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P ARA UMA EDIÇÃO DE G RETA G ARBO , QUEM DIRIA , ACABOU NO I RAJÁ

2 O PERA P HILOLOGICA : TENÇÕES PARA A F ILOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE

3.1 P ARA UMA EDIÇÃO DE G RETA G ARBO , QUEM DIRIA , ACABOU NO I RAJÁ

A tradição filológica ocidental, aquela que tem reclamado para si a tradição alexandrina, sempre privilegiou os métodos e abordagens críticas que objetivaram o (re)estabelecimento do texto, isto é, todas as reconfigurações epistemológicas por que passaram os estudos filológicos estavam comprometidas com o combate aos “erros”, “ruídos” e “imperfeições” que, durante o processo de transmissão do texto, foram corrompendo o sentido original e, portanto, verdadeiro.

Desse modo, não é de se estranhar que, mais tarde, as teorias editoriais lachmannianas, neolachmannianas e até mesmo a bédierista tivessem providenciado verdadeiras estratégias bélicas amparadas no rigor positivista do séc. XIX. Tais abordagens acreditavam nas prerrogativas da isenção da subjetividade na atuação editorial, coibiam as interpretações que não pudessem se sustentar sem provas materialmente expressas e recomendavam o tratamento matemático dos dados. Tudo

295 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil Platôs I: Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro:

isso para forjar a objetividade e originalidade do texto crítico (fixado a partir de um método).

Assim, se se tomar a teoria (neo)lachmanniana como método ideal para a abordagem das tradições politestemunhais, necessariamente está-se afirmando que os processos de transmissão textuais possuem, salvaguardadas as especificidades, uma estrutura comum de derivação e que todos os testemunhos de um dado texto advêm de um ancestral original. A missão seria, então, sempre reconstruir os caminhos dessa deriva até que fosse forjado o texto arquétipo do original ao restituir as verdadeiras tramas esgarçadas ao longo do tempo.

Entretanto, não se podem desconsiderar tradições textuais que desafiam as certezas de reconstituição lachmannianas. Nelas, o grau de parentesco entre os textos é colocado em xeque pela obtusa diferença substantiva e/ou formal entre os supostos testemunhos, ou seja, não se pode afirmar que os textos sejam cópias um dos outros; ou se são estágios de um processo de escrita; ou se são textos, efetivamente, diferentes que foram irmanados por um título ou temática comum. Nada disso pode ser dito sem que se pesquise exaustivamente o processo de produção, circulação e transmissão de cada texto envolvido na tradição.

Para esses casos, faz-se necessário construir outras posturas editorias que escapem aos conceitos de origem e de verdade como critério absoluto para o estabelecimento de texto. Ao pensar a história das tradições como a investigação dos processos de produção de sentido por meio das emergências de novos significados, é preciso estar consciente de que esse é olhar perspectivo que se opõe à história- continuidade. A recusa pela investigação da “origem” da Filologia dá-se pelo fato de esse procedimento buscar a “essência exata das coisas [...] anterior a tudo que é externo, acidental e sucessivo” 296, além de ser o suposto local onde residiria em definitivo, a “verdade”.

Ao contrário dessa busca pelo inaugural ou princípio, essa renovação na postura editorial precisa reconhecer que a emergência de novos sentidos, em meio a um jogo de forças inscritas historicamente, fazer inquirições acerca de como uma verdade foi atribuída a uma determinada “origem”, ou ainda, como e para quem foi construída essa versão, incontestável por excelência, de “verdade”. Tudo isso sempre a partir de um

296 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a Genealogia e a História. In:______. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. 2. ed. Tradução Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense

lugar perspectivo, isto é, aquele que reconhece a limitação, parcialidade, comprometimento do olhar do pesquisador.

Em razão disso é que os procedimentos editoriais para tradições politestemunhais precisam afastar-se desse cenário da “história-contínua”, afinal nela os editores quase sempre pretendem criar uma linearidade que exclui, camufla e esconde a diferença, a ruptura, a descontinuidade, a divergência e o desalinhamento dos acontecimentos. À medida que elabora uma narrativa pura, cujo método parece ser o da higienização dos desvios, excessos e dissidências, a história linear falseia uma versão que tem um compromisso com a naturalização dos fatos e, consequentemente, com a produção de uma verdade “objetiva”, imparcial, verdadeira, definitiva.

Caso se observe os métodos de estabelecimento mais tradicionais, algumas perguntas, daquelas para as quais não se tem resposta pronta ou óbvia, emergem ao se questionar sobre a originalidade de uma “variante” do texto X em detrimento da do Y, numa tradição textual em que não sobreviveram textos supostamente “originais”, nem genuinamente autorais:

a) a edição crítica seria a única possibilidade editorial para tradições textuais politestemunhais?

b) o estabelecimento de textos de natureza compósita (construídos a partir de arranjos e combinação das variantes do texto) são os arquétipos dos originais ou representam mesmo a última vontade do autor ou a vontade última dele? c) até que ponto os textos estabelecidos criticamente possuem a fidedignidade

fundacionalista de que tantos os filólogos se orgulham?

É pensando nessas questões e, principalmente, diante da impossibilidade de estabelecer textos cujos “testemunhos” são muito diferentes entre si, que surgem renovadas abordagens. Uma delas já está prevista dentro do método lachmanniano297, o que evidencia que a novidade do método não traz a falência da perspectiva teórica, mas a renovação dela, principalmente, a partir da recensio e da collatio.

A collatio é uma das etapas posteriores à recensio (coleta dos testemunhos). Nela são colacionados, isto é, cotejados os testemunhos a fim de se levantar os contextos onde há variação. Uma vez flagrada cada variante, procede-se à emendatio.

297 No século XIX, parecia bastante claro que era, com rigor e método, possível reconstruir os textos

originais, ou seja, recuperar a paternidade obliterada pelos estigmas do tempo através dos seguintes procedimentos: recensio (a recolha de todos os testemunhos de uma tradição manuscrita), emendatio (a reconstrução do arquétipo mediante a filiação dos testemunhos) e a constitutio textus (a constituição do texto compósito através da divinatio, usus scribendi e iudicium do editor).

Mas – eis que surge o desafio – para aqueles casos em que os testemunhos são mais bem chamados de “versões” diferentes de um mesmo texto, as emendas para fixação do texto não são muito viáveis ou são marcas históricas diferentes que trazem à tona projetos não harmônicos conforme a suposta origem.

Dessa forma, para o tratamento dessa situação, cabe mais a “edição que reproduz, lado a lado, as lições de pelo menos dois diferentes testemunhos, com o objectivo expresso de as comparar”298, qual seja: a edição sinóptica. Essa abordagem está inserida no grupo daquelas que buscam as vivências sócio-históricas do texto e que entende os contextos nos quais cada um dos testemunhos foram possíveis. Assim, não basta apenas a coleta dos testemunhos de uma tradição para edição de um texto de natureza compósita, mas coleta dos testemunhos e da sócio-história que os permitiu, bem como a transcrição e justaposição de todos eles.

É, exatamente, essa perspectiva pragmática que servirá de base para a crítica dos três scripts de Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá. Propomos aqui um abalo à noção de “testemunho” e é por isso que assumiremos sempre a palavra script (termo orgânico da cena teatral). Pela seguinte razão: a noção de testemunho está amparada na lógica socrático-platônica de “original” versus “cópia”.

Quando pensamos em “testemunho”, direta ou indiretamente, acreditamos que são textos que sobreviveram e que representam, materialmente, o texto ideal (original perdido ou a última vontade do autor). Serve, na tradição editorial, a palavra testemunho para criar nexos e relações, muitas vezes, lineares que ajudam a configurar o stemma

codicum, relegando a diferença das lições em nome da semelhança.

Esse esquema metafísico está plenamente estabelecido quando pensamos testemunhos como cópia e texto crítico (editado pela restituição filológica) como restituição representativa do original. Novamente, está em xeque um paradigma hierárquico forjado representativamente no seio do projeto platônico. Aqui, escolhemos nos posicionar na divergência desse modelo que não convive com a diferença e, mais que desconstruir as ciladas que essa paridade pode representar, queremos perceber o potencial daquilo que se quer recalcar.

Decididamente, estamos propondo uma relação com a reflexão sobre a reversão do platonismo de Deleuze, a partir de quem chegamos à compreensão de que o

298 DUARTE, Luiz Fagundes. Glossário de Crítica textual. Lisboa, Universidade Nova de Lisboa,

[1997-]. Disponível em: <http://www2.fcsh.unl.pt/cursos/ etexto/glossario/intro.htm>. Acesso em: 10 dez. 2009.

simulacro – a cópia da cópia que Platão insiste em banir por provocar falsas emoções e não corresponder à verdade – questiona a comodidade e a naturalidade da ideia e do que é construído como origem. Para Deleuze,

[...] o simulacro implica grandes dimensões, profundidades e distâncias que o observador não pode dominar. É porque não as domina que ele experimenta uma impressão de semelhança. O simulacro inclui em si o ponto de vista diferencial; o observador faz parte do próprio simulacro, que se transforma e se deforma com seu ponto de vista. Em suma, há no simulacro um devir- louco, um devir ilimitado [...]299.

Esse olhar perspectivo do observador, e aqui dizemos, do leitor que se apropria e transforma não é uma coisa contemporânea apenas; mas significa uma reintegração das subjetividades tolhidas em nome de um projeto abstrato e idealista. Os “testemunhos” funcionam como textos diversificados por agentes em contextos histórico-culturais diversos. Assim se justifica o esforço de organizar esses textos diversos sob o signo de “testemunhos” de uma tradição, é que tornar semelhante parece ser uma estratégia de culto ao original a partir da negação do que difere.

Daí, surge também a motivação para observamos a relevância de construir uma edição que dê visibilidade enunciativa ao que difere e faz diferença, através da assunção de todos os scripts como centros provisórios e/ou transitórios para a possibilidade de leitura de Greta Garbo. Na perspectiva editorial mais tradicional, cada script corresponderia a uma cópia infiel de um original perdido ou deturpado pelo tempo; se assumirmos esses scripts como simulacro, na reversão proposta por Deleuze, compreenderemos que “[...] o simulacro não é uma cópia degradada, ele encerra uma potência positiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a reprodução [...]”300. Assim, rasuramos decididamente o discurso binário que, sob o argumento cientificista, elegeu a epistemologia da semelhança como práxis absoluta, claro no sentindo de adequar-se às concepções modelares de leitura e de textos consagradas hegemonicamente.

Precisamos ainda ressaltar que o “texto” em suposta linearidade e a leitura dele em continuidade não vão mais além de uma metáfora responsável pela opressão da diferença e, ao mesmo tempo, pelo pacto com a homogeneidade. Sejam quais forem os

299 DELEUZE, Gilles. Platão e o Simulacro. In: ______. Lógica do sentido. Tradução Luiz Roberto

Salinas. São Paulo: Perspectiva. p. 264.

300 DELEUZE, Gilles. Platão e o Simulacro. In: ______. Lógica do sentido. Tradução Luiz Roberto

contextos, nenhuma leitura se dá estruturalmente, de modo a descartar a comunidade interpretativa e histórica à que estamos pertencidos e fazemo-nos pertencer. Desse modo, os argumentos de editores que acreditam que é preciso dar hum texto para o leitor estão amparados ainda na ideia de que ler é ler em unidade apaziguada das tensões sociais a que qualquer escritura está imersa. Embora nem todos os textos estejam em suportes hipertextuais, qualquer leitura se dá em redes inter/trans-textuais, o que desmente, sobremaneira, a necessidade de assegurar a produção de sentido em caracteres unívocos.

Se assediarmos o pensamento de Deleuze para pensar a escrita numa perspectiva material, podemos dizer em plena consonância que

Escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida. A literatura está antes do lado do informe, ou do inacabamento, como Gombrowicz o disse e fez. Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em vida de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir: ao escrever, estamos num devir-mulher, num devir-animal ou vegetal, num devir-molécula, até num devir imperceptível. [...] O devir não vai no sentido inverso, e não entremos num devir-Homem, uma vez que o homem se apresenta como uma forma de expressão dominante que pretende impor-se a toda matéria, ao passo que a mulher, animal ou molécula têm sempre um componente de fuga que se furta à sua própria formalização.301

Entretanto, com isso, não almejamos determinar que quaisquer textos só possam ser lidos na pluralidade e divergência, respeitamos outras opções; mas, decididamente, consideramos que a promessa de restituição falha pelos argumentos expostos. Assim, qualquer projeto editorial que proponha edição crítica de texto sem se amparar na gramática das relações cientificistas da Crítica Textual Tradicional ou da Moderna está fora do pensamento metafísico. Isso porque assume a construção criativa da edição, no sentido de escapar do determinismo cronológico-textual das lições que garantiriam (o tempo da conjugação verbal advém da nossa incredulidade) o itinerário científico até o texto crítico restituído.

Daqui em diante, precisamos ater-nos aos corpora que movimentam a atuação crítico-filológica desta pesquisa: o dossiê de Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá. Ele é constituído de vastos tipos documentais que foram produzidos, a partir de 1970, por causa do intenso processo de circulação dos pedidos de autorização de diferentes

301 DELEUZE, Gilles. A literatura e a vida. In: ______. Crítica e clínica. Tradução Peter Pál Pelbart.

produtoras teatrais brasileiras que, no período em que o Estado brasileiro foi tomado pelos militares, precisavam enviar cópias de scripts, requerimentos e pedidos de exame de censura. A partir desses trânsitos textuais e interações de diferentes atores, diferentes fatos culturais, políticos e sociais puderam ser reconhecidos a partir da documentação que sobreviveu nos arquivos do Departamento de Polícia Federal (DPF), hoje reunidos no Arquivo Nacional de Brasília.

Um breve levantamento dos tipos documentais no Dossiê Greta Garbo segue abaixo com um recorte apenas para a década de 1970, com especial enfoque para os cinco primeiros anos – eixo temporal no qual foi desenvolvida a pesquisa. Vejamos:

Quadro 1: Tipos documentais do Dossiê Greta Garbo DADOS GERAIS SCRIPT PARECERES QTD. DE RELATÓRIO DO ENSAIO

GERAL

CERT. DE