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4 G RETA G ARBO , QUEM DIRIA , ACABOU NO I RAJÁ OU A HOMOSSEXUALIDADE ENCENADA : C IRCULAÇÃO E O P ROCESSO DE CENSURA DE UMA PEÇA DE F ERNANDO

MELLO

TORRES Construir torres abstratas porém a luta é real. Sobre a luta nossa visão se constrói. O real nos doerá para sempre.318

Em São Paulo, numa quarta-feira, 22 de junho de 2011, Elio Gaspari, na seção

Poder da Folha de São Paulo, publicou um texto irônico acerca da situação dos

transportes públicos na cidade do Rio de Janeiro, com o seguinte título: “A rodoviária do Rio não é Greta Garbo”319. Ao final, depois de discorrer a respeito da querela entre o Governador Sérgio Cabral e o Prefeito Eduardo Paes a respeito do terminal de Irajá, o jornalista explicou o jogo intertextual que fez no título: “[...] Nos anos 70, fez sucesso uma peça intitulada ‘Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá’. A Divina acabou, muito bem, em Nova York. No Irajá, vivia um Pedro que sonhava ser ela. A rodoviária pode ir para lá, mas, ao contrário de Greta Garbo, deve-se saber por quê.”.

“Quem diria” que Greta Garbo escrita por Fernando Mello, em plena década de 1970, em contexto de repressão ditatorial, servisse, quarenta e dois anos depois, de mote para uma crítica política ao projeto de urbanização da cidade do Rio de Janeiro? Mas vale ressaltar que esse uso de Gaspari não é inovação recente. Greta Garbo, não a fabulosa atriz de cinema, mas “Pedro Garbo” – a inscrição subjetiva e dissidente de Pedro, homossexual de 40 anos morador do Irajá, que suplementa320 o ícone Greta Garbo – transformou-se numa expressão popular do cotidiano das relações nas grandes cidades. Prova disso é a contemporaneidade da expressão e os múltiplos usos nos jornais das décadas posteriores, quer se referindo diretamente à peça (anúncios de encenações, estreias etc.), quer valendo-se da referência indireta, como fez Gaspari.

Numa rápida pesquisa no acervo do Jornal O Globo, encontramos 815 l à peça (entre matérias e anúncios). Na década de 1970, 459; na de 1980, 138; na de 1990, 183; dos anos 2000, 34. No acervo do Jornal do Brasil, encontramos 353 referências, entre

318 FONTELA, Orides. Poesia Reunida. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p. 39.

319 GASPARI, Elio. A rodoviária do Rio não é Greta Garbo. Folha de São Paulo. São Paulo, 22 jun.

2011. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/po2206201114.htm>. Acesso em: 10 dez. 2012.

matérias e anúncios, só na década de 1970. No acervo do Estadão, encontramos 66 matérias que vão da década de 1970 aos anos 2000. No acervo da Folha de São Paulo, a busca por Greta Garbo do Irajá perfez um total de 396 páginas (1986-2013, 37 páginas; 1982-1985, 54 páginas; 1978-1981, 37 páginas; 1975-1977, 76 páginas). E essa repercussão não se restringia apenas ao Brasil. Em uma matéria de 3 de outubro de 1973, do Jornal do Brasil321, jornal de maior circulação na época, lemos que Fernando Mello já negociava os direitos autorais para montagem na Alemanha, Suíça e Áustria.

No nível das pesquisas arquivísticas, mais surpreendente para esta pesquisa foi quando, em consulta ao Arquivo Nacional, solicitamos informações sobre a peça Greta

Garbo, quem diria, acabou no Irajá, de Fernando Mello. Depois de negociação para

consulta à documentação, a Coordenação-Geral Regional do Arquivo Nacional do Distrito Federal, enviou-nos 645 (seiscentas e quarenta e cinco) folhas que compunham a pasta da peça no Fundo da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), datados entre 1970 e 1987. Nesta pesquisa, restringiremos este universo aos cinco primeiros anos da década de 1970, por se tratar dos anos em que o texto foi produzido, encenado e ganhou grande repercussão nacional.

Toda essa massa documental sobrevivente decorre das políticas de censura intensificadas no contexto de 1968, ano em que o mais severo e arbitrário dos Atos Institucionais foi promulgado, o AI-5. Elas visavam a um controle ideológico das formas de se enunciar temas que, porventura, questionassem ou divergissem do status

quo, da concepção política, de nação, da moral e dos bons costumes. Nesse sentido, é

importante compreendermos o lugar de fala de Coriolano Fagundes, um dos agentes da censura prévia no Brasil mais devotados sobre a questão. Para ele, censurar era:

[...] examinar e classificar, dentro de determinada faixa etária, o espetáculo de diversão pública, visando proporcionar ao espectador entretenimento adequado à sua capacidade de compreensão, ao mesmo tempo protegendo-o

contra impressões prejudiciais à sua formação intelectual, psíquica, moral e cívica [...].322

Imbuído da ideia de cuidado, o controle das “diversões públicas” representava uma política de manutenção de uma concepção sócio-cultural etnocêntrica, pelo firme compromisso com os paradigmas hierarquizadores da tradição cultural constituída no

321 PANORAMA. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 3, 3 out. 1973.

322 FAGUNDES, Coriolano de Loyola Cabral. Censura & liberdade de expressão. Rio de Janeiro; São

ocidente europeu, militar e, fundamentalmente, vinculada à moral e aos preceitos cristãos.

Nessa conjuntura pós-1968, o Brasil já tinha superado a querela sobre qual órgão do Governo – estadual ou federal – caberia a efetivação da censura de diversões públicas. Isso através da lei323 n. 4.483, de 1964, que centralizava no Departamento Federal de Segurança Pública a execução das atividades de censura, e, principalmente, por meio da promulgação da Constituição de 1967, que tornou a prática da Censura restritiva ao âmbito do, agora nomeadamente, Departamento de Polícia Federal (DPF).

Conforme Coriolano L. C. Fagundes324, essa centralização na União nunca aconteceu de modo efetivo, uma vez que, no âmbito estadual, ainda havia autoridades que se arvoravam a desempenhar exames de censura. Para se compreender melhor, a estrutura oficial dos órgãos censórios, ao menos pelo formato que se configurou na década de 1970, precisamos estar atentos ao Decreto n.º 73.332, de 1973, e à portaria n. 359-B, de 1974, do Ministério da Justiça. Abaixo, Coriolano Fagundes representa o organograma da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP):

Figura 13: Órgão Central de Censura325

323 Todas as leis, decretos e demais textos de legislação do período seguirão em anexo.

324 FAGUNDES, Coriolano de Loyola Cabral. Censura & liberdade de expressão. Rio de Janeiro; São

Paulo: Record; Taika, 1974.p. 83-150.

325 FAGUNDES, Coriolano de Loyola Cabral. Censura & liberdade de expressão. Rio de Janeiro; São

Paulo: Record; Taika, 1974.p. 94.

Embora esse desenho perfilasse de maneira legal a burocracia da DCDP, ele encontrava desafios na relação com os órgãos descentralizados do sistema de polícia da União, isto é, as Superintendências Regionais e as Departamentos de Polícia Federal. A principal questão para Coriolano Fagundes dizia respeito a uma estruturação sem padrões definidos nas diversas regiões. No Rio de Janeiro e em São Paulo, “sucursais” com maior interação com Brasília, havia a tendência de manter padrões mais próximos. Essa relação, somada à figura anterior pode ser reconfigurada da seguinte forma:

D

IREÇÃO

G

ERAL