• Nenhum resultado encontrado

2 O PERA P HILOLOGICA : TENÇÕES PARA A F ILOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE

2.4 C RÍTICA F ILOLÓGICA : DESAFIOS PARA UMA PROPOSTA

Na enchente de 22, a maior de todas as enchentes do Pantanal, canoeiro Apuleio vagou três dias e

três noites por cima das águas, sem comer sem dormir – e teve um delírio frásico. A estória aconteceu que um dia, remexendo papéis na Biblioteca do Centro de Criadores da Nhecolândia, em Corumbá, dei com um pequeno Caderno de Armazém, onde se anotavam compras fiadas de arroz feijão fumo etc. Nas últimas folhas do caderno achei frases soltas, cerca de 200. Levei o manuscrito para casa. Lendo as frases com vagar imaginei que o desolo a fraqueza e o medo talvez tenham provocado, no canoeiro, uma ruptura com a normalidade. Passei anos penteando e desarrumando as frases. Desarrumei o melhor que pude. O resultado ficou esse. Desconfio que, nesse caderno, o canoeiro voou fora da asa.245

Soa-nos, com bastante comprazimento, que a perspectiva crítica à Filosofia empreendida por Derrida se valha sempre do que já fora dito por outros. Assim como ele, não queremos inventar um novo sistema ou técnica metodológica, mas providenciar questionamentos que possam trazer abalos às convicções que garantiram hegemonias no Ocidente.

Diante disso, um primeiro espanto nos assalta como ao filósofo francês: qual seria a razão de dizer algo novo? E é exatamente essa pergunta que é abalada por Derrida: o “novo”, o “original” e o “inédito” são conceitos metafísicos que se

244 SANTOS, Boaventura Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3. ed. São

Paulo: Cortez, 2010. (Coleção para um novo senso comum).

245 BARROS, Manoel de. Os deslimites da palavra. In: ______. Manoel de Barros: Poesia Completa.

fundamentam pelo logo-fono-falocentrismo246 (a centralização da razão, da metafísica da presença pela voz do pai do logos e do patriarcalismo justificado pelo falo); afinal, ninguém parte da pureza, do zero, porque estamos sempre atravessados pela história.

Em detrimento desse preconceito metafísico, Derrida escolhe trabalhar com outros operadores não privilegiados pela tradição filosófica no ocidente, sem com isso precisar abandonar, rechaçar ou ojerizar a contribuição dessa tradição. Para Evando Nascimento, através de uma “experiência de leitura” da obra de Derrida, no caso, da

Farmácia de Platão,

[n]em a verdade nem a falsidade como valores hermenêuticos orientam a atividade derridiana. Ela seria mais da ordem de uma cena, a cena de leitura. [...] Em Derrida não há criação pura, seja ela filosófica, seja literária, e por isso ele está sempre partindo do texto de outros autores, filósofos ou escritores. Partindo, ou seja, tomando-os como ponto de partida e afastando- se deles, fazendo-os dizer o que jamais teriam dito. [...]247.

“Fazer dizer o que jamais disseram” está ligado ao que é interpretação para Derrida, a saber: “tecer um texto com os fios extraídos de outros tecidos-textos”248. Nessa concepção, a interpretação está muito relacionada a uma forma de leitura supletiva do texto, quer dizer, ela não tem um pacto com a suposta “vontade do pai”, nem pressupõe que o texto esteja incompleto a espera de um complemento, mas é também um espaço de produção de sentidos a partir da experiência do leitor.

Por outro lado, pensando na constituição da práxis filológica discutida nas outras seções, podemos, sem temores, afirmar que os humanistas renascentistas e a consolidação científica do séc. XIX da Crítica Textual apropriaram-se da diorthosis alexandrina para “fazer dizê-la o que jamais disse”. Eles operaram uma leitura que, julgando complementar os textos clássicos, enriqueceram as tradições textuais e apontaram, através das divergências no estabelecimento do texto original, para a crise do conceito de “origem” (“centro”, “fim”) como fundamento básico da Filologia.

Regressando um pouco mais, as referidas disputas entre os alexandrinos e os pergamenses ilustram como o idealismo platônico e a “vontade de poder” sobre o texto decorrem daquilo que o Ocidente escolheu pensar como ideia de origem. Por isso, não é

246 GLOSSÁRIO DE DERRIDA: trabalho realizado pelo Departamento de Letras PUC/RJ, supervisão

geral de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1976.

247 NASCIMENTO, Evando. Derrida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 13-14.

248 DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Tradução Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 1991.

insólito ouvirmos disputas acirradas entre filólogos que se arvoram em debates longos, atravessados por questões nacionalistas.

Contudo, não enveredaremos por essas questões, pois queremos tão somente assinalar e tomar como lição a atenção crítica providenciada por Pérgamo para explicar as “anomalias” do texto, problemas que, aos olhos alexandrinos punham em desconfiança a interpretação dos textos homéricos. Não traremos como paradigma a perspectiva pergamense, tampouco a leitura estoicista, mas não deixa de ser salutar entender como lidavam com a contradição como recusava a ideia de “erro” na crítica do texto.

Esse procedimento serve para ilustrar que o passado filológico foi apenas disparate de vertentes e que o silenciamento efetuado pelo tipo de leitura estoicista foi obra do pouco prestígio da Escola de Pérgamo frente à Alexandrina. Assim, se recortarmos a cena da leitura realizada pelos pergamenses e dela tirássemos a angústia da origem, poderíamos começar a pensar a considerar o variável, o instável, o inconstante e o diverso como variáveis com as quais a Crítica Textual Contemporânea pode trabalhar, sem precisar tratá-las como inimigas da genuinidade do texto.

Esse movimento não é exclusivo dessa abordagem. Por exemplo, Boaventura Souza Santos, ao diagnosticar a crise do paradigma racionalista, aponta para algumas mudanças no discurso das ciências, tanto do ponto de vista teórico quanto do social. Assim, ao ler a contribuição de Einstein para o deslocamento do rigor matemático e a de Prigogine para as novas concepções da matéria e da natureza, podemos pensar as seguintes rasuras:

[e]m vez da eternidade, a história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, interpenetração, a espontaneidade e a auto-organização; em vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente [...]249.

Pomos, desse modo, em suspensão o mecanismo de correção (diorthosis), princípio através do qual os filólogos têm conduzido suas práticas desde a Antiguidade, embora por métodos diferentes, e que tem provável inspiração nas recomendações e imaginários construídos acerca da ideia de texto. Provavelmente, essa ideia decorre de textos preceptísticos, como os tratados de retórica e poética, entre outros, que chegaram

249 SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2008. p.

à Alexandria provenientes do séc. VI ao IV, orientando, portanto, a reconstrução, normalização, produção e difusão dos textos de diversos gêneros, não só do discurso literário.

Por outras palavras, supomos que a assertiva que orienta a conclusão de que um texto está “incompleto”, com “erros” ou com “deturpações de sentido”, ou que um texto é texto escrito, reside no pressuposto da ideia de texto. Esta confeccionada pelo imaginário que também produziu as recomendações presentes na Poética de Aristóteles, em que vemos os desígnios acerca das características que separam e dispõem os gêneros literários.

Consequentemente, terminamos por desestabilizar a ideia de “original perdido”, isto é, o arquétipo textual geneticamente reconstruído e tomado, no que resulta, como dado objetivo. O exemplo emblemático que para nós justifica esse abalo é o anacronismo desse método editorial compósito quando aplicado à edição de textos medievais, quando nem a noção de originalidade, nem a de autoria, eram produtivas para a época. Cada texto é múltiplo em suas singularidades.

Mônica Castillo Lluch250, a partir de uma discussão sobre a noção de original nas

teorias da edição da Crítica Textual,

[...] destaca que de la representación que se tiene del autor depende en buena medida el concepto de original, el cual es el determinante del método de edición adoptado. En lo que al autor se refiere, […] observa que a menudo los editores proyectan sobre él una imagen que no se ajusta a la realidad literaria de la época, imagen en la que precisamente la idea de originalidad tiene un peso nada despreciable251 […].

Fica evidente, então, que o método universal proposto para edição de qualquer tradição politestemunhal desconsidera as historicidades do objeto quando não impõe noções estranhas ao contexto histórico no qual o texto foi gestado, como a de autoria, por exemplo. Ao que parece, o texto é reconstruído a partir de fontes tomadas como objeto inócuo, discreto, a espera dos pressupostos da teoria que o legitimará, como fundamento de uma narrativa linear, de uma memória progressiva que supera a heterogeneidade em busca de uma harmonia que foi corrompida.

250 CASTILLO LLUCH, Monica. Sobre el concepto de manuscrito original en la teoría filológica. In:

ARRUÉ, Michèle; THIBAUDEAU, Pascale. (Éd.). L’original, Pandora, n. 3, 2003, p. 51.

251 “[...] destaca que da representação que se tem do autor depende, em boa medida, do conceito de

original, o qual é determinante para o método de edição adotado. No que se refere ao autor, [...] observa que, frequentemente, os editores projetam sobre ele uma imagem que não se ajusta à realidade literária da época, imagem em que, precisamente, a ideia de originalidade tem um peso nada depreciável [...]”. [Tradução nossa]

As palavras de Nietzsche sobre a “história monumental” vão na direção do projeto teleológico de edição, principalmente, quando observamos que o texto fixado passa ser a representação reconstruída compositamente das dispersões históricas de outros textos-fontes. Ele afirma que a história monumental

[...] eternamente [...] aproximará, generalizará e finalmente identificará coisas diferentes, eternamente [...] reduzirá a diversidade dos motivos e das circunstâncias para apresentar uma imagem monumental [...]; de maneira que se poderia sem exagero chamá-la, na medida em que ela faz a maior abstração possível das causas, de uma coleção de “efeitos de si”, de acontecimentos que farão sempre o papel de efeito252.

De fato, os pactos assumidos para a produção de uma edição crítica possibilitam a produção de uma “imagem monumental” porque, desde a recensão – prova cabal da pluralidade textual –, passando por todas as etapas até a constitutio textus, vemos tentativas fundamentadas em generalizações (pressupostos são, afinal, generalizações) e a redução das diversidades de motivos históricos que proporcionaram a diferenciação dos textos no tempo e no espaço. O texto reconstituído, ao lado do aparato crítico com as variantes, acaba sendo um texto sinóptico com anotações à margem carregadas com as adulterações espúrias, bastardas, cujo centro é o texto legítimo.

O que parece agravar a questão é que o aparato com a bastardia das lições refutadas, os erros, não está à margem do texto fixado criticamente pelos filólogos para serem lidos como alternativas à variante editorial; mas para, ainda mais, garantir o rigor científico com o qual as escolhas foram, objetivamente, comprovadas. Assim como o errado só existe na diferença do verdadeiro, a exposição do falso, desviante, é a justiça feita ao que foi deturpado, o legítimo.

Dessa forma, a Filologia dos empreendimentos teleológicos, críticos e hermenêuticos constitui-se como um dispositivo de invenção das “origens” ou das “vontades do autor” sobre o texto. Compreendemos “dispositivo”, aqui, a partir da proposta de Agamben, na expansão de sentido que realizou da concepção foucaultiana253. Pelas próprias palavras do filósofo, observamos o processo de apropriação da seguinte forma:

252 NIETZSCHE, Friedrich. II Consideração intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da

História para a vida. In: ______. Escritos sobre história. Tradução Noéli Correia de Melo Sobrinho. São Paulo: Loyola, 2005. p. 87.

253 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo:

[...] chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, [...] as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc., cuja conexão com o poder é num certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e – por que não – a própria linguagem, que talvez é o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata – provavelmente sem se dar conta das consequências que se seguiriam – teve a inconsciência de se deixar capturar254.

Percebemos que a Filologia pode ser compreendida como um dispositivo de ordenação e controle do objeto a partir do controle dos sentidos. Afinal, como já discutimos (cf. seções 2.2 e 2.3), nenhuma atividade de pesquisa apreende o objeto de modo incólume, ou seja, sem também nele inserir uma complexa gama de saberes históricos do editor que manipula.

Que todos, independentemente da perspectiva de Filologia que se adota, fraturam e enxertam elementos em seus respectivos atos editoriais não resta dúvida (desde as reproduções mecânicas às edições críticas de natureza compósita), só consideramos problemáticos aqueles casos em que o editor se omite, valido que está das prerrogativas da ciência moderna positivista, e naturalizam as leituras que propõem. Não se trata de policiar a melhor versus a pior edição, a correta versus a errada, nem de escolher entre um dentro de um esquema binário valorativo; mas de compreender as prerrogativas e intencionalidades que cada projeto editorial e de leitura carrega.

Fica cada vez mais evidente que a própria noção de texto255 está em xeque e que, por isso, essas novas concepções, inclusive as da Linguística Textual ou as da Análise (Crítica) do Discurso, estão colapsando o modus operandi da Filologia mais tradicional, principalmente, no que tange à atividade editorial teleológica. De todas essas transformações duas vertentes nos interessam mais diretamente: a noção de mouvance, de Paul Zumthor256, e a noção de texto dentro da chamada Crítica Genética.

Em relação à questão proposta por Zumthor, o que fica bastante explícito, ao contrário das teorias que se arrogam pela universalidade, é que a noção de movência foi

254 AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? In: ______. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009. p. 40-41.

255 Não discutiremos aqui a diversidade de concepções de “texto” conforme os estudos importantes da

Linguística, Textual ou de qualquer consorte da chamada Análise (Crítica) do Discurso, pelo fato de eles – quase que invariavelmente – não tratarem as discussões na interface com a face material do texto e, além disso, permanecerem numa discussão de “texto” como entidade abstrata. Trataremos somente da mudança da concepção de texto dentro da Filologia e/ou das concepções que com ela fazem diálogo mais fronteiriço.

construída através das investigações dos corpora medievais. Ao estudá-los, ele observou que os textos não podiam ser lidos sem que se percebesse a relação simbiótica entre escrita e tradição oral, já que muitos textos, de diversos gêneros, eram escritos para serem lidos, cantados, recitados etc. Percebendo isso, Zumthor abala a certeza dos filólogos de que as divergências entre os textos de uma mesma tradição seriam fruto de problemas estritamente relacionados aos scriptores e à transmissão histórica do texto. De modo contrário, ele acredita que essa variabilidade decorre das configurações da tradição oral e das intermitências da representação gráfica dela.

Essa proposta lança um questionamento que rasura sobremaneira a concepção essencialista – forjada desde a tradição grega – de texto como unidade fechada, estática, limitada à dimensão material. Lançam-se, daí, questionamentos que vão na direção de perceber cada texto a partir das coordenadas históricas e culturais nas quais foram produzidos e nas quais construíram sentidos. A noção de texto passa a ser questionada e, ao mesmo tempo, ampliada cada vez mais.

Essa situação, de fato, impactou profundamente não só os estudos medievais e as certezas metodológicas propostas para a edição de textos, mas também os pressupostos de leitura dos gêneros literários, a própria concepção de Literatura. Como editar textos medievais por meio de concepções anacrônicas ao contexto histórico em que o texto é produto e foi produzido? No caso dos textos medievais, Zumthor sublinha com veemência a impossibilidade de se compreender a tradição literária do medievo sem entender a oralidade que lhe é característica. Ele afirma que:

[...] [a]s pesquisas feitas de trinta anos para cá não deixam nenhuma dúvida: só muito lentamente a prática medieval da escritura se emancipou das dependências vocais. Até o século XIII, por todo o ocidente, a escritura só reinou em ilhotas (geográficas e culturais) isoladas num oceano de oralidade ambiente [...]257

A “tradição oral” passou a ser vista como um sistema complexo que precisava ser compreendido per si, para além dos limites que se convencionou chamar de “Literatura”; o “oral” deixou, então, de ser visto apenas como um problema que atravessava o texto escrito como um produto ruidoso do processo de transmissão. Ainda pelas palavras de Zumthor, em A letra e a voz, vemos que:

257 ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz. Tradução Amalio Pinheiro e Jerusa Pires Fereira. São Paulo:

[...] [n]um recuo de mais de trinta anos, podemos espantar-nos com o escândalo que provocou, entre alguns, a emergência dessas novas plagas no horizonte de seus estudos [os medievais]. Mais valia negar a evidência, e essa ameaça que só a curto prazo se tinha razão de temer não arruína a estabilidade de uma Filologia assentada sobre séculos de certezas. Entretanto, a curiosidade e a honestidade intelectuais (talvez incitadas pelo assombro), ou então o gosto saboroso do risco, levaram outros a trilhar o território desconhecido. Tomava-se posse desse novo continente; ou melhor: já que lembranças muito antigas despertavam para essa aventura, recuperava-se o direito sobre um universo perdido. Essa região – nossa velha poesia oral –, da qual se desenhavam pouco a pouco as paisagens, havia sido durante longo período renegada, ocultada, recalcada em nosso inconsciente cultural. [...]258.

É exatamente apoiado nas análises zumthorianas e investido de uma reflexão arguta sobre o método filológico celebrado a partir do séc. XIX que Marcello Moreira defende, com muita propriedade, que todos os filólogos e editores críticos precisam se sentir obrigados a “[...] repensar as teorias da edição até então indiscriminadamente aplicadas aos mais variados textos e tidas como universalmente válidas. [...]”259.

Outra situação que trouxe desafio enorme ao modelo editorial tradicional, além da noção de mouvance analisada por Zumthor, vem também da França. Ao entender o texto como “processo”, a Crítica Genética desestabiliza a concepção auto-centrada e finita de texto.

Acerca disso, Louis Hay, leitor de Jacques Petit, reflete:

‘O texto não existe!’: é sobre essa constatação que Jacques Petit concluía, nos meados dos anos 1970, um primeiro debate consagrado à produção do texto. [...] A noção de texto é, na verdade, o resultado de uma evolução muito particular por sua dimensão histórica. Ela compreende um período de grande estabilidade, que se inscreve em longa duração, e um período breve e recente de mutações em cascata [...]260.

O efeito que resulta do primeiro momento em que se lê a afirmação de Jacques Petit é sempre aterrorizante para uma sociedade que fundamentou as próprias bases na cultura escrita. Mas, não se trata de uma declaração meramente estética, e sim da desconstrução da concepção que, segundo Louis Hay261, foi desenvolvida na Idade Média, a partir da sacralização do texto bíblico, cuja constituição precisava ser reconhecida como formal, íntegra, estável desde a mais remota origem. Com isso,

258 ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz. Tradução Amalio Pinheiro e Jerusa Pires Fereira. São Paulo:

Companhia das Letras, 1993. p. 7-8.

259 MOREIRA, Marcello. Critica Textualis in Caelum Revocata? Uma proposta de edição e estudo da

tradição de Gregório de Matos e Guerra. São Paulo: Edusp, 2011. p. 137.

260 HAY, Louis. A Literatura dos Escritores: questões de Crítica Genética. Tradução Cleonice Mourão.

Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. p. 37.

261 HAY, Louis. “O texto não existe”: reflexões sobre a crítica genética. In: ZULAR, Roberto. Criação em Processo: ensaios de crítica genética. São Paulo: Iluminuras, 2002. p. 29-44.

parece ser forçoso afirmar que a visibilidade do fenômeno não pode ser sempre lida como aparecimento inicial dele.

Assim, a desconstrução do “texto”, na Crítica Genética, está relacionada à conclusão de que o texto não é concebido como um todo acabado, como parece estar bem representada pela imagem do texto impresso, acabado. É que, ao investigar os arquivos de autores modernos, comprovaram que aquilo que chegam aos leitores sob a forma de “obra” é produto de um longo processo de criação, de reescrita, de muitas