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A submissão à censura em 1971: Greta Garbo entre críticos, censores e admiradores

D IREÇÃO G ERAL DO DPF

4.1 G RETA G ARBO , QUEM DIRIA , ACABOU NO I RAJÁ SOB CENSURA

4.1.1 A submissão à censura em 1971: Greta Garbo entre críticos, censores e admiradores

O início do itinerário de Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá pode ser narrado a partir do momento em que a Pichin Plá Produções submeteu o texto ao Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), do Departamento de Polícia Federal. No ofício, a produtora requeria, em 17 de dezembro de 1971, “[...] exame, para fins de Censura, da peça teatral GRETA GARBO, QUEM DIRIA, ACABOU NO IRAJÁ [...] para encenar a referida peça em 12 de fevereiro, no Teatro da Maison de France [...]”358.

O texto foi encaminhado em três vias com ofício da SBAT, dirigido ao chefe do SCDP em Brasília. No dossiê, há uma das cópias com 51 folhas, que trazem marcas da ação de destaque, de grifos, de rasuras e círculos contextos de cortes ou rasuras do processo de datilografia, fruto do “passar a limpo”, ou melhor, momento de “consciência”, de “burilamento” do texto, para lembrar da entrevista de Fernando Mello sobre o processo de criação de textos teatrais. Confiramos abaixo por um fragmento do fac-símile:

357 UMA VITÓRIA FEITA EM PEÇAS. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 4, 19 out. 1971. 358 PICHIN PLÁ PRODUÇÕES. [Requerimento de submissão]. Arquivo Nacional

Figura 16: Datiloscrito 1970, folha 44

Fonte: MELLO, Fernando. Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá. Rio de Janeiro: [s.n.], 1970. f. 44 Para compreendermos melhor os itinerários de mobilidades textuais e intervenções das mais variadas ordens que terminam por diversificar o texto na razão direta em que vão sendo demandadas autorizações para encenação, temos, no processo de censura, de estar atentos a um tipo documental importantíssimo, a saber: o Parecer do técnico de censura. O exame da documentação permite inferir que o texto da peça era encaminhado para uma “turma de censores”, geralmente, composta por dois censores. Em caso de divergência quanto à interdição ou liberação com ou sem restrição de faixa etária, encaminhava-se para um terceiro, aquele encarregado pelo voto de minerva.

Essa é a razão pela qual encontramos três pareceres da peça: o primeiro, de 27 de dezembro de 1971, foi de parecer favorável à liberação com restrição etária para maiores de dezoito anos. Vejamos:

Figura 17: Parecer 1, 27 de dezembro de 1971

Fonte: BRASIL. Departamento de Polícia Federal: Serviço de Censura de Diversões Públicas. Parecer [sem numeração]. Brasília, 27 dez. 1971.

Do ponto de vista da estrutura formal do tipo documental, Heloísa Bellotto define Parecer como sendo um “[...] documento diplomático opinativo [...]. Opinião técnica ou

científica sobre um ato, servindo de base para a tomada de decisão. [...]”359. No DPF, no SCDP, esse documento360 possuía a seguinte estrutura: título da peça, classificação etária, texto, data tópica e cronológica e a assinatura do técnico (aqui sempre omitida por um compromisso com a preservação da identidade do sujeito implicado). Quanto ao suporte, possuía papel timbrado com o brasão da União, com o cabeçalho do Ministério da Justiça, DPF, SCDP.

No que concerne à configuração do gênero textual, o parecer quase sempre é iniciado por um breve resumo do texto (“[...] Peça versando sôbre assunto [...] volte para sua terra e sua família [...]”), trecho no qual se faz uma leitura breve, concisa e contundente do enredo da peça e que serve de preâmbulo para explicação do resultado do parecer; em seguida, há a conclusão, que se subdivide na apreciação dos trechos que merecem cortes (“[...] Apesar do tema, a peça [...] peço sejam modificadas pelo autor. [...]) – para os casos em que há liberação com ou sem restrição a uma determinada faixa etária – e a enunciação literal da liberação ou interdição do texto (“[...] Assim, permanecendo apenas [...] opino seja liberada a peça com restrição máxima. [...]”).

Os sujeitos que exaravam pareceres, como este que acabamos de apresentar, eram Técnicos de Censura, funcionários com “reconhecida” formação intelectual e amplo lastro de “conhecimentos gerais”. Via de regra, eram nomeados pelas lideranças políticas e representavam a voz do Estado, amparados numa legislação bastante rígida. Muitos censores eram também da cena artística e cultural e viam o ingresso na carreira de censor, na DCDP, como uma forma de ascensão social. Esse é o caso de Coelho Neto, “[...] homem de teatro que atuou na cena amadora paulistana [e] ingressou na Divisão de Diversões Públicas [...]”361. Esse fato gerou uma pluralidade de sujeitos e de sujeitos leitores nas diversas superintendências regionais e na DCDP em Brasília. Havia censores mais moderados, outros mais radicais e, ainda, a intervenção de políticos ou de pessoas influentes na autorização ou no veto do texto.

Quando se pensa na Censura, principalmente depois do AI-5, a impressão imediata é de um horizonte bastante polarizado, cujas implicações estariam em proibir ou não proibir o texto para encenação. Porém, nas entranhas do processo de censura, as tensões eram mais comuns e constantes do que se imagina. Para Cristina Costa,

359 BELLOTTO, Heloísa L. Como fazer análise diplomática e análise tipológica de documento de arquivo.

São Paulo: Arquivo do Estado e Imprensa Oficial do Estado, 2002. p. 78.

360 Na maioria dos Pareces dos Técnicos de Censura, há uma identificação numérica utilizada para marcar e

historiar o documento. Surpreendentemente, este documento não possui. É uma exceção.

361 COSTA, Cristina. Censura, repressão e resistência no teatro brasileiro. São Paulo: Annablume; FAPESP,

[...] a censura não se constitui em uma série de proibições e cortes, nem em um conjunto de regras sobre aquilo que é ético, correto ou adequado, mas um campo de relações sociais entre artistas e governo envolvendo barganhas, negociações, interferências, recursos narrativos e literários. Também o veto ou a liberação são parte dessa relação de troca: espetáculos liberados podem ser suspensos caso haja denúncia de transgressão dos limites estabelecidos para os artistas, ou caso alguma autoridade se sinta atingida pelo que é dito no palco [...]362.

Dessa conjuntura melindrosa que se constituiu o processo de censura às “diversões públicas”, queremos destacar o censor como leitor, aquele que, valido da voz da União, exercia habilmente a classificação do texto. Para isso, ele estava lastreado por um conjunto complicado de legislações e decretos. Segundo Yan Michalski363, desde 1964, vários documentos legais foram baixados, mas a DCDP e as Superitendências Regionais continuavam a usar o decreto de n.º 20.493, de 24 de janeiro de 1946, em cujo texto havia, basicamente, oito razões para vetar a encenação da peça, quais sejam:

Art. 41. Será negada a autorização sempre que a representação, exibição ou transmissão radiotelefônica:

a). contiver qualquer ofensa ao decôro público;

b). contiver cenas de ferocidade ou fôr capaz de sugerir a prática de crimes; c). divulgar ou induzir aos maus costumes;

d). fôr capaz de provocar incitamento contra o regime vigente, a ordem pública, as autoridades constituídas e sues agentes;

e). Puder prejudicar a cordialidade das relações com outros povos; f). fôr ofensivo às coletividades ou às religiões;

g). ferir, por qualquer forma, a dignidade ou o interêsse nacionais; h). induzir ao desprestígio das fôrças armadas.364

Nesse texto, o que mais salta aos olhos é a multiplicidade dos usos de várias passagens, já que era o juízo subjetivo do censor que deveria julgar aquilo que era “ofensa ao decoro público”, “indução de maus costumes”, “prejudicar a cordialidade”, “incitar violência contra o regime vigente”, “desrespeito às forças armadas”, enfim. Havia uma infinidade de possibilidades de interpretar e é por isso que uma mesma peça poderia ser liberada por um e recusada por outros, ou a mesma peça ser autorizada no Rio de Janeiro, mas não em Salvador. Várias querelas sociais aconteceram contra as políticas da censura, especialmente, acerca das contradições existentes e os excessos cometidos. Muitos artistas se mobilizaram e a

362 COSTA, Cristina. Censura, repressão e resistência no teatro brasileiro. São Paulo: Annablume; FAPESP,

2008. p. 23.

363 MICHALSKI, Yan. O palco amordaçado: 15 anos de censura teatral no Brasil. Rio de Janeiro: Avenir,

1979. p. 25-26.

364 BRASIL. Decreto n.º 20.493, de 24 de Janeiro de 1946. Aprova o Regulamento do Serviço de Censura de

Diversões Públicas do Departamento Federal de Segurança Pública. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 29 jan. 1946. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1940-1949/decreto-20493-24-janeiro- 1946-329043-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 15 mar. 2013.

pressão social aumentou sobremaneira. Em uma carta escrita a Clarice Lispector, Fernanda Montenegro desabafava:

Clarice,

É com emoção que lhe escrevo pois tudo o que você propõe tem sempre essa explosão dolorosa. É uma angústia terrivelmente feminina, dolorosa, abafada, desesperada e guardada.

Ao ler meu nome, escrito por você, recebi um choque não por vaidade mas por comunhão. Ando muito deprimida, o que não é comum. Atualmente em São

Paulo se representa de arma no bolso. Polícia na porta dos teatros. Telefonemas ameaçam o terror para cada um de nós em nossas casas de gente de teatro. É o nosso mundo. [...]

Voltando às 'verdades duras' de que você fala: na minha profissão o enganar é a minha verdade. É isso mesmo, Clarice, como profissão. Mas na minha intimidade toda particular, sinto, sem enganos, que nossa geração está começando a comungar com a barata. A nossa barata. Nós sabemos o que significa esta comunhão, Clarice. Juro que não vou afastá-la de mim, a barata. Eu o farei. Preciso já organicamente fazê-lo. Dê-me a calma e a luz de um momento de repouso interior, só um momento. Com intensa comoção,

Fernanda365.

A repressão e o medo eram os dutos pelos quais se movimentava a cena teatral. Não só a presença insidiosa da polícia era uma constante, mas também as sensações de vigilância agravavam o clima. O impacto social também se estabeleceu fortemente e trouxe uma pressão para o Governo a ponto de comissões serem formadas a fim de rever a legislação e a atuação do Serviço de Censura. Mas, de fato, pouco foi efetivado, pois com o “escancaramento” da ditadura, o poder estava cada vez mais centrado na figura dos militares em defesa da moral e dos bons costumes.

O golpe efetivo desse acirramento veio com o decreto-lei n.º 1.077, de 26 de janeiro de 1970, que incidia diretamente na liberdade de expressão.

[...] Art. 1º Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação. [...]

Art. 3º Verificada a existência de matéria ofensiva à moral e aos bons costumes, o Ministro da Justiça proibirá a divulgação da publicação e determinará a busca e a apreensão de todos os seus exemplares. [...]

Art. 7º A proibição contida no artigo 1º dêste Decreto-Lei aplica-se às diversões e espetáculos públicos, bem como à programação das emissoras de rádio e televisão [...]366.

365 MONTENEGRO, Fernanda. [Clarice | é com emoção que lhe escrevo pois tudo o que você propõe...]. In:

LISPECTOR, Clarice. Correspondências: Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. p. 258-259. [grifo nosso].

366 BRASIL. Decreto-Lei n.º 1.077, de 26 de janeiro de 1970. (Vide Constituição de 1967) Dispõe sobre a

execução do artigo 153, § 8º, parte final, da Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da

União, Brasília, DF, 26 jan. 1970. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/1965-

Esse decreto-lei, promulgado pelo presidente Médici, deu todas as condições para que fossem exercidas, por mais absurdas e controversas que fossem as decisões da Censura, avaliações, muitas vezes injustas, contra as quais os artistas e escritores não tinham grande espaço para defesa. “Moral e bons costumes” virou um refrão doloroso para aqueles que constituíam o dissídio da concepção judaico-cristã de vida, família e sociedade. Alvejados com grande violência, homossexuais constituíram um grupo alijado tanto no quotidiano da experiência urbana, quanto nos textos em que apareciam representados, aliás, quase sempre de modo muito estereotipado.

Esse foi o caso de Greta Garbo, cujo parecer de dezembro de 1971, traz declarações surpreendentes sobre o cruzamento do tema da homossexualidade com a “qualidade literária” e a “originalidade teatral”. Logo no início, lemos: “Peça versando sôbre assunto já bastante explorado, sem nenhuma riqueza literária ou originalidade teatral, que a eleve a uma categoria acima do medíocre [...]”367. Aqui estão postas questões fundamentais para compreender o lugar do censor como leitor, pertencente à comunidade de leitura carioca dos chamados anos de chumbo.

Inicialmente, o parecerista descreve, não sem enfado, o tema “já bastante explorado” e, em seguida, aponta a falta de originalidade e qualidade literária do texto. O que orienta essa leitura é uma concepção estética construída no seio da tradição ocidental e que foi naturalizada como única. Esse modo de compreender a arte não é recente, se organizou desde os gregos e, embora não tenha um coro uníssono, tem em Kant, discutindo Estética, o fundamento mais moderno. Para ele, na Crítica da Faculdade do Juízo, o juízo tem uma validade geral sobre o belo, ou seja, “[...] Belo é o que apraz universalmente [...]”368, ou ainda, “[...] o objeto chama-se então belo e a faculdade de julgar mediante um tal prazer (universalmente válido) chama-se gosto [...] O juízo de gosto exige ser válido para toda gente [...]”369.

Porém, a totalidade dos universais kantianos deixou de fora uma infinidade de problemas do que vem a ser belo e arte, já que, ao tentarmos definir um aspecto ou outro, estaríamos sempre hierarquizando sistemas culturais. Assim, ao descartar a historicidade (circunstâncias culturais, sociais e epistêmicas que presidem as confecções de valores dentro de uma comunidade imaginada) seríamos capazes de construir avaliações de beleza, feiúra, verdade ou de superioridade étnica supostamente atemporais, a-históricas, quanto, se

367 BRASIL. Departamento de Polícia Federal: Serviço de Censura de Diversões Públicas. Parecer [sem

numeração]. Brasília, 27 dez. 1971.

368 KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993. p. 64. 369 KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993. p.34-35.

tivéssemos tomado um olhar perspectivo, estaríamos naturalizando construções culturalmente localizadas e, fatalmente, naturalizadas; aliás, como a tradição judaico-cristã ocidental esmerou-se em edificar, para usar as palavras de Derrida e de Deleuze.

Desse modo, restam-nos as seguintes questões: saber se (i) o texto não possuía riqueza literária por versar sobre o tema da homossexualidade ou se (ii) o texto não possuía qualidade pela “simplicidade” estética e estilística do drama. Parece-nos que há as duas coisas, de tal modo imbricadas que o fato de o tema ser já muito “explorado” impossibilitou que fosse original quanto ao gênero e rico quanto ao tema.

De fato, o que percebemos no julgamento do parecerista é um juízo estético valorativo, hierarquizante e naturalizador do belo e do artístico a partir do argumento universal (no sentido kantiano) do gosto. Não precisamos recorrer à história da Filosofia Ocidental para compreender que

[...] A história da E[stética] apresenta uma grande variedade de definições da arte e do belo. Embora cada uma dessas definições tenha, via de regra, a pretensão de

expressar de forma absoluta a essência da arte, hoje vai ganhando corpo a ideia

de que a maioria delas só expressa tal essência do ponto de vista de um problema particular ou de um grupo de problemas [...]370.

Porém, o argumento do técnico censor está amparado num princípio de prazer, bastante kantiano (“[...] a faculdade de julgar mediante um tal prazer (universalmente válido) chama-se gosto [...]”), que é, contemporaneamente, refratária de um contexto específico de problemas ou de um grupo social hegemonizado. Não que não haja prazer, nem que ele possa ser exercido na crítica, mas não pode ser deliberadamente difundido como algo natural, tampouco universalmente válido.

Há, ainda, o argumento de que a suposta simplicidade do texto (ambiente único, somente três personagens e os tipos humanos que eles representam) é um indicativo para a qualidade da arte, isto é, a arte como complexidade, como as coisas que vêm do alto, o sublime. Sobre isso, Walter Benjamin já teceu críticas importantíssimas com a crítica à “aura” que recobriria a arte em seu famoso ensaio A obra de arte na era da reprodutibilidade

técnica371. Greta Garbo, de fato, não é da ordem do sublime. Traz personagens encarnados

(gigolô, prostituta, homossexuais), com desejos ululantes nas diferentes cenas do cotidiano ordinário das grandes cidades.

370 ABBAGNANO, Nicola. Estética. In: ______. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p.

368.

371 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo:

Mas, ao contrário do estereótipo apreendido pelo técnico de censura, como no trecho “[...] Pedro acena com proteção e amparo, o que realmente lhe [a Renato] dá, o sustento material, em troca de sua degradação moral [...]”, no qual Pedro é o infecto homossexual deslindador da pureza de Renato, o texto da peça deixa fruir a esfericidade das personagens: não há bons e maus, mas sujeitos moradores da cidade urbana com demandas reais, interesses e também amor. Não há papeis marcados entre vítimas e vilões, a sintaxe das relações não é dual e o consórcio afetivo entre Pedro e Renato e Renato e Mary está longe de configurar um idealismo Romântico, mas – precisamos parafrasear – não é só possível amar em alemão!

Assim, inicialmente, no primeiro ato da peça, podemos ver contextos em que Pedro atua de modo interesseiro – como no trecho a seguir –, mas também lemos comentários insultuosos de Renato:

[...] PEDRO – (INDO PREPARAR DUAS DOSES) Não adianta negar. Você está com cara de apavorado.

RENATO – Tou como? PEDRO – Cara de apavorado. RENATO – (PAUSA) Vou embora. PEDRO – (VOLTA-SE) O que?

RENATO – Vou embora! Não tou gostando dessa estória. Nada-nada.

PEDRO – Que estória? (VAI PARA JUNTO DÊLE) Eu não contei nenhuma estória. RENATO – (RECUA) Olha aqui, seu. Acho bom o senhor ficar longe de mim! PEDRO – Eu não sabia que estava tão feio assim.

RENATO – (EXAGERADO) Eu sou macho, viu? Eu sou macho! PEDRO – (MEIO-TOM) Freudiano [...].372

Esse diálogo se dá nas primeiras páginas da peça. Nele, Pedro, tentando construir um clima intimista para ambientar uma conversa com Renato – um desabrigado que acabara de conhecer na Cinelândia – oferece roupas secas e uísque. Renato, o “guapo mancebo”, lido como inocente no parecer técnico, mostra-se bastante arredio, mas consciente das pretensões de Pedro, a ponto de bramir sua condição de gênero e identidade sexuais “RENATO (Exagerado) - Eu sou macho, viu? Eu sou macho!”. Ao que Pedro, ironicamente, responde: “Freudiano”!

O fator complicador dessa relação em quase todo o primeiro ato é o conflito de identidade de gênero e sexualidade. Antes de avançarmos na leitura, é importante que entendamos as questões de gênero e sexualidade, conforme Guacira L. Louro, para quem:

[...] gênero e sexualidade [...]são construídos culturalmente e, portanto, carregam a historicidade e o caráter provisório das culturas. Diferentes sociedades e épocas atribuem significados distintos às posições de gênero, à masculinidade, à

feminilidade e também às várias expressões da sexualidade. Estes significados atribuídos aos gêneros e às sexualidades são atravessados ou marcados por relações de poder, usualmente implicam em hierarquias, subordinações, distinções. E é fundamental dar-se conta de que essas marcações não se fazem somente sobre os corpos dos sujeitos, não se expressam apenas nas suas vidas e práticas individuais, mas atingem, igualmente, as instituições, as normas e os arranjos das sociedades.373

Durante todo o ato, essas questões de avaliação social das identidades de gênero e sexualidade se destacam. Ambas as personagens se julgam e encenam relações de poder baseadas nas tensões de gênero, principalmente, relativas às formas de dominação masculina, empreendidas por Renato; mas a homossexualidade de Pedro e os signos do feminino que bordam a identidade do enfermeiro não impossibilitam que haja permanência do exercício da misoginia, especialmente, quando pensamos nos entraves com Mary.

Desse modo, Pedro provoca Renato que, bastante incomodado, afirma-se “macho”. Essa percepção de um e do outro, a partir das interações e valores sociais e culturais, trará, ao longo do texto, mais configurações identitárias, tais como quando Renato, já bastante embriagado e com roupas secas, interpela Pedro:

[...] RENATO - (BEBE; ENTREGA-LHE O COPO; RISADA) Quer me ver bêbado, hem?

PEDRO - (CHOQUE) O que?

RENATO - (RISADA) Pensa que eu não sei? Eu sei. (RISADA) PEDRO - Não quero...!

RENATO - Que coisa... (RISADA) PEDRO - Qual é a graça?

RENATO - A tua pança. (RISADA) Ela sobe e desce, plum, plum, plum. (RISADA) PEDRO - (FURIOSO) Eu não tenho pança!

RENATO - Imagine se tivesse, hem? (RISADA) PEDRO - Resolveu me gozar, é?

RENATO - (T) Tou brincando, sô. PEDRO - Te ensino uma brincadeira.

RENATO - (GESTO NEGATIVO COM O DEDO) Hum-hum! PEDRO - Por que?

RENATO - Flata (digo, Falta) PEDRO - Falta?

RENATO - Pois é, falta do gostoso. PEDRO - (FURIOSO) Escute aqui, seu...!

RENATO - (CADA VEZ MAIS EMBRIAGADO) Ai, Matilde, fala. PEDRO - Olhe aqui...!

RENATO - (AFETADO) Matilde está zangada? PEDRO - Não me chame de Matilde!

RENATO - Sebastiana serve? PEDRO - Pare com isso!

RENATO - Sebastiana tá querendo o menino aqui, né? Mas não vai ter, Sebastiana Pançuda, não vai ter. O menino aqui gosta mesmo é de mulher. Mulher loura, de preferência. É, é... E você é prêta, Sebastiana Pançuda.

PEDRO - Eu não sou prêta!

373 LOURO, Guacira Lopes. Gênero e sexualidade: as múltiplas verdades da contemporaneidade. In:

CONGRESSO INTERNACIONAL COTIDIANO DIÁLOGOS SOBRE DIÁLOGOS, 2, Niterói, 2008. Anais...