas às quais poderíamos chamar de filológicas.

108 Para Gauger, o processo de latinização empreendido pelo processo de expansão territorial de Roma

não resultou puramente do ponto de vista linguístico na emergência das línguas românicas. Através dele, engendrou-se também um paradigma social, cultural, linguístico, político, jurídico etc.

109 PFEIFFER, Rudolf. Ciencia y filología. In: ______. Historia de la filología clásica: desde los

comienzos hasta el final de la época helenística. Tradução Justo Vicuña e Maria Rosa Lafuente. Madrid: Gredos, 1981. p. 308.

110 “[…] a história poucas vezes se repete, mas nos tempos modernos encontraremos uma sucessão de três

etapas análogas, em grande escala, à do século III a.C. Primeiro veio a renovação da Filologia no Renascimento italiano, durante os séculos XIV e XV d.C., encabeçada pelos grandes poetas desde Petrarca a Policiano. Após isso, seguiu uma expansão enciclopédica, na França e nos Países Baixos nos séculos XVI e XVII, na qual a ciência desempenhou um papel [...]”. [Tradução nossa].

O veículo pelo qual essa perspectiva se propagou na tradição ocidental não foi outro, senão o dos legados do processo de romanização e latinização que aspergiram, para o Ocidente, os matizes platônicos metafísicos, estes incorporados, de maneira diferente, tanto pelo Cristianismo, quando da feitura do texto bíblico, quanto pelos intelectuais humanistas, quando da reinvenção dos textos da cultura clássica. Em ambos os casos, está presente o pressuposto de que o texto, ainda que de múltiplas vozes e trajetórias, é uníssono, isto é, haveria um sentido transcendental, ahistórico sob a guarda de um “pai”, cuja ausência solicita um padrasto: o crítico textual, editor, filólogo.

Nos séculos XVII, XVIII e XIX111, contemplamos a construção de abordagens metodológicas cada vez mais voltadas para o estabelecimento de textos. A de maior relevo, sem dúvida alguma, foi a de Karl Lachmann, filólogo neo-helenista alemão, cujos esforços para a edição do Novo Testamento, através da recensio e da emendatio dos testemunhos, renovaram os procedimentos da Crítica Textual.

Para Pfeiffer112, leitor de Sebastiano Timpanaro113 na passagem à qual nos referimos por ora, a abordagem lachmanniana não foi uma criação surgida exclusivamente da competência cognitiva do filólogo alemão, pois “[e]sta parte de nuestra historia, que empezó con Petrarca, ha seguido a través de todos sus cambios las ideas directrices, primeramente, del humanismo italiano y, por último, del neo- helenismo alemán [...]114”.

Perante tal configuração, ocorre-nos que, para percebermos a emergência da Crítica Textual enquanto práxis teleológico-platônica padronizadora, é necessário observarmos como os humanistas leram os textos clássicos e quais os procedimentos foram elaborados para purgá-los das intempéries do media tempora, ou seja, do medium

aevum115. Talvez, assim, possamos compreender as reinvenções do papel do filólogo que, pelo menos até a primeira metade do século XX, estiveram sempre ligadas ao princípio teleológico do estabelecimento do texto e contra o parricídio característico da escrita, como aponta Sócrates em diálogo com Fedro, por meio do recurso do

111 PFEIFFER, Rudolf. Historia de la filología clásica: desde los comienzos hasta el final de la época

helenística. Tradução Justo Vicuña e Maria Rosa Lafuente. Madrid: Gredos, 1981.

112 PFEIFFER, Rudolf. Historia de la filología clásica: desde los comienzos hasta el final de la época

helenística. Tradução Justo Vicuña e Maria Rosa Lafuente. Madrid: Gredos, 1981.

113 TIMPANARO, Sebastiano. The genesis of Lachmann’s method. Tradução Glenn W. Most. Chicago:

University of Chicago Press, 2005.

114 “[...] esta parte da nossa história, que começou com Petrarca, segiu através de todos os seus câmbios as

ideias diretrizes, primeiramente, do humanismo italiano e, por último, do neo-helenismo alemão [...]”. [Tradução nossa].

115 FRANCO JR., Hilário. Idade Média: o nascimento do Ocidente. 2. ed. São Paulo : Brasiliense, 2001.

“padrasto”. Repetimos: a invenção da figura do filólogo-preservador/corretor, pelo menos dentro das práticas de estabelecimento de textos, decorre de tentativas de construir uma paternidade que foi perdida no processo de transmissão do texto.

Desse modo, com o colapso da cultura helênica, a falência progressiva e posterior queda do Império Romano no séc. V d. C., o processo de transmissão dos textos clássicos fugiu às rédeas dos grandes centros de cultura erudita gregos e greco- romanos. Essa descentralização do poder romano repercutiu em todo o ocidente latino e é apontada por Walter Von Wartburg116 como um dos principais fatores para a explicação do processo de fragmentação linguística do Império Romano e, consequente, formação das línguas neolatinas. Mas, as mudanças não pararam por aí, outros centros de cultura surgiram, principalmente, no seio da cultura cristã. No ocidente latino, por exemplo, como afirmam Reynolds e Wilson117:

[...] el mecanismo para su [de la literatura latina] transmisión a épocas posteriores seguía configurado en la biblioteca monástica y el scriptorium. Los centros monásticos estaban destinados […] a representar el papel principal en la conservación y la transmisión de lo que quedaba de la antiguedad pagana; también a través de las escuelas y bibliotecas anejas a las grandes catedrales puede seguirse el hilo de su descendencia, generalmente más delgado aunque a veces vital118 […].

Assim, dentro da percepção platônica de texto durante o medievo, os textos da cultura clássica foram copiados, traduzidos, ressignificados. Segundo os intelectuais humanistas, o medievo teria confundido – para sermos eufêmicos –, sob orientação cristã, as essências dos sentidos originais dos textos.

Então, estava, pois, pronto o cenário: de um lado, textos bastardos que mereciam cuidados humanísticos, depois de um longo intervalo, a Idade Média, no qual a crítica tinha orientação religiosa; de outro, intelectuais humanistas cujas forças vislumbravam o resgate, o renascimento119 da cultura clássica e a ruptura com o pensamento teocêntrico.

116 WARTBURG, Walther von. La Fragmentación linguística de la Romania. Tradução Manuel

Muñoz Cortés. Madridd: Gredos, 1952.

117 REYNOLDS, Leighton D.; WILSON, Nigel G. Copistas y filólogos: las vías de transmission de las

literaturas griega y latina. Tradução Manuel Sanchez Mariana. Madrid: Gredos, 1986.

118 “[…] o mecanismo para sua [da literatura latina] transmissão para épocas posteriores continuava

configurado na biblioteca monástica e no scriptorium. Os centros monásticos estavam destinados […] a representar o papel principal na conservação e na transmissão do que remanescia da antiguidade pagã; também através das escolas e bibliotecas anexas às grandes catedrais pode seguir-se o fio de sua descendência, geralmente mais sutil, embora, às vezes, vital [...]”. [Tradução nossa].

Mas por que foi necessário para os humanistas proceder a uma abordagem filológica? Acreditamos que, em primeiro lugar, era necessária certa proficiência nas línguas e culturas clássicas para a leitura e crítica do texto; em segundo lugar, porque a atividade literária – primeira das ambições humanistas – estava ligada à imitatio da literatura e crítica do texto clássicas120; e, em terceiro lugar, a crença platônica na essência do texto cujo resgate só seria possível pela atividade crítica filológica.

As dimensões da práxis filológica humanista são delineadas de modo satisfatório, para o fim pretendido aqui, por Reynolds e Wilson121, para quem

[...] cuando el humanismo se ensanchó y extendió su influencia a otros campos, no fue desechado el objetivo práctico del dictator, sino que se consideró que la forma de hablar y escribir bien estribaba en el uso de los modelos clásicos; se revivieron los clásicos latinos, no sólo como estudio académico, sino como la materia de la que se formaba la elocuencia, y fue este dominio de la lengua latina el que permitió al hombre del Renacimiento impresionar a sus iguales, denunciar a sus enemigos, tronar en defensa de sus creencias o de su ciudad. Esto condujo sucesivamente a un estudio de la vida antigua, y comprensivo de todos los aspectos de la vida antigua, y a un sentimiento de identificación, ilusorio sin embargo, con los hombres y los ideales del mundo antiguo que es signo del neoclasicismo122 […].

Além disso, o paradigma intelectual que se forja nesse período é aquele de inspiração grega e greco-romana, visto que o afã dos humanistas era o de recuperar a tradição cultural que fora perdida, mas também de usar o valor simbólico de todo o repertório cultural contra uma das principais instituições ocidentais construídas no ocidente desde os romanos: a Igreja Cristã. Disso podemos concluir que as estratégias humanísticas e eclesiásticas dão mostras de como uma mesma tradição cultural clássica foi ressignificada para atender a diferentes fins, inclusive para a interpretação do texto bíblico.

Para percebermos melhor como se estruturam as formas de conhecimento entre os humanistas, precisamos entender que

120 REYNOLDS, Leighton D.; WILSON, Nigel G. Copistas y filólogos: las vías de transmission de las

literaturas griega y latina. Tradução Manuel Sanchez Mariana. Madrid: Gredos, 1986.

121 REYNOLDS, Leighton D.; WILSON, Nigel G. Copistas y filólogos: las vías de transmission de las

literaturas griega y latina. Tradução Manuel Sanchez Mariana. Madrid: Gredos, 1986. p. 162.

122 […] quando o humanismo se propagou e estendeu sua influência a outros campos, não foi descartado o

objetivo prático do dictator, mas sim que se considerou que a forma de falar e escrever bem residia no uso dos modelos clássicos; foram revividos os clássicos latinos, não só como estudo acadêmico, mas também a matéria da qual se formava a eloquência, e foi este domínio da língua latina o que permitiu ao homem do Renascimento impressionar seus iguais, denunciar seus inimigos, protestar em defesa de suas crenças ou de sua cidade. Isso conduziu sucessivamente a um estudo da vida antiga, e, por extensão, de todos os aspectos da vida antiga, e a um sentimento de identificação, ilusório, contudo, com os homens e os ideais do mundo antigo que é o signo do neoclassicismo.

[a]té o fim do século XVI, a semelhança desempenhou um papel construtor no saber da cultura ocidental. Foi ela que, em grande parte, conduziu a exegese e a interpretação dos textos: foi ela que organizou o jogo dos símbolos, permitiu o conhecimento das coisas visíveis e invisíveis, guiou a arte de representá-las. O mundo enrolava-se sobre si mesmo [...]123

Como dissemos antes, os humanistas recorreram à cultura clássica para reacender o valor do intelecto humano que fora aprisionado durante a época que se convencionou chamar de Idade Média. Esse recorrer aos clássicos foi uma tentativa de emular hábitos e práticas de cultura escrita. O resultado foram recriações e a ampliação de um leque de referências, especialmente, para a ciência escolástica124.

Parece, então, bastante razoável pensar a Filologia naquele contexto como uma importante prática não só para recobrar o fôlego do pensamento clássico de outrora, mas também para problematizar, através da exegese e de uma emergente hermenêutica125 moderna, os pressupostos da ordem política e religiosa vigente. Um exemplo disso é o questionamento, por meio da aferição filológica, do valor de verdade de vários textos, por sinal religiosos, que estiveram sob a guarda da Igreja durante o medievo.

Através de tais inquirições e da leitura de novos temas, novos códigos de leitura são construídos. Para Maria João Pires, a consequência desses renovados gestos sobre os textos antigos vai além de uma mímica.

A renascença dos humanistas é pois a translatio studii, a transferência do epicentro cultural definitivamente para o ocidente. A tradição interrompida da Filologia, ciência crítica e objectiva dos textos antigos, encontra nesta síntese a sua nova origem. Do tronco comum da cultura medieval escrita se vão autonomizando a hermenêutica e a Filologia. O espaço mental autónomo destas disciplinas servirá deste modo de base referencial aos novos valores do humanismo.126

No entanto, temos de evidenciar que o resgate empreendido pelos intelectuais humanistas foi apenas emulado como a presença restauradora dos procedimentos intelectuais dos gregos e latinos e, como toda similitude, constituiu-se como uma leitura

123 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução

Salma Tannus Muchail. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção Tópicos).

124 GOMBRICH, Ernest H. Tras la historia de la cultura. Madridd: Ariel, 1977.

125 Damos aqui uma advertência para que não se pense o sentido da hermenêutica como único e/ou a-

histórico. Não nos interessou discutir o percurso genealógico dos sentidos da hermenêutica na história ocidental. Certo estamos de um sentido mais tradicional, aquele cuja definição está atrelada ao pensamento correto e verdadeiro de um texto, e um mais moderno que assume a participação do sujeito e a relatividade das formas de se construir os discursos.

126 PIRES, Maria João. O desafio renascentista. Revista da Faculdade de Letras Línguas e Literaturas.

cuja potência criadora fecundou a hermenêutica moderna, marcada pela busca do sentido original e da autenticidade dos textos127. Buscava-se extirpar a dessemelhança, o

simulacrum, a má semelhança que havia infectado a pureza textual.

Uma vez conhecida a estratégia do renascimento da antiguidade usada pelos intelectuais humanistas, podemos entender como o humanismo se estendeu para todas as áreas de conhecimento, numa azáfama que sempre passava pelo crivo filológico. Por isso, a emancipação antropocêntrica fomentou uma ampliação da cultura letrada e, consequentemente, o desenvolvimento de diversas áreas do saber.

Por conseguinte, embora se diga que a Filologia tenha nascido entre os gregos, foi só com os humanistas128 que ela adquiriu aspecto mais próximo daquilo que ela veio a ser a partir do século XIX e por todo século XX, qual seja: uma prática editorial cuja finalidade era o estabelecimento de texto a partir de critérios “filológicos”, isto é, mediante o iudicium e a emendatio ope codicum129.

A Crítica Textual, como uma das florescentes disciplinas que se preocuparam, naquela ocasião, com a interpretação segura do texto, alcançou enorme relevo, segundo Leighton D. Reynolds, Nigel G. Wilson130 e Pfeiffer131, através de dois grandes intelectuais humanistas132 do século XV: Lorenzo Valla (1407-1457) e Poliziano (1454- 1497).

O primeiro deles foi um intelectual de grande ousadia. Aluno dos melhores professores de grego e de latim do momento em que viveu, fez críticas ácidas ao trabalho de filólogos já estabelecidos, o que gerou, sem surpresas, polêmicas que quase comprometeram a carreira dele. Dentre as querelas de maior relevância nas quais ele se envolveu, destacamos a crítica: à Donação de Constantino, cujas conclusões, depois de uma análise linguística e histórica, apontaram para a falsificação do documento; a uma suposta correspondência entre Sêneca e Pablo, bastante comentada na época de São Jerônimo; e à Vulgata, que estava baseada nos originais gregos e nos textos patrísticos.

127 PIRES, Maria João. O desafio renascentista. Revista da Faculdade de Letras Línguas e Literaturas.

Porto, n. 13, 1996, p. 43.

128 CANO AGUILAR, Rafael. Introducción al análisis filológico. Madridd: Castilia, 2000. 129 PÉREZ PRIEGO, Miguel Ángel. La edición de textos. Madridd: Síntesis, 1997. p. 11-12.

130 REYNOLDS, Leighton D.; WILSON, Nigel G. Copistas y filólogos: las vías de transmission de las

literaturas griega y latina. Tradução Manuel Sanchez Mariana. Madrid: Gredos, 1986. p. 162.

131 PFEIFFER, Rudolf. Historia de la filología clásica: desde los comienzos hasta el final de la época

helenística. Tradução Justo Vicuña e Maria Rosa Lafuente. Madrid: Gredos, 1981.

132 Embora a relevância tenha sido dada a eles, Valla e Poliziano não foram os únicos filólogos do

período, houve outros de extrema importância, por exemplo: Bassarion, Aldo Manuzio, Marco Musuro e Erasmo, cujo principal feito foi o estabelecimento do texto original do Novo Testamento.

O segundo marcou-se por uma rejeição ao truísmo, celebrado por Valla, de que o latim verdadeiro teria de ser o de Cícero. Contra isso, ele buscou um estilo cada vez mais eclético principalmente na crítica dos textos dos autores da chamada Idade de Prata e fez uso metódico do princípio da eliminatio codicum descriptorum nos textos de Cícero que vai ser retomado pela abordagem lachmanniana.

Foi basicamente por essa releitura dos clássicos que a Filologia humanista conseguiu respaldo e o método reelaborado ascendeu, quase que de modo triunfal, durante os séculos XVII e XVIII, com algumas nuanças de modificações, mas sempre mantendo as prerrogativas higienistas e teleológicas para a constituição da crítica do texto.

No entanto, a Igreja não suportou pacificamente as problemáticas levantadas pelos intelectuais leigos. Essa situação vai-se agravar quando os movimentos protestantes questionam o poderia Católico, inclusive a partir das conclusões humanistas. A Igreja, então, inicia um movimento de contrareforma com vistas a recobrar o ânimo de sua palavra e a punir, com vigor, todos aqueles que se indispunham contra a Palavra de Deus. Um exemplo disso foi que, depois do Concílio de Trento (1545-1563), a autoridade da Vulgata, de São Jerônimo, foi reafirmada e os trabalhos de Erasmo e de todos os outros filólogos que se debruçaram, de forma dissonante, sobre o texto bíblico foram censurados através do Index librorum prohibitorum.

Nos séculos posteriores, com a aparição de testemunhos da tradição de textos clássicos e até mesmo da Bíblia, os questionamentos filológicos pulularam e as propostas de estabelecimento do texto legítimo abundaram na razão direta por todos os principais centros de cultura além de Roma. Além disso, as práticas filológicas ampliaram, cada vez mais, o escopo do objeto com que trabalhavam, prova disso é o surgimento de abordagens voltadas para o estudo da autenticidade de documentos jurídicos ou para o estudo de textos em línguas românicas.

Tal contexto humanista e a revolução científica133 do século XVI, engendrada por Copérnico, Galileu e Newton, embora não fossem produto de uma mesma corrente, foram produtos de uma transformação na episteme134 europeia e em ambas podemos observar a promoção de atitudes que tentam abandonar procedimentos impressionistas

133 SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2008. p.

17.

134 FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. 2. ed.

ou de caráter religioso. Para compreendermos mais, podemos rememorar, junto com Boaventura Souza Santos, que

[e]stávamos então em meados do século XVIII, numa altura em que a ciência moderna, saída da revolução científica do século XVI pelas mãos de Copérnico, Galileu e Newton, começava a deixar os cálculos esotéricos dos seus cultores para se transformar no fermento de uma transformação técnica e social sem precedentes na história da humanidade. Uma fase de transição, pois, que deixava perplexos os espíritos mais atentos e os fazia reflectir sobre os fundamentos da sociedade que viviam e sobre o impacto das vibrações a que eles iam ser sujeitos por via da ordem científica emergente. [...]135

Em relação à Crítica Textual, podemos dizer que, a partir do século XVII e