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CERT DE CENSURA

3.1.1 A edição impressa ou a impressão de um devir

Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá é um texto dramático de grande

repercussão nacional que tem sido encenado desde a década de 1970, época em que as artes brasileiras estiveram sob ostensiva vigilância. Na peça, conta-se de um amor entre Pedro, ou melhor, “Greta Garbo dos pobres”, enfermeiro homossexual de quarenta e poucos anos, e Renato, jovem do interior do Rio de Janeiro. Essa relação ganhará mais intensidade com a chegada de Mary, amante de Renato, que é, segundo a Greta do Irajá, uma prostituta.

Essa peça recebeu várias montagens e percorreu o Brasil quase todo, fato que gerou diversos processos de submissão à Censura. Tal fortuna arquivística, preservada no Arquivo Nacional de Brasília, traz indícios das diversas formas de recepções do texto, o que pode contribuir para o entendimento de como eram tratadas as questões relativas à homossexualidade no período em que os militares governaram o Brasil. Nesta pesquisa, produz-se um confronto sinóptico de três scripts302 da peça, quais

sejam:

302 Na tradição terminológica da Filologia, compreende-se “testemunho” como cada texto sobrevivente de

uma tradição textual. Aqui, principalmente para que se suste o sentido linear que essa designação carrega, utiliza-se script, termo alcunhado pelos próprios agentes envolvidos com Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá.

a) MELO, Fernando. Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá. Rio de Janeiro, 1970 [1971].

LOCALIZAÇÃO: Arquivo Nacional;

DATAÇÕES:datado de 23/25 de julho de 1970 e submetido ao Serviço

de Censura de Diversões Públicas pela Pinchin Plá Produções por

meio da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, em 17 de dezembro de 1971;

CLASSIFICAÇÃO: Adulto;

PERSONAGENS: Pedro, Renato, Mary;  NÚMERO DE ATOS: 3;

CÓDIGO: Datiloscrito 1970 (D70);

DESCRIÇÃO MATERIAL: datiloscrito, com 51 folhas, reprografados em folhas em formato ofício. Numeração das folhas centralizadas na parte superior e isolada por traços (– 2 –). Numerações manuscritas aparecem no canto superior direito e acomodam o texto à série completa dos documentos do dossiê do Fundo de Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP). À margem esquerda, as cópias dos textos apresentam marcas da perfuração no texto a partir do qual foram feitas as cópias. Registram-se marcações à mão que ora sublinham, circulam ou dão destaque a trechos do texto sem quaisquer carimbos ou rubricas capazes de identificar a intenção ou proveniência do ato;

b) MELO, Fernando. Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá. Revista de

Teatro SBAT. Rio de Janeiro, n. 400, p. 45-68, jul.-ago. 1974.

LOCALIZAÇÃO: Arquivo Nacional;

DATAÇÕES:na edição da Revista de Teatro SBAT, de julho a agosto de 1974;

CLASSIFICAÇÃO: Adulto;

PERSONAGENS: Pedro, Renato, Mary;  NÚMERO DE ATOS: 3;

CÓDIGO: Impresso 1974 (I74);

DESCRIÇÃO MATERIAL: reprografia do texto impresso publicado na

(SBAT), n. 400, de julho-agosto de 1974, entre as páginas 45 e 68. A

cópia do impresso dispõe duas páginas por folha lado a lado e cada página tem o texto diagramado em duas colunas. O texto possui, no canto inferior direito, a numeração e no canto inferior esquerda, a data cronológica da publicação “Julho-Agosto 1974”. Quase todas as páginas têm o carimbo do Departamento de Polícia Federal (D.P.F.) – Superintendência Regional do Rio de Janeiro (cf. figura 3), com uma rubrica, no canto direito, ora na parte superior, ora na intermediária.

Figura 3: Carimbo DPF – Superitendência Regional/RJ

Fonte: MELO, Fernando. Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá. Revista de Teatro SBAT.

Rio de Janeiro, n. 400, p. 45-68, jul.-ago. 1974. p. 48.

c) MELO, Fernando. Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá. Rio de Janeiro, 1975.

LOCALIZAÇÃO: Arquivo Nacional;  DATAÇÕES:1975;

CLASSIFICAÇÃO: Adulto;

PERSONAGENS: Pedro, Renato, Mary;  NÚMERO DE ATOS: 3;

CÓDIGO: Datiloscrito 1975 (D75);

DESCRIÇÃO MATERIAL: datiloscrito, com 32 folhas reprografadas em folhas em formato ofício. Numeração das folhas centralizadas na parte superior, seguida da indicação do ato entre parêntesis (e.g. Fl. 12 – (Primeiro Ato)). Numerações manuscritas e rubricas aparecem no canto superior direito e acomodam o texto à série completa dos documentos do dossiê do Fundo de Divisão de Censuras de

Diversões Públicas (DCDP). À margem esquerda, as cópias dos textos apresentam marcas da perfuração, provavelmente fruto do processo de arquivamento. Registram-se marcações à mão que ora sublinham, circulam ou dão destaque a trechos do texto que foram indicados para cortes. Sobre esses passagens aparecem carimbos em formato retangular reiterando o corte com a seguinte informação “COM CORTE”. Essas indicações de corte aparecem às folhas 14, 24, 26, 27, 28, 30, 32.

Figura 4: Carimbo da Sociedade Brasileira de Autores Teatraos – Feira de

Santana, BA

Fonte: MELO, Fernando. Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá. Rio de Janeiro,

1975. 3.1.1.1 Critérios e transcrição

A transcrição que tencionamos pretende considerar a diversidade irrevogável que abunda em todos os textos de Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá. Por isso, o que apresentaremos a seguir é uma transcrição impressa que lide de forma plural com os textos. Para isso, providenciamos, para cada vez que os scripts ocupam o centro do texto, condensações sinópticas dos contextos em que a diferença mostra-se vivificada.

Por outras palavras, proporemos uma leitura para a peça de Fernando Mello que não centralize o texto crítico correto, mas que possibilite a centralidade provisória de cada script como complexidade histórica. Assim, quando o leitor estiver diante do script D70, ele poderá observar os contextos em que há diferença no I74 e no D75 e vice- versa. Por isso, o processo de hierarquização da tradição textual entra em colapso, numa atitude de desarticulação do centro e da periferia. Assim, ficam centralidade e periferia

numa relação estratégica e provisória. Portanto, ao valermo-nos da perspectiva de Derrida, podemos pensar numa edição “descentrada”, na qual:

[...] o significado não possui mais um lugar fixo (centro), mas [...] passa a existir enquanto construção substitutiva que, na ausência de centro ou de origem, faz com que tudo se torne discurso e a produção da significação se estabeleçam e diante uma operação de diferenças. Dessa forma, eliminando- se qualquer referência a um centro, a um sujeito, e não mais se privilegiando aspecto algum sob o disfarce da “origem”, a atividade interpretativa, com base na polissemia* do texto artístico, vai permanecer sempre incompleta, ou noutras palavras, nunca pretendendo chegar a esgotar o significado do objeto- texto na sua totalidade303.

Para a transcrição dos scripts de Greta Garbo, procederemos à transcrição relativamente conservadora. Embora pudéssemos chamá-la de semidiplomática, optamos aqui por deixar de lado esse conceito pelo fato de haver bastante controvérsia no que se refere à edição. Escolhemos caracterizar de conservadora a leitura que elaboramos pelo fato de os critérios estarem amparados na preservação sistemática de aspectos semânticos, lexicais, fonético-fonológicos, morfológicos e sintáticos; porém, no que concerne aos aspectos grafemáticos e aos aspectos da mise-en-page304 do texto escrito, foram feitas alterações para que as conexões entre os textos pudessem se dar de maneira mais pragmática, uma vez que lidamos com diferentes tipos de suporte.

Como os textos possuem marcas de diferentes sujeitos envolvidos com a cena teatral no contexto da ditadura militar, optamos por utilizar um conjunto de operadores que são úteis para lidar, na transcrição do texto, com as ações desses sujeitos, principalmente, dos técnicos de censura ou datilógrafos das respectivas companhias teatrais. Vale ressaltar que nem sempre foi possível revelar quem foi o sujeito autor das ações, nem explicar todos os movimentos textuais que presidiram o ato do grifo ou do risco na folha. Segue, abaixo, uma lista com os que foram utilizados:

303 SANTIAGO, Silviano (Org.). Descentramento. In: ______. Glossário de Derrida. Rio de Janeiro: F.

Alves, 1976. p. 16.

304 MARQUILHAS, Rita. Conceitos de pragmática lingüística na mise-em-page do texto escrito. In:

ABREU, Márcia; SCHAPOCHNIK, Nelson (Org.). Cultura letrada no Brasil: objetos e práticas. S. Paulo: Fapesp; Campinas: ALB; Mercado de Letras, 2005. p. 77-85.

Quadro 2: Critérios da transcrição

Critérios de Transcrição EXEMPLO 1. Risco legível por letra sobreposta, em geral, “xxx” pasageiro 2. Risco ilegível por letra sobreposta, em geral, “xxx” XXX 3. Corte de palavras ou expressões serão envolvidos com linha vermelha e a

indicação do carimbo de corte será sobrescrita merda COM CORTE 4. As leituras conjecturadas serão registradas através de colchetes [possivelmente] 5. Palavras datiloscritas juntas serão separadas, e as separadas serão

juntadas, desde que não comprometam a construção dos sentidos no texto. 6. Os aspectos de acentuação e ortográficos serão preservados como em cada

script.

7. As margens de cada script serão padronizadas para o formato “justificado”, sem margem alínea.

8. Serão mantidas as divisões das folhas/páginas para que os textos sejam facilmente recuperados na relação com os respectivos fac-símiles. 9. As linhas dos textos não serão mantidas conforme a disposição no fac-

símile. A numeração será realizada a partir das falas das personagens à

qual, por questão de économie305, denominamos linhas. l. 24

10. As intervenções inseridas na entrelinha superior serão indicadas entre

colchetes e com uma seta indicando a direção. papava [↑corte]

Dar conta de uma proposta de edição que abandone o projeto teleológico, quase sempre equivale a pensar em edições sinópticas que justapõem o texto lado a lado. Essa possibilidade parece ser mais exequível em textos cuja extensão e diferença possam ser cotejados mais de perto, para, enfim, considerarmos as relações nas tensões das diferenças contextuais. Entretanto, não é essa a situação dos scripts de Greta Garbo,

quem diria, acabou no Irajá. As diferenças de linhas e de contextos, quando

experimentamos o confronto sinóptico lado a lado, chegaram a ter mais de uma página de diferença. Por isso, escolhemos utilizar “balões de comentário” do recurso de revisão do Microsoft Word 2007, como estratégia de sumarização dos contextos em que as diferenças foram deflagradas, a partir de índices codificados por [D70], [I74] e [D75].

305 DERRIDA, Jacques. A escritura e diferença. Tradução Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São

Figura 5: Exemplo da sumarização dos contextos de [D70] com [I74] e [D75]

Por outro lado, quando se pensa em diferença entre os scripts mencionados, de chofre, surge uma questão bastante controversa: se os textos são diferentes entre si porque resultam de operações subjetivas sócio-históricas diferentes, por que compará- los, ou ainda, se isso parecer óbvio, o que se quer comparar, que diferença expor?

A primeira questão pode ser respondida com o propósito aqui posto: compreender Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá significa ler a diversidade histórica de textos que resultaram dela, no disparate de agentes que mediaram as relações sociais de produção, circulação e reprodução. Então, Greta Garbo não é

somente um dos scripts por ele ser o mais antigo (D70) ou mais recente por representar

o propósito final do autor (I74); mas tanto a diversidade quanto a unidades, numa relação entre lato e stricto, e nas redes e nexos construídos na “sociologia” do texto306.

Dito isso, resta-nos responder qual diferença interessa-nos nessa comparação para compreensão da história da peça de Fernando Mello e qual não daremos atenção.

Não sublinharemos as diferenças que dizem respeito

a) à pontuação divergente sem alteração da função sintática:

 D70, l. 545: PEDRO - É, ir embora daqui. Você não vai aguentar a barra desta cidade. Você é... comé que eu digo? ...frágil. Você é frágil, Renato. Não vai aguentar a barra.

306 MCKENZIE, D. F. Bibliografía y sociología de los textos. Tradução Fernando Bouza. Madrid: Akal,

 D75, l. 538: PEDRO - É, ir embora daqui. Você não vai aguentar a barra desta cidade.Você é... comé que eu digo?... frágil. Você é frágil, Renato, não vai aguentar a barra.

 COMENTÁRIO: No trecho em destaque, após o vocativo “Renato”, há, no D70, um ponto; no D75, uma vírgula. Essa diferença não alterou a função sintática dos constituintes da oração, mas consiste numa diferença prosódico-entonacional que, por ora, não nos interessam de imediato.

b) às diferenças entre os sistemas ortográficos:

 D70, l. 29: PEDRO – Que estória? (VAI PARA JUNTO DÊLE) Eu não contei nenhuma estória.

 I74, l. 44: PEDRO – Que estória? (Vai para junto dele) Eu não contei nenhuma estória.

 COMENTÁRIO: O acento diferencial nas vogais médias (abertas e fechadas) praticado no sistema ortográfico anterior a 1970 serve de ilustração para uma diferença que não será lida nessa discussão. Além dele, podemos incluir a marcação da sílaba tônica com o acento grave nos morfemas lexicais básicos de itens lexicais em contexto de derivação/flexão. Ex.: sòlidamente.

c) a trechos riscados em que não há paridade em relação a outros textos.

 D70, l. 1299: MARY – (SOLTA-SE DÊLE) Nunca mais fale comigo, seu senvergonha, seu sujo, seu porco, seu... seu... xxxxxxxxxxxxxxxx  D75, l. 1281: MARY (Empurra-o) – Nunca mais fale comigo, seu

semvergonha, seu sujo, seu porco, seu... seu... seu marido de bicha!  COMENTÁRIO: Só aparece risco no D70, logo não foram cotejados

por esse aspecto.

Serão destacados em negrito, dentro dos balões, os excertos em que aparecem as divergências. Na medida do que foi possível, tentamos contextualizar a diferenças pela linha da fala anterior e posterior. Desse modo, isolamos o trecho de diferença colocando a fala antecedente e consequente em que há semelhança entre ambos.

A seguir, dispomos os textos em sequência começando pelo D70, I74 e D74, devidamente cotejados nos aspectos que já declaramos de maior interesse para a leitura filológica que intentamos empreender.

3.1.1.2 Transcrição conservadora com confronto sinóptico condensado

Da transcrição conservadora já apresentamos, acima, os critérios de transcrição e o artifício que utilizamos para representar a condensação sinóptica a partir dos balões de comentário do Microsoft Word versão 2010. A ideia, também como já insistimos, é poder partilhar todos os scripsts que sobrevivera, de modo a identificar a pluralidade material das versões de Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá, sem, contudo, privilegiar nenhum aspecto, uma vez que cada texto sobreviveu e foi produzido para um coordenada histórica e cultural específica.

Vale já apontar (discorreremos melhor na seção seguinte) que o D70 foi o primeiro texto produzido e submetido ao exame de censura; o I74 é o texto que resulta da publicação na Revista de Teatro da SBAT, texto que, em relação ao anterior, tende a uma “desregionalização” estratégica, uma vez que Greta Garbo de Fernando Mello precisa deixar de ser tão carioca; D75 é um datiloscrito produzido por uma companhia de teatro de Feira de Santana e que ora se afasta do primeiro, ora diverge do segundo, embora de fato com este último guarde, a maior parte das vezes, maior identificação.

Os textos transcritos serão apresentados na seguinte ordem: primeiro, D70; segundo, I74; e terceiro, D75. Além disso, precisamos reiterar:

a) os textos serão impressos em fonte tamanho 10, visando atender à melhor acomodação dos balões de comentário às páginas;

b) o que chamamos de linha corresponde à fala das personagens, e não exatamente à linha do datiloscrito;

c) mantivemos a indicação das folhas e/ou páginas para melhor consulta do leitor ao fac-símile;

d) os contextos de diferença e de condensação sinóptica serão identificados pelos códigos [D70], [I74] e [D75];

e) os balões de comentário que não couberem na página, serão, através do recurso do editor de texto, impressos como “notas de fim”.