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Literatura indígena contemporânea: vozes dessilenciadas de Graça Graúna, Eliane Potiguara e Daniel Muduruku

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS - UFAL CAMPUS SERTÃO – DELMIRO GOUVEIA CURSO DE LETRAS – LÍNGUA PORTUGUESA. JOEL VIEIRA DA SILVA FILHO. LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA: VOZES DESSILENCIADAS DE GRAÇA GRAÚNA, ELIANE POTIGUARA E DANIEL MUNDURUKU. DELMIRO GOUVEIA – AL 2019.

(2) JOEL VIEIRA DA SILVA FILHO. LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA: VOZES DESSILENCIADAS DE GRAÇA GRAÚNA, ELIANE POTIGUARA E DANIEL MUNDURUKU. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Federal de Alagoas (UFAL), como requisito final para obtenção do título de licenciado em Letras – Língua Portuguesa. Orientador: Prof. Dr. Márcio Ferreira da Silva Coorientadora: Prof.ª Me. Cristian Souza de Sales. DELMIRO GOUVEIA – AL 2019.

(3)

(4) 20. dezembro.

(5) Dedico este trabalho a Deus; Aos meus ancestrais; Ao povo Katokinn; À minha mãe, Maria Dalva!.

(6) AGRADECIMENTOS. Eu não vivo só, tenho amigos que me ajudam, torcem e rezam por mim. Nem sempre estão presentes fisicamente, mas para ser amigo não é preciso estar, é preciso ser, e eles são. Nas palavras que seguem, tentarei agradecer àquelas pessoas que sabem as lutas que Joel enfrentou na caminhada acadêmica, e das lutas que a pessoa Joel enfrentou/enfrenta na vida. No mundo das aparências, dos encontros sem afetos, das experiências que só valem se forem registradas, ter amigos é ter um ombro para chorar e também para sorrir. “Amizade” de mercado, “amizade” de fachada, “amizade” dos interesses, essas eu não quero. Quero ter amigos que me digam palavras de afeto, mas que também me digam palavras duras quando eu precisar, que me orientem quando eu estiver no escuro, mas que também me ouçam quando meu silêncio falar mais que minhas palavras. Amigos que fiquem felizes quando eu estiver feliz, que me incentivem a ser melhor e a não querer apenas receber, mas também a doar. Amigos que riam da minha risada escandalosa e que me façam rir também, que me ensinem que eu não posso apenas querer tê-los ao meu lado, mas que eu também preciso ser o lado que os segura quando eles precisarem. Que eu não seja hipócrita em falar de amizade e, não ser amigo. Na verdade, quero saber amar mais, pois só amando, não precisarei explicar nada a ninguém, pois, meu amor falará, não por palavras, mas por minhas ações. Sendo assim, agradeço primeiramente ao meu melhor amigo, Deus, o autor de tudo e responsável pela minha vida, a Ele devo tudo, sou fruto do amor e nas estradas da vida sei que com Ele posso contar sempre. E também a Nossa Senhora, minha mãe e protetora. Agradeço à minha família, ao meu pai, aos meus irmãos, minhas madrinhas, meus/minhas tios/tias e especialmente à minha Mãe, Maria Dalva, mulher de fibra, destemida, que foi impedida de estudar, mas que lutou com garra para que seus três filhos conseguissem concluir os estudos. Ela lutou, meus irmãos não concluíram o ensino médio por desleixo, e aqui estou eu, concluindo um curso superior. Ela sabe que eu a amo e agradeço-a por tudo! À minha amiga Tairla, que desde o ensino fundamental está comigo, mesmo morando distante nunca me abandona, somos mais que amigos, somos irmãos. A ela, devo muito, por cada hora conversada no celular e pessoalmente, por cada palavra de amor. Aos meus amigos da UFAL, estes que conheci na academia e desenvolvi uma relação de afeto, de companheirismo e de amizade, os membros da turma do fundão: Ábida, Karol,.

(7) Luana e Randerson, meu muito obrigado por serem quem são e por não desistirem de mim. Amo vocês! Deus nos uniu! Agradeço também às/aos amigas/os Ailton, Breno, Flávia, Giovana e Herlanne por serem conselheiros nas horas de dúvidas, por me abrigarem no abraço, por cada festinha em que fomos, pelas conversas, pelos conselhos. Vocês são espetaculares! Agradeço ainda aos meus professores da UFAL Sertão – em especial à Cristian, Fábia, Ismar, Lilian Bárbara, Márcio, Murilo e Samuel – por cada aula, por cada fala, por me levarem a perceber que a docência exige compromisso. Aos colegas de turma e aos amigos letrandos de outras turmas, pela amizade, pelas conversas, pelas partilhas, em especial à Viviane, Beto, Nadine, Vanille, Edja, Mariana, Norton, Totty e Juliana. À Rakel Teodoro, menina amada, obrigado por tudo, você é demais! Às professoras Nadja Siqueira e Anicéia Ribeiro, professoras minhas no ensino médio, agradeço por me fazerem gostar das letras. Elas também colaboraram para a formação do professor que sou hoje. Ao professor Samuel, pela leitura do trabalho e pelas contribuições. Obrigado pelas aulas em que problematizamos diversas questões, pelas conversas, pelas partilhas, por me fazer compreender um pouco sobre a Análise do Discurso. À professora Fábia Fulni-ô meu eterno agradecimento, por ter sido minha primeira orientadora, perdoado eu já fui por ter mudado de área, embora ela não vá esquecer nunca. Obrigado por me proporcionar voos durante minha participação no PIBIC. Agradeço ainda a cacique Nina por todo apoio e por me conceder a carta de anuência, permitindo assim que pudesse ter auxílio a Bolsa Permanência do Governo Federal durante a graduação. Agradeço também a CAPES pelo apoio na participação no PIBIC 2017/2018 e pela bolsa concedida na Residência Pedagógica. Aos servidores da UFAL, nas pessoas de Fred e seu Cláudio, por serem tão atenciosos. Ao professor Márcio, por aceitar ser meu orientador após o término do contrato da professora Cristian. Obrigado, professor, por ser paciente e incentivador. O homem que exala literatura em sua fala e que me fez superar o medo das teorias literárias. Por fim, e não menos importante, agradeço à professora Cristian Sales. Agradeço pela paciência, pelo apoio, pelas indicações de leituras e eventos, pelo carinho e afeto. Obrigado por tudo! Sigamos sempre juntos! Sei que posso crescer ainda mais, mas não sou o mesmo desde quando entrei na UFAL Campus do Sertão, mudei para melhor. Cometi erros? Sim! Mas eles me ajudaram a crescer. Com ajuda de muitos, aqui estou. Obrigado!.

(8) Não escolhi ser índio, essa é uma condição que me foi imposta pela divina mão que rege o universo, mas escolhi ser professor, ou melhor, confessor dos meus sonhos. Desejo narrá-los para inspirar outras pessoas a narrarem os seus, a fim de que o aprendizado ocorra pela palavra e pelo silêncio. (Daniel Munduruku, O banquete dos deuses).

(9) RESUMO. Esta pesquisa tem por objetivo estudar a literatura produzida pelos escritores indígenas: Graça Graúna, Eliane Potiguara e Daniel Munduruku, cujo corpus se volta para o olhar de obras desses três escritores, Terra à vi$ta (1999), Identidade Indígena (2019) e O roubo do fogo (2005), respectivamente, e pretende perceber como a figura do ser indígena é construída nesses textos. Desse modo, tenciona-se analisar também a maneira como os escritores representam o sujeito indígena como fruto da memória e da ancestralidade, e como Graça Graúna, Eliane Potiguara e Daniel Munduruku escrevem embasados na identidade de seu povo, fazendo, assim, com que suas vozes sejam dessilenciadas, diante de uma construção colonialista que existiu/existe em nossa sociedade e na literatura. O método de pesquisa bibliográfica se propôs a discutir sobre a existência de um cânone na literatura brasileira e as representações que esse cânone produziu acerca do sujeito indígena, como se mostra em três obras indianistas O Guarani (2012), Iracema (2010) e Ubirajara (2015), do escritor romântico José de Alencar, para compreender a construção identitária do índio no período da colonização e como essa representação foi pautada no discurso colonial e estereotipado. Em contraposição a isso, nas obras dos escritores indígenas, tanto na prosa quanto na poesia a memória e a ancestralidade atuam com grande frequência, seja na voz coletiva que o eu lírico declama nas poesias de Graúna e Potiguara ou nas personagens do conto de Munduruku. Assim, evidenciou-se a contra-narrativa produzida pela literatura indígena e como se forma a produção por parte dos próprios indígenas e não de um outro. Para tanto, utilizou-se como referencial teórico principal: Bloom (1994), Bhabha (1998), Sommer (2004), Munduruku (2008), Thiél (2012), Graúna (2012, 2013, 2015), dentre outros.. PALAVRAS-CHAVE: Literatura indígena. Escritores indígenas. Memória. Ancestralidade..

(10) ABSTRACT. This research aims to study the literature produced by indigenous writers: Graça Graúna, Eliane Potiguara and Daniel Munduruku, whose corpus turns to the works of these three writers, Terra à vi$ta (1999), Identidade Indígena (2019) and O roubo do fogo (2005), respectively, and intends to perceive how the figure of the indigenous being is constructed in these texts. Thus, it also intend to analyze the way writers represent the indigenous subject as a result of memory and ancestry, and how Graça Graúna, Eliane Potiguara and Daniel Munduruku write based on the identity of their people, thus making their voices are desilient in the face of a colonialist construction that existed / exists in our society and in literature. The bibliographic research method proposed to discuss the existence of a canon in the Brazilian literature and the representations that this canon produced about the indigenous subject, as shown in three Indianist works, O Guarani (2012), Iracema (2010) and Ubirajara (2015), by the romantic writer José de Alencar, to understand the identity construction of the Indian during the colonization period and how this representation was based on the colonial and stereotyped discourse. By contrast, in the writings of indigenous writers, both in production and in memory, and in the oftenperformed ancestry, whether in the collective voice that I choose lyrically in the poetry of Graúna and Potiguara or in the characters of Munduruku. Thus, there was a counter-narrative used by indigenous literature and as a production by indigenous people and not by others. To do so, use as main theoretical reference: Bloom (1994), Bhabha (1998), Sommer (2004), Munduruku (2008), Thiél (2012), Graúna (2012, 2013, 2015), among others.. KEYWORDS: Indigenous literature. Indigenous writers. Memory. Ancestry..

(11) LISTA DE SIGLAS. FUNAI – Fundação Nacional do Índio GRUMIN – Grupo Mulher-Educação Indígena USP – Universidade de São Paulo UFSCar – Universidade de São Carlos.

(12) SUMÁRIO. 1.. KATOKINN: MEU LUGAR DE FALA – SAUDAÇÕES INICIAIS ........................ 13. 2.. REPRESENTAÇÃO DO ÍNDIO NO DISCURSO CANÔNICO ............................... 17. 3.. 4.. 2.1. Poder para nomear o autóctone .................................................................................. 17. 2.2. Discurso colonial e estereótipo em O Guarani .......................................................... 21. 2.3. Iracema: submissão feminina e morte ....................................................................... 27. 2.4. Ubirajara: transformações e mito.............................................................................. 31. LITERATURAS INDÍGENAS: UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃO .................. 34 3.1. Da oratura à escritura: ecos da literatura indígena ..................................................... 34. 3.2. Uma contra-narrativa ................................................................................................. 41. VOZES INDÍGENAS DESSILENCIADAS E CONTEMPORÂNEAS: MEMÓRIA,. IDENTIDADE E ANCESTRALIDADE .............................................................................. 44. 5.. 4.1. Memória e ancestralidade em Terra à vi$ta, de Graça Graúna ................................. 44. 4.2. Vozes indígenas dessilenciadas: memória e identidade em Eliane Potiguara ........... 51. 4.3. A insurgência do herói indígena em O roubo do fogo, de Daniel Munduruku ......... 58. POR ENQUANTO, ALGUMAS CONSIDERAÇÕES: VAMOS AO TERREIRO. DANÇAR O TORÉ? .............................................................................................................. 65 6.. REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 68. 7.. ANEXOS .......................................................................................................................... 72.

(13) 13. 1. KATOKINN: MEU LUGAR DE FALA – SAUDAÇÕES INICIAIS. Uma coisa é dizer que o Brasil foi descoberto no dia 22 de abril de 1500 e outra coisa é contar que “o Brasil foi introduzido de maneira violenta, na cultura ocidental; foi o primeiro golpe da nossa história [...] (GRAÚNA, 2013, p. 46).. No início deste trabalho monográfico, quero, a priori, saudar os meus ancestrais que morreram e foram perseguidos desde a colonização, desde o primeiro golpe aplicado aos indígenas com a chegada dos europeus às Américas. As vozes que foram silenciadas anteriormente retornam agora, através da minha voz e das vozes dos parentes que lutam por um espaço que é nosso por direito1. Este espaço é carregado de memória, ancestralidade e identidade; mecanismos que fazem com que os indígenas possam voltar a cantar o canto da paz, da esperança. Para mim, é mais fácil falar do que já aconteceu, pois meu corpo físico não carrega marcas físicas, embora na minha alma estejam presentes cicatrizes simbólicas. Retornar a campos de sofrimento, de perseguição, por meio da literatura, faz com que eu me aproxime cada vez mais dos meus parentes, ancestrais, que lutaram com veemência pelo direito de existir. Sou indígena Katokinn, comunidade que está situada no município de Pariconha, no estado de Alagoas, e faz parte de um pequeno grupo de aldeias nordestinas que sobreviveram ao massacre que começou desde o processo da colonização nas terras brasileiras. A comunidade Katokinn descende da aldeia Pankararu, que fica localizada no município de Tacaratu, em Pernambuco, atualmente, o povo Katokinn é estimado em cerca 1.500 indígenas que residem nas extremidades da aldeia e em povoados vizinhos do município de Pariconha, visto que a comunidade ainda não possui terra demarcada. A história de luta e coragem do povo Katokinn é antiga e deriva de gerações. Porém, apenas em 2003, a aldeia foi reconhecida pela FUNAI e tornou-se devidamente cadastrada. Desde então, houve uma constante busca por reconhecimento étnico e de espaço na sociedade2.. 1. Entre as comunidades indígenas, o termo parente é utilizado para designar uma relação parental ancestral. Assim, povos de diferentes comunidades tratam-se pelo termo parente, mantendo então uma relação de ancestralidade preservada. 2 A Fundação Nacional do Índio – FUNAI é o órgão indigenista oficial do Estado brasileiro. Criada por meio da Lei nº 5.371, de 5 de dezembro de 1967, vinculada ao Ministério da Justiça, é a coordenadora e principal executora da política indigenista do Governo Federal. Sua missão institucional é proteger e promover os direitos dos povos indígenas no Brasil. Cabe à FUNAI promover estudos de identificação e delimitação, demarcação, regularização.

(14) 14. Não nasci na comunidade indígena, embora participe dos rituais, das festas da comunidade. No entanto, pouco ou quase nada eu sabia sobre o processo histórico da minha comunidade, mal compreendia o que um ritual significava. Eu dançava o Toré, mas não entendia o que o Toré representava3. Quando cheguei ao universo acadêmico comecei a pesquisar, produzir ciência e questionar pressupostos estabelecidos que, certas vezes, são considerados irreparáveis em nossa sociedade e, por serem irreparáveis, poucos observam e questionam. Sendo assim, o corpus, aqui em análise, começou a ser desenvolvido em meados da graduação4. De tal maneira, esta pesquisa surgiu do interesse e da inquietação de problematizar a figura do sujeito indígena na literatura, para então entender quais os princípios estabelecidos para representar os povos indígenas. Por outro lado, também proponho, nesta pesquisa, apresentar a literatura produzida pelo próprio indígena como uma contra-narrativa, uma ação de resistência, de vozes que, embora proibidas, não ficaram em silêncio. Antes de ingressar na graduação e até meados dela, minha formação literária era canônica, em seguida, iniciei meus estudos sobre literatura indígena e a partir de estudos críticos, entendi que José de Alencar e outros escritores canônicos não representavam meu povo de maneira inocente. Ao contrário, esses escritores nos colocavam em situação de passividade. A partir de então, pude entender que, pelo olhar do meu povo, Iracema não é heroína, Peri não é herói e Ubirajara não é forte e corajoso, os três personagens são um modelo de indígena que parte de ideias europeizadas e estereotipadas, ainda que façam parte de um modelo criado para fundar uma nação. Percebi que a literatura é um espaço no qual a memória e a ancestralidade indígena se reverberam e que reforça um lugar de pertencimento e de identidade. A necessidade de o indígena produzir sua própria narrativa e se desvincular do pensamento colonial faz com que se passe a pensar em uma perspectiva pós-colonial, distante da ideia colonizatória, mas que a retoma para questionar. Criei, assim, uma relação afetiva com escritores indígenas, pois dizem muito de mim enquanto sujeito. Um dos primeiros passos para que eu pudesse compreender a narrativa. fundiária e registro das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas. Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/quem-somos. Acesso em 22 de abril de 2019. 3 No decorrer deste trabalho monográfico explicarei ao leitor o que significa o rital do toré, a partir das vozes de lideranças da minha comunidade. 4 Quando conheci a professora Cristian Sales no 4º semestre do curso, que seria minha orientadora e, posteriormente, com a sua saída do Campus, tornou-se minha coorientadora..

(15) 15. indígena foi o processo de descolonização do pensamento, para entender que as narrativas indianistas não me representavam, ao contrário, me estereotipavam. Sendo assim, este trabalho foi construído por meio de diversas leituras de escritores indígenas, não indígenas e de obras canônicas também, embora este trabalho não tenha por objetivo central o cânone literário. Penso os escritores indígenas não só como escritores, mas também como críticos, que problematizam o cânone e o questionam. A literatura indígena mantém relações com diversas áreas do conhecimento, de tal modo, uso referencial teórico de áreas não necessariamente literárias, firmando um diálogo possível com a Sociologia, a História e a Filosofia. Embora sejam áreas específicas, elas mantêm relações afins, assim, descoloco o objeto de pesquisa do campo específico e faço as teorias conversarem com o campo literário. Precisei me reterritorializar para construir uma narrativa pessoal; por isso assumo o risco da voz que dialoga em todo trabalho estar em primeira pessoa, porque assim me sinto, dentro e fora do texto, mesmo que os rituais acadêmicos rejeitem e me digam que não, eu digo que é possível. Na verdade, este trabalho é um meio pelo qual me aproximo cada vez mais da minha ancestralidade, do meu povo. De tal modo, ao escrever este trabalho, assumo meu lugar de sujeito indígena, pesquisador, estudante e de escrevinhador, assim, ora escrevo na primeira pessoa do singular, como um ato político e de pertencimento; ora na primeira pessoa do plural para então representar uma coletividade, uma memória ancestral, como as vozes dos povos indígenas, insatisfeitos com os ultrajes cometidos contra nosso povo. Portanto, neste trabalho, busco apresentar a literatura produzida por duas escritoras indígenas, Graça Graúna e Eliane Potiguara, e pelo o escritor indígena Daniel Munduruku, como literatura de vozes dessilenciadas5 em meio ao processo colonizatório imposto, que ainda é repercutido em nosso tempo. Através das obras das duas escritoras e do escritor indígena, busco perceber como a memória, a ancestralidade e a identidade são reverberadas em contraposição às narrativas de José de Alencar que é um escritor canônico. No entanto, vale ressaltar que, neste trabalho, não quero afirmar que José de Alencar não deve ser lido, pelo contrário, as obras de Alencar precisam ser constantemente problematizadas, questionadas, debatidas, principalmente as indianistas. Sendo assim, o primeiro capítulo deste trabalho intitulado de Representação do índio no discurso canônico tem por objetivo refletir sobre o que é o cânone literário brasileiro, quais as. 5. O termo dessilenciamento funciona como a ação de não silenciar, de não ficar calado. Em relação à literatura indígena, os escritores indígenas são sujeitos dessilenciados, pois, não se calam em meio às representações atribuídas aos indígenas..

(16) 16. suas ideologias e propostas e como esse mecanismo colabora para a perpetuação do discurso colonial e dos estereótipos que definiram a visão para os povos indígenas na primeira metade do século XIX. Para tanto, analiso três narrativas alencarianas O Guarani (2012), Iracema (2010) e Ubirajara (2015)6 para entender como essas obras canônicas representaram o índio brasileiro. Ressalto que meu objetivo não é recontar essas obras, mas realizar um percurso crítico em relação ao modo como os personagens indígenas aparecem nessas narrativas. Neste capítulo, terei como referencial teórico os autores Reis (1992), Bloom (1994), Bhabha (1998), Sommer (2004), entre outros. Quanto ao segundo capítulo, intitulado de Literaturas indígenas: um conceito em construção, abordo o que são as literaturas indígenas (oral e escrita) e reflito como essas literaturas se inserem na sociedade mesmo sendo denominadas literaturas menores. De tal modo, apresento também características marcantes das narrativas produzidas pelos escritores indígenas como textos que são contra-narrativas. Para estabelecer um diálogo teórico, utilizo autores como Deleuze e Guattari (1975), Thiél (2012), Graúna (2013), Peres (2018), entre outros. Já o terceiro e último capítulo, intitulado de Vozes indígenas dessilenciadas e contemporâneas: memória, identidade e ancestralidade, tem por objetivo apresentar as vozes de três escritores indígenas que escrevem embasados na memória, na identidade e na ancestralidade, sendo elas Graça Graúna e Eliane Potiguara e Daniel Munduruku. Assim, analiso a poesia Terra à vi$ta (1999), de Graça Graúna, a poesia Identidade Indígena (2019), de Eliane Potiguara e o conto O roubo do fogo (2005), de Daniel Munduruku, para apresentar como as escritoras e o escritor indígenas se inscrevem no lugar de fala indígena como vozes dessilenciadas. Meu objetivo, neste capítulo, é também dar presença ao texto de fala indígena, trazendo vários fragmentos das poesias e do conto. Para embasamento teórico, utilizo autores como Pollak (1989), Halbwachs (1990), Le Goff (1990), Hall (2006), assim como as vozes dos próprios autores indígenas Munduruku (2008), Graúna (2012, 2013, 2015), além de entrevistas dos três escritores. Como disse anteriormente, eu não sabia o significado do Toré, mas por meio das lideranças de minha comunidade pude entender e, sendo assim, convido você, leitor(a), no decorrer desse trabalho, a dançar um toré comigo, dancemos e continuemos juntos.. 6. Essas obras foram publicadas em 1857, 1865 e 1874, respectivamente. No entanto, a referência que aparece é a data da edição do livro em que a leitura fora feita..

(17) 17. 2. REPRESENTAÇÃO DO ÍNDIO NO DISCURSO CANÔNICO 2.1 Poder para nomear o autóctone O que é problemático, em síntese, é a própria existência de um cânon, de uma canonização que reduplica as relações injustas que compartimentam a sociedade (REIS, 1992, p. 77).. No primeiro capítulo deste trabalho, problematizo a hegemonia do cânone literário brasileiro. Inicialmente, busco desmistificar o que é o cânone literário e como ele estabelece poder na sociedade, levando em consideração a ação de denominar o que é e não é bom na literatura brasileira. Para tanto, a partir de um debate teórico acerca do cânone literário, identifico o poder que o cânone tem para nomear e representar o autóctone. O cânone literário brasileiro é entendido como o conjunto de obras e autores que são referência de leitura e, são dotadas de valores que foram atribuídos a eles em determinada época. O cânone funciona como uma instituição social, ou seja, institui o que é cânone e normatiza a língua e os discursos, dando ênfase a uma sociedade letrada e prestigiada. Sendo assim, é evidente que a literatura brasileira ainda se enquadra no modelo canônico, pois as obras de destaque dessa literatura são de autores consagrados e que possuem prestígio político e social. Nas palavras de Reis (1992), a existência de um cânone na literatura é problemática, pois compartimenta a sociedade em grupos, ou seja, denomina qual grupo é dotado de valor e qual grupo não se adequa ao molde canônico. O cânone literário além de uma instituição social, vigora como um mecanismo de negação, pois, existindo, prioriza escritores homens e faz com que suas produções entrem em ascensão. Poucas mulheres-escritoras aparecem no cânone e muitas foram/são negadas, embora estejam constantemente atuantes no campo literário7. Para Roberto Reis (1992), no texto Cânon, o conceito de cânone: [...] implica um princípio de seleção (e exclusão) e, assim, não pode se desvincular da questão do poder: obviamente, os que selecionam (e excluem) estão investidos da autoridade para fazê-lo e o farão de acordo com os seus interesses (isto é: de sua classe, de sua cultura, etc.) (REIS, 1992, p. 70).. 7. A negação à mulher como escritora de literatura é constante desde séculos atrás. Inclusive, pouco se fala, porém, a primeira mulher a publicar um romance no Brasil foi Maria Firmina dos Reis, mulher negra que publicou em 1859 o romance Úrsula..

(18) 18. O cânone literário, então, funciona como um mecanismo de seleção e exclusão, por sua vez, ao passo que prestigia determinadas obras, deprecia outras. De tal forma, o cânone funciona também como mecanismo de poder. Em Microfísica do poder, Michel Foucault (1979) diz que “onde há poder, ele se exerce, ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção [...] não se sabe ao certo quem o detém, mas se sabe quem não o possui” (FOUCAULT, 1979, p. 75)8. O poder exercido pelo cânone é notável e, geralmente, são selecionadas ao grupo escritores que possuem relações próximas com a elite da sociedade brasileira e também que possuíram com a monarquia, ou seja, escritores que detinham/detém poder social e político. Debatendo sobre o poder na perspectiva literária, Márcia Abreu (2006), em Cultura Letrada: literatura e leitura, menciona que o que faz uma obra ser considerada canônica e detentora de poder “na maior parte das vezes, não são critérios linguísticos, textuais ou estéticos [...] mas o poder e a autoridade exercida pelos escritores que possuem “posições políticas e sociais” (ABREU, 2006, p. 39, grifos da autora). Estas posições políticas e sociais que os escritores canônicos possuem são fatores determinantes. Em relação à representação do autóctone9 na literatura brasileira, a posição político-social que José de Alencar possuiu, por exemplo, facilitou a ascensão da proposta indianista em suas ficções. Os princípios do cânone validam a proposta de Alencar e o índio no cânone literário brasileiro é criado a partir da perspectiva alencariana, sob o viés ideológico do ocidente, de modo a fundar uma nação, como sujeito que está em constante relação com o homem branco. O estereótipo nas narrativas de Alencar existe de modo a representar os princípios do Romantismo10. A perspectiva romântica propõe a criação do índio de maneira servil, o índio do descobrimento, seguindo os modelos da estética. Para Sommer (2004), os romances indianistas de José de Alencar são considerados ficções de fundação. Essas ficções de fundação literárias brasileiras criaram o autóctone por meio do poder e da autoridade canônica11, sendo assim, perspectivas desse movimento estético aparecem com constância no modo de narrar dos escritores.. 8. Embora Foucault esteja situado no campo filosófico, suas contribuições são pertinentes para deslocarmos e trazermos ao campo literário. Sendo assim, a conversa entre Filosofia e Literatura é de grande valia. 9 O autóctone é aquele que é natural da terra, nativo. No contexto brasileiro, o indígena. 10 A partir de Benedito Nunes (2008) é possível entender que o Romantismo rompeu com os padrões do gosto clássico, foi um movimento contrário ao neoclassicismo iluminista e fundiu-se à características filosóficas, estéticas e religiosas, vinculando-se principalmente a tradições nacionais. 11 As ficções de fundação são as narrativas que apresentam a fundação de uma nação, de um povo..

(19) 19. A autoridade canônica descende desde a etimologia da palavra que provém do grego kanon e “entrou para as línguas românicas com o sentido de “norma” ou “lei” (REIS, 1992, p. 69). Assim, o cânone exerce poder de medir e validar e é formado pelas obras de grandes autores, dotados de prestígio social e intelectual, definidos por uma comunidade específica. Nesse sentido, as obras que foram/são produzidas nas/pelas margens, não ganham a atenção merecida pelo cânone. O poder canônico bloqueia a emergência de autores considerados periféricos, porém, há uma ação essencial na desconstrução desse bloqueio; a resistência, enquanto categoria de luta, funciona como um mecanismo que em meio aos bloqueios do cânone produz efeitos de questionamentos e busca fazer com que o colonizado fale por si, e problematize a voz do colonizador. Sendo assim, enquanto Reis (1992) critica e diz que é problemático a existência de um cânone literário, visando descontruir a ideia canônica, em outra perspectiva, Harold Bloom (1994) confirma a existência de tal mecanismo e de certo modo chega a criticar em O cânone Ocidental, mas também a defendê-lo. Bloom problematiza a ideia de cânone, tece críticas ao modelo canônico, no entanto, diz que a literatura ocidental é o centro para formação das identidades letradas, e, embora realize críticas ao cânone, analisa em sua obra, apenas obras de escritores canônicos do ocidente. De tal modo, pode-se compreender que a construção do Ocidente é baseada em perspectivas econômicas, políticas e sociais. Ao reforçar a existência do cânone na sociedade mundial, Bloom (1994) diz que o cânone parte de uma ideologia, esta que é considerada suprema e dotada de valor. O cânone literário então, seleciona obras e faz com que as demais expressões, das consideradas periferias não sejam atendidas ou mencionadas, pois, funciona como um projeto político de poder. Devido ao poder e a ideologia, quando o índio aparece na literatura canônica, ele é contado a partir da voz do colonizador. Nessa perspectiva, Reis (1992) diz que: Ao olharmos para as obras canônicas da literatura ocidental percebemos de imediato a exclusão de diversos grupos sociais, étnicos e sexuais do cânon literário. Entre as obras-primas que compõem o acervo literário da chamada “civilização” não estão representadas outras culturas (isto é, africanas, asiáticas, indígenas, muçulmanas), pois o cânon com que usualmente lidamos está centrado no Ocidente e foi erigido no Ocidente, o que significa, por um lado, louvar um tipo de cultura assentada na escrita e no alfabeto (ignorando os agrupamentos sociais organizados em torno da oralidade) [...] (REIS,. 1992, p. 72). Os cânones literários foram construídos através de muito silenciamento, ou seja, para que um pudesse falar, outros precisaram silenciar, porém, é perceptível que, mesmo exercendo.

(20) 20. tamanho poder em diversas sociedades, há cânones que se tornam margem para o cânone Ocidental. Com isso, entendo que a Literatura transgride o real e ao realizar essa transgressão cria o texto ficcional; desse modo, sendo o cânone literário produto da ficcionalidade, é também um mecanismo que seleciona obras e autores, que possui poder. Assim, na literatura brasileira, o autóctone foi representado por meio de perspectivas ocidentais. A representação ficcional do índio na literatura brasileira, embora parta de um ato de fingir, não nasce de modo inocente, pois a ficção em Alencar nasce também do desejo de se construir a identidade de uma nação, de um povo. E para tal ação, a figura representada do índio serviu de pano para isso, ainda que tenha sido em perspectivas estereotipadas. Em O local da cultura, para problematizar a ideia de estereótipo, Homi Bhabha (1998) diz que: [...] de forma bem preliminar, o estereótipo é um modo de representação complexo, ambivalente e contraditório, ansioso na mesma proporção em que é afirmativo, exigindo não apenas que ampliemos nossos objetivos críticos e políticos mas que mudemos o próprio objeto da análise (BHABHA, 1998, p. 110).. Desse modo, observo que para os defensores do cânone, por exemplo, Bloom (1994), o cânone já estabeleceu propostas consideradas adequadas, sendo propagadas pelo discurso colonial, discurso este que, para Bhabha (1998), é aquele que nasce das elites que colonizaram povos e os colocaram em situação de passividade e subalternidade. De tal forma, criaram esses sujeitos como se fossem um outro, fugindo de suas singularidades e reverberando discursos outros. Sendo assim, levando em consideração a discussão de Bhabha (1998, p. 111), “o objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados [...] e estabelecer sistemas de administração e instrução”. Com isso, estando o discurso colonial em relação com o estereótipo, o outro não tem espaço para se autorrepresentar, mas, há sempre um outro falando por ele, por esse outro..

(21) 21. 2.2 Discurso colonial e estereótipo em O Guarani. [...] O índio era uma figura para o uso de textos estrangeiros, que deveriam servir nem tanto como modelos, mas como ingredientes (SOMMER, 2004, p. 165).. Sujeitos que serviam de ingredientes. A literatura brasileira colaborou para que o índio aparecesse nas narrativas como um objeto de formação nacional. O modelo de brasilidade e nacionalidade que aparecem nas narrativas alencarianas apresentam um índio servil, submisso e europeizado. Peri, Iracema e Ubirajara, três ingredientes idealizados, três sujeitos que são tidos como heróis, heróis por abandonarem suas famílias, desprezarem seu povo e lutar para ser mais poderoso que seus parentes12. A conhecida tríade indianista de José de Alencar – O Guarani (2012), Iracema (2010) e Ubirajara (2015) – são modelos para debates sobre a formação da identidade nacional brasileira. No entanto, essas narrativas são carregadas de estereótipos e delas emanam discursos coloniais. Sendo assim, este subtópico tem por objetivo debater acerca das marcas de estereótipos presente em O Guarani, obra em que Peri é colocado como sujeito subserviente ao colonizador. É importante destacar que as obras indianistas de José de Alencar estão presentes no cânone, com isso, são referências na historiografia literária do Brasil. O poder canônico que Alencar possui faz dele um escritor certas vezes inquestionável, fruto da ideologia dominante. No entanto, questionar as propostas de Alencar é um dos meus objetivos. O discurso colonial presente em suas narrativas coloca os índios como sujeitos desprezíveis e selvagens. Esse autor faz parte da primeira fase do Romantismo brasileiro. José Martiniano de Alencar nasceu em Messejana no Ceará em 1829, é considerado um dos grandes autores do Romantismo brasileiro, pois trouxe para a prosa brasileira traços próprios, locais, traços com ritmos do Brasil; desse modo, por ser um escritor de prestígio (eleito pelo cânone), Alencar desponta como um mártir da literatura brasileira13. Na obra Ficções de fundação: os romances nacionais da América latina, Doris Sommer (2004) demonstra como as narrativas literárias tornam-se ficções de fundação, ou seja, como. É bom deixar claro que o emprego dos termo “heróis” parte da estética romântica, pois, Peri, Iracema e Ubirajara não foram heróis, ao contrário, foram sujeitos construídos em perspectivas de submissão. 13 Publicou diversas obras, em prosa e poesia, mas, ganhou destaque com a publicação de seus romances, conhecidos por romances históricos, regionais, urbanos e indianistas. 12.

(22) 22. apontam o nascimento de um povo. Analisando as ficções de Alencar, Sommer (2004) aponta que os índios brasileiros serviram de ingredientes para a formação da identidade nacional brasileira e, neste caso, atuaram como sujeitos brasileiros, mas, como sujeitos possuidores de diversas caraterísticas europeias, que cada vez mais deveriam se europeizar. Alencar foi um escritor nacionalista, de tal modo, o “nacionalismo, na literatura brasileira, consistiu basicamente [...] em escrever sobre coisas locais: no romance, a consequência imediata e salutar foi à descrição de lugares, cenas, fatos, costumes do Brasil (CANDIDO, 2000, p. 99). Sendo o nacionalismo um meio pelo qual a construção da identidade nacional iria se formando, os costumes e fatos do Brasil eram postos nas narrativas, mesmo que de um modo estereotipado, como foi o caso do índio em Alencar. Inclusive: Tanto nos romances nativistas (O Guarani, Iracema, Ubirajara) como naqueles em que o bom selvagem se desdobra em heróis regionais (O Gaúcho, O Sertanejo), o selo da nobreza é dado pelas forças do sangue que o autor reconhece e respeita igualmente na estirpe dos colonizadores brancos. Ao heroísmo de Peri não deixa de apor a sobranceria de Dom Antônio de Mariz e sua esposa, os castelões impávidos de O Guarani (BOSI, 2006, p. 145).. O sangue indígena nas narrativas é de guerreiro, embora seja também de selvagem, no entanto, como propõe Bosi (2006), o heroísmo do índio é visto no ato de ser um bom selvagem, mas sabendo que o colonizador é o sujeito que o garante sobranceira. Assim, os índios aparecem na tríade indianista como elementos que formariam uma identidade tropical brasileira e o colonizador como sujeito que os ajudaria na construção do seu caráter. A representação dos índios em Alencar parte de um lugar que não vê um caráter sólido nesses sujeitos, assim, tanto Iracema, quanto Peri, embora heroína e herói, são representados como seres desprovidos de caráter, são selvagens que estão para ser moldados pelo colonizador europeu, seguindo as perspectivas do Romantismo. É importante perceber que a estética romântica e a Literatura como um todo que podem ser utilizadas como instrumento de dominação para aqueles que estão à margem da sociedade. O índio é visto como selvagem em ambas as narrativas indianistas e ganha notoriedade na trama por meio de perspectivas de negação e inferioridade. No entanto, o índio não precisa do colonizador para se narrar sua história, ao passo que o colonizador usa o índio para comprovar o sucesso da colonização. Em O Guarani, por exemplo, a personagem Isabel sente total desprezo por Peri. Essa personagem representa o não aceitamento da mestiçagem entre Peri e Ceci e, embora o índio passe por um processo de branqueamento constante ele continua negado. A ideologia da branquitude surge como uma categoria de aceitação e apropriação.

(23) 23. cultural, pois, para se tornar um bom selvagem, o indígena precisa embranquecer-se nos costumes e apropriar-se (por obrigação) da cultura do colonizador. Mesmo apropriando-se dos costumes do colonizador, o índio continua como sujeito desprezível, como no fragmento a seguir, podemos notar ainda a repulsa que Isabel, representando o colonizador, sente pelo índio: — Prima, disse a moça com um ligeiro tom de repreensão, tratas muito injustamente esse pobre índio que não te fez mal algum. — Ora, Cecília, como queres que se trate um selvagem que tem a pele escura e o sangue vermelho? Tua mãe não diz que um índio é um animal como um cavalo ou um cão? Estas últimas palavras foram ditas com uma ironia amarga, que a filha de Antônio de Mariz compreendeu perfeitamente. — Isabel! ... exclamou ela ressentida (ALENCAR, 2012, p. 29, grifos meus).. Peri é negado constantemente por ser índio e, automaticamente, torna-se um selvagem, a pele escura é defeito e o sangue vermelho também, pois, pensava-se que português detinha o sangue azul. Então, o personagem Peri, ao passo que mais se aproxima de Ceci, precisa abandonar o que o torna selvagem, o processo de branqueamento começa a ocorrer, ou seja, ele será moldado para tornar-se um cavalheiro e para isso, precisará abandonar suas raízes. Logo: A partir do contato com a família de D. Antônio e do amor que começa a nascer entre ele e Ceci, Peri passa por várias etapas em que cada vez mais se aproxima do ideal europeu de heroísmo e cavalheirismo. Para merecer a filha de D. Antônio, é preciso que se transforme no estereótipo do cavalheiro medieval, através da conversão ao cristianismo (CUNHA, 2007, p. 53).. O contato com a família portuguesa faz com que Peri reprima suas origens. A paixão do índio pela moça branca o torna cego. Com isso, vai sendo construída uma perspectiva de selvagem em Peri, pois o narrador o faz abandonar a família para prestar serviços a Antônio de Mariz. Aos poucos o índio vai ganhando os contornos do cavalheiro medieval do qual fala Cunha (2007). Peri ganhava contornos de cavalheiro, porém, não passava de um vassalo, tanto de Ceci, quanto de Antônio de Mariz. E, sendo assim, mesmo “com toda a falsidade pouco convincente do seu indigenismo romântico, o fato é que o povo não os acha falsos, ama-os e os aceita como perfeitos (SOMMER, 2004, p. 168). Em O Guarani e Iracema, Alencar propôs a imagem do índio como um sujeito que está em constante relação com o homem branco, diferente de Ubirajara em que não há a presença do colonizador. A construção do personagem principal, Peri, acontece de forma estereotipada, ele é o bom selvagem, ou seja, ao mesmo tempo que é bom, não passa de um selvagem, de um animal. Peri é um selvagem, mas, segundo o colonizador, apresenta algumas qualidades..

(24) 24. Apontando como protagonista da narrativa, Peri consegue o feito de ser denominado herói, protagonista, selvagem, bárbaro e animal em toda a narrativa. Vários adjetivos tecem o índio personagem e ele mantém fiel proteção a Ceci, sua amada, a quem Sommer (2004, p. 168) diz que ele “voluntariamente se escraviza”. A narrativa de Alencar subjetifica o índio, aponta-o como ser frágil e que embora possua competências, precisa de conversão. A visão que se tem de Peri provém do discurso colonial, que cria uma fantasia de determinado sujeito, ou seja, uma visão carregada de estereótipos. Isso por que “os índios – as índias, em especial – são lembrados com afeto pela atenção que deram aos conquistadores” (SOMMER, 2004, p. 182), isso é notável tanto em Peri para com Ceci, quanto em Iracema para com Martim. A proposta narrativa de Alencar trata-se, então, de uma representação, possuidora de uma originalidade colonial. São textos ficcionais, porém embasados em doses de realidade, pois, segundo Iser (2002, p. 958), “há no texto ficcional muita realidade que não só deve ser identificável como realidade social, mas que também pode ser da ordem sentimental e emocional”. Assim, essa ficcionalidade nos textos de Alencar bebe das emoções, dos sentimentos, dos instintos do índio brasileiro, que começaram a ser representados desde a Carta de Caminha, quando os índios são postos como selvagens pois “andavam nus, sem coberta alguma. [E] não faz[iam] o menor caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas [...]” (CAMINHA, 1997, p. 14, inserção minha). No entanto, tendo-se em mente que Peri é um herói, ele vai se reconfigurando enquanto sujeito índio, pois abandona sua família e corre risco de vida para salvar Ceci e sua família, por esse motivo: Apesar do enaltecimento de Peri, a valorização do indígena é bastante contraditória na obra, pois ele só passa a ser reconhecido quando se submete à cultura do colonizador. Esse aspecto é confirmado pela visão negativa que é apresentada sobre os Aimorés (CUNHA, 2007, p. 53).. Peri só ganha destaque na obra por se submeter ao colonizador, se o índio não prestasse serviço digno a Ceci e ao pai da moça seria mais selvagem do que é considerado durante toda a narrativa. O heroísmo do personagem está em se submeter constantemente ao homem branco. Sobre os Aimorés – a tribo vingativa – a construção desses índios dá-se por aspectos de eliminação, por ser uma tribo canibal, são vistos como raça a ser extinta. Quando o filho do colonizador mata a índia aimoré a subserviência do índio aumenta, pois, agora, a tribo quer.

(25) 25. vingança e Peri precisa mais do que nunca proteger Ceci. No fragmento exposto a seguir, vemos como os aimorés são pensados pelos colonizadores, vistos como inimigos a serem combatidos: — Mas é preciso ver que casta de mulher é esta, uma selvagem... — Sei o que queres dizer; não partilho essas ideias que vogam entre os meus companheiros; para mim, os índios quando nos atacam, são inimigos que devemos combater; quando nos respeitam são vassalos de uma terra que conquistamos, mas são homens! (ALENCAR, 2012, p. 32, grifos meus).. A partir dos debates de Reis (1992) e Bhabha (1998), é possível entender que o discurso canônico acompanhando do discurso colonial impede que Peri figure na narrativa como um sujeito que luta pelo seu povo e defende seus parentes. Peri abandona sua família para demonstrar o amor pela nação e, como bom brasileiro, iria ajudar os descobridores das terras em que ele morava. O índio demonstra coragem, fidelidade, mas abandona o seu povo, então surge a negação, Peri não domina seus instintos, e como apresentado em vários fragmentos da narrativa, é um selvagem. Sendo assim: A aparente igualdade entre brancos dominantes e uma raça subalterna, entre Peri e Ceci, somente é possível porque Peri escolhe se embranquecer. Um traidor de sua própria tribo, como foi Iracema, o novo cristão sobrevive e fica com sua namorada porque luta contra os maus índios pagãos (SOMMER, 2004, p. 190).. Peri vai se embranquecendo, abandona sua família e segue com os portugueses. A proposta do discurso canônico e colonial é apontar o colonizador como sujeito bom e o índio como sujeito que está em constante processo de moldagem. Inclusive, por Ceci, Peri tornou-se até cristão. Faz parte da tendência romântica colocar os sujeitos no mesmo patamar, ou seja, torná-lo cristão, embranquecê-lo etc. Em meados da narrativa, Antônio de Mariz reconhece o cavalheirismo de Peri, porém continua com os mesmos aspectos de negação, é um cavalheiro português em suas atitudes, é prestativo e corajoso, mas não passa de um selvagem. Por mais que Peri fosse aceito por todos na casa do colonizador, ele nunca passaria de um selvagem que lhes prestava auxílios, como vemos no trecho exposto a seguir: — Não há dúvida, disse D. Antônio de Mariz, na sua cega dedicação por Cecília quis fazer-lhe a vontade com risco de vida. É para mim uma das coisas mais admiráveis que tenho visto nesta terra, o caráter desse índio. Desde o primeiro dia que aqui entrou, salvando minha filha, a sua vida tem sido um só ato de abnegação e heroísmo. Crede-me, Álvaro, é um cavalheiro português no corpo de um selvagem! (ALENCAR, 2012, p. 40, grifos meus)..

(26) 26. Peri, um índio submisso. Modelo de heroísmo? – Por ser selvagem? – Sim – Peri não passa de um selvagem, não passa de um fantoche nas mãos dos colonizadores, não passa de um animal selvagem, Peri foi usado na narrativa, Peri representa os povos indígenas brasileiros de modo avesso, sua coragem é louvável, mas para a ação empregada, não..

(27) 27. 2.3 Iracema: submissão feminina e morte. A lufada intermitente traz da praia um eco vibrante, que ressoa entre o marulho das vagas: — Iracema! O moço guerreiro, encostado ao mastro, leva os olhos presos na sombra fugitiva da terra; a espaços o olhar empanado por tênue lágrima cai sobre o jirau, onde folgam as duas inocentes criaturas, companheiras de seu infortúnio (ALENCAR, 2010, 11).. Em 1865, oito após a publicação do romance que inaugurou a prosa indianista no Brasil, Alencar publicou o romance Iracema (2010), seu segundo romance indianista. Desta vez, há a presença da figura da mulher indígena como protagonista, se Peri foi um herói, Iracema chega para tornar-se a heroína que dá origem a um povo. Com isso, neste subtópico, discuto a construção da personagem Iracema, uma mulher indígena considerada bela, que possuía um segredo. Destaco as características que levam a personagem à submissão e à fragilidade, quando quebra o segredo que guardava. Na narrativa indianista, o índio aparece como coadjuvante, embora se diga que são protagonistas. O protagonismo citado nas narrativas alencarianas é apresentado por meio da submissão, da objetificação e da identificação como ser selvagem, incompreendido e não civilizado e, assim, “o colonizador inventa o índio, rotulado por um discurso homogeneizador, que ainda persiste no século XXI” (THIÉL, 2012, p. 18). De tal modo, esse discurso homogeneizador, embora queira misturar todas as raças, sempre tende a excluir os povos negros e indígenas. Para Thiél (2012), o discurso colonizador aponta que o nativo é uma nova espécie, uma folha em branco que ao ser descoberta terá que ser domesticada aos moldes do costume europeu. A folha em branco seria escrita aos gostos do colonizador, e isso pode ser visto nas obras indianistas, pois, mesmo que o índio possua coragem, bravura e beleza, quem o domina, quem o rege é o colonizador. Sendo o discurso colonial um mecanismo que produz uma realidade diferente de um outro, ele é também dotado de poder. No romance Iracema, a personagem fabrica uma bebida que fortalece os guerreiros de sua tribo. De tal modo, ela não pode ter relações sexuais antes que passe o segredo para outra índia virgem. No decorrer da narrativa, a personagem ganha contornos diferentes, quando chega às terras dos tabajaras o homem branco colonizador, o personagem Martim. A presença de Martim na narrativa demonstra a entrada sem permissão do colonizador nas terras indígenas, porém, nota-se a servidão dos índios para com o colonizador, pois, quando.

(28) 28. Iracema acerta a flechada em Martim, ele é, em seguida, levado para a cabana de Araquém, e lá recebe todos os cuidados. Iracema passará servir a Martim, e sua tribo também prestará serviço a esse moço, ou seja, a tribo em geral, estava submissa ao colonizador. Assim como em O Guarani, em Iracema é constante a presença de estereótipos e, como já dito a partir de Bhabha (1998), o estereótipo é um modo de representar um outro por meio de perspectivas complexas, ambivalentes e contraditórias. Um outro vai criando o eu indígena, colocando-o como sujeito a ser modelado, de modo superficial e contraditório. A narrativa alencariana propôs uma homogeneização cultural entre brancos colonizadores e indígenas, porém, “povos e povos indígenas desapareceram da face da terra como consequência do que hoje se chama, num eufemismo envergonhado, “o encontro” de sociedades do Antigo e do Novo Mundo (CUNHA, 2012, p. 14). Esse encontro comentado por Cunha (1992) provoca um fracionamento étnico, que levou os povos indígenas a viverem separados, em situação diaspórica. O encontro entre indígenas e brancos causou prejuízos apenas aos indígenas, pois a proposta central “era à eliminação física e étnica dos índios” (CUNHA, 2012, p. 14), a eliminação desses povos como sujeitos históricos. De tal modo, nota-se muito dessa eliminação em Iracema, como vemos no fragmento a seguir, em que Iracema, prestes a morrer, sofre abandonada e sozinha com o filho: Iracema curte dor, como nunca sentiu; parece que lhe exaurem a vida; mas os seios vão-se intumescendo; apojaram afinal, e o leite, ainda rubro do sangue de que se formou, esguicha. A feliz mãe arroja de si os cachorrinhos, e cheia de júbilo mata a fome ao filho. Ele é agora duas vezes filho de sua dor, nascido dela e também nutrido. A filha de Araquém sentiu afinal que suas veias se estancavam; e contudo o lábio amargo de tristeza recusava o alimento que devia restaurar-lhe as forças. O gemido e o suspiro tinham crestado com o sorriso e o sabor em sua boca formosa (ALENCAR, 2010, p. 98, grifos meus).. Retomando o diálogo com Bhabha (1998), é possível compreender que há nas narrativas indianistas representações que partem do discurso colonial, e as imagens produzidas em Iracema e O Guarani, partem de uma representação pautada na subserviência ao homem branco, no qual o índio é capaz de abandonar sua família e seu povo para servir ao colonizador, pois: A História contada pelo colonizador europeu e a identidade indígena construída pelo outro, indicam que a visão que prevalece é de que há uma grande narrativa colonizadora e civilizadora. Esta prevalece sobre as demais e, por seu poder de narrar e divulgar suas narrativas, apaga as narrativas paralelas que apresentam versões diferentes da História (THIÉL, 2012, p. 33)..

(29) 29. Na colonização, o Brasil era composto por diversos povos, de diferentes costumes. No entanto, as narrativas indianistas propõem apenas uma imagem de índio subserviente e, mesmo que haja outras manifestações, a ideia de índio válida é a proposta pelo colonizador. Com isso, cria-se uma identidade indígena ficcional em bases de negação da cultura, mas que é muito conhecida, propagada e ensinada, pois foram denominados pelo cânone, que exerce tamanha relevância na sociedade. O romance vai se desenvolvendo e a personagem vai despontando como uma índia frágil, quase submissa. Mesmo sabendo que ela guardava o segredo da Jurema, Martim poderia ficar com qualquer índia da tribo, mas, preferiu Iracema. A personagem vai ganhando contornos de uma índia sem escrúpulos, que não consegue conter seus desejos, uma índia submissa que despreza seu povo. No fragmento extraído da narrativa, pode-se perceber que Martim deseja Iracema e a partir de então ela vai começando a pensar em entregar-se a ele: Iracema voltara com as mulheres chamadas para servir o hóspede de Araquém, e os guerreiros vindos para obedecer-lhe. — Guerreiro branco, disse a virgem, o prazer embale tua rede durante a noite; e o sol traga luz a teus olhos, alegria à tua alma. E assim dizendo, Iracema tinha o lábio trêmulo, e úmida a pálpebra. — Tu me deixas? perguntou Martim. — As mais belas mulheres, da grande taba contigo ficam. — Para elas a filha de Araquém não devia ter conduzido o hóspede à cabana do Pajé. — Estrangeiro, Iracema não pode ser tua serva. É ela que guarda o segredo da jurema e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para o Pajé a bebida de Tupã (ALENCAR, 2010, p. 18, grifos meus).. O colonizador, mesmo sabendo que Iracema guardava o segredo da Jurema, a provoca e acaba por deitar-se com ela, a índia cede a bebida e quebra o segredo da jurema, o que a faz engravidar e dar à luz a uma criança que foi denominado como o primeiro habitante de uma terra. Martim abandona Iracema sozinha com a Jandaia no meio da selva, já que ela fora expulsa da tribo. Ele sai em expedição, quando volta, Iracema já está sem forças, prestes a morrer: O cristão moveu o passo vacilante. De repente, entre os ramos das árvores, seus olhos viram, sentada à porta da cabana, Iracema com o filho no regaço e o cão a brincar. Seu coração o arrastou de um ímpeto, e toda a alma lhe estalou nos lábios: — Iracema! ... A triste esposa e mãe soabriu os olhos, ouvindo a voz amada. Com esforço grande, pôde erguer o filho nos braços e apresentá-lo ao pai, que o olhava extático em seu amor. — Recebe o filho de teu sangue. Chegastes a tempo; meus seios ingratos já não tinham alimento para dar-lhe! Pousando a criança nos braços paternos, a desventurada mãe desfaleceu como a jetica se lhe arrancam o bulbo. O esposo viu então como a dor tinha murchado seu belo corpo; mas a formosura ainda morava nela, como o perfume na flor caída do manacá (ALENCAR, 2010, p. 100, grifos meus)..

(30) 30. A personagem morre para dar origem a um povo, no entanto, apenas ela morre, quase abandonada, enquanto o colonizador vai embora com o filho. Percebo então a construção do sujeito indígena na narrativa de Alencar, apenas a índia sofre, só ela morre para fazer o colonizador feliz. O índio nas narrativas indianistas de Alencar é moralmente frágil, pois embora possua costumes e crenças, se necessário, abandona tudo para servir ao colonizador. Peri deixou a família para servir a Ceci, Iracema abandona seu povo para satisfazer Martim. O estereótipo presente nessas duas narrativas indianistas enfatiza que o índio é fraco e não consegue resistir aos encantos do colonizador, mas, ao contrário, busca satisfazê-lo. A proposta de Alencar é modelo para muitos, e assim “o discurso eurocêntrico constrói o silenciamento do índio” (THIÉL, 2012, p. 39), porém essas imagens precisam ser repensadas, revistas, uma vez que índio é bem mais que a visão estereotipada do colonizador. A obra é aberta com a saída de Martim com seu filho para Portugal, após desbravar os verdes mares onde canta a jandaia, após seduzir Iracema e engravidá-la e após abandoná-la para sair em expedição – o que causa a morte – o colonizador parte feliz com o fruto de duas nações. A índia deu origem a um novo povo. Porém, tanto Peri quanto Iracema passaram por mortes, física e moral. Com isso, vale destacar que “[...] a morte de Iracema e o branqueamento de Peri são indícios da futura dizimação dos povos e culturas indígenas. Nessa união, o elemento colonizador é aquele que impõe o padrão racial e civilizatório (CUNHA, 2007, p. 54). O padrão imposto leva os personagens indígenas a fins desprezíveis. Se em O Guarani e Iracema o colonizador é fator essencial para o desenvolvimento da narrativa, por que em Ubirajara o autor não usou desse mecanismo? Veremos a seguir a construção do mito nessa obra que fechou a tríade indianista de Alencar..

(31) 31. 2.4 Ubirajara: transformações e mito. Da famosa tríade indianista de Alencar, a última obra a ser publica foi Ubirajara (2015). Diferente de O Guarani, em que Alencar apresenta a junção do Velho mundo ao Novo mundo através dos personagens Peri e Ceci, e diferente também de Iracema em que a figura do homem branco (Portugal) chega ao Brasil (América) e provoca o nascimento de uma raça, em Ubirajara não há a presença do colonizador. O romance se passa antes da chegada dos colonizadores, mais precisamente em 1478, no século XV, período conhecido como pré-cabralino. A narrativa, como o próprio Alencar fala na advertência de abertura é irmã da obra Iracema. Em Ubirajara não há a presença do colonizador, o romance se passa nas terras virgens e inexploradas do Brasil, em que Alencar propôs a imagem de um herói mítico, a narrativa não é um romance de fundação, assim como O Guarani e Ubirajara, ao contrário, apresenta o índio como sujeito que ainda não foi corrompido. Seria então necessário pensar; Alencar fecha a tríade indianista apresentando o lado bom dos índios brasileiros, sem estereotipá-los? A partir disso, este subtópico tem por objetivo debater acerca do romance Ubirajara, para entendermos a proposta de Alencar ao apresentar uma narrativa indianista sem a presença do colonizador, porém, que vê um índio que precisa se transformar constantemente para ser aceito em meio aos seus próprios parentes. O romance Ubirajara está organizado em nove capítulos e conta a história de Jaguarê, um índio caçador que almeja ser guerreiro. Na narrativa, o personagem tido como herói terá que se adequar às determinadas situações para ser posto em local de destaque. Se nas narrativas indianistas anteriores o índio servia ao homem branco, em Ubirajara o índio possui uma vontade enorme de conseguir notoriedade. Porém, Alencar era muito próximo à coroa portuguesa, então, porque ele não apresenta a coroa na imagem do português nesse romance final? Vejamos quais os motivos para tal proposta de Alencar: Dois fatos são de destaque para a compreensão do que se processou nesse outro momento da vida do autor: primeiro, em 1870, abandona a carreira política como reação ao sentimento de mágoa que cultivou ao longo dos anos pelo imperador D. Pedro II e, posteriormente, vítima de tuberculose, sofre os abalos intensos da doença, na época incurável, que o faria leiloar todos os seus bens para ir a Europa no ano de 1876, em busca de tratamento médico (OLIVEIRA, 2010, s/p)..

(32) 32. Em Ubirajara o índio não está em relação com o homem branco; se nos primeiros romances indianistas, o colonizador foi exaltado, como sujeito que é bom, no último romance ele não ganha destaque, mas vale mencionar que também não é criticado. Percebo então que a construção da narrativa alencariana sem a presença do colonizador traz um índio menos imaturo, mas ainda com pouco caráter e continua selvagem assim como nos romances de fundação. Para Alencar, no romance em tela, há o uso constante de diversas notas de rodapé, pois é através delas que ele explica melhor algumas ações das personagens e a significação de termos específicos. Nesta narrativa indianista em que não há a presença do colonizador, há a presença de índios que querem sobressair sobre os demais índios, demonstrando que este sujeito não vive na coletividade, busca reconhecimento apenas para si. O indianismo de Alencar parte um lugar idealizado e estereotipado. O mítico, o selvagem, as paixões propostas nas narrativas exprimem um índio não muito maduro e ainda refém de seus desejos. O índio aparece como ser forte em coragem, mas frágil em caráter. No desenvolver da narrativa, Jandira, índia da tribo que Ubirajara vivia, esperava que ele a escolhesse como sua esposa, porém, ele estava encantado em Araci, a virgem da tribo tocantim. Assim como Iracema estava prometida a Irapuã, Jandira estava a Ubirajara (Jaguarê), mas ambos preferem se apaixonar pelo desconhecido. Iracema pelo colonizador e Ubirajara pela índia da tribo inimiga. Jaguarê lutará para se tornar guerreiro, no entanto, percebe-se apaixonado por Araci, mesmo possuindo Jandira:. - Não, filha do sol; Jaguarê não deixou a taba de seus pais onde Jandira lhe guarda o seio de esposa, para ser escravo da virgem. Ele vem combater e ganhar um nome de guerra que encha de orgulho a sua nação. Torna à taba dos tocantins e dize aos cem guerreiros cativos de teu amor, que Jaguarê, o mais destemido dos caçadores araguaias, os desafia ao combate (ALENCAR, 2015, p. 15, grifos meus).. Sendo assim, é notável que em Ubirajara (2015) o personagem principal passa por diversas transformações durante a narrativa, ele vai adaptando-se às situações em que percorre, desde quando se torna o grande guerreiro, na luta por Araci, até o desfecho da história. Como índio herói estereotipado, Ubirajara passa por mortes durante a construção do seu personagem. Não mortes físicas, mas mortes de caráter e adequação. Quando muda de Jaguarê para Ubirajara, depois para Jurandir e depois volta a ser Ubirajara. Para poder combater com os guerreiros pela índia Araci, Ubirajara passa a se chamar Jurandir. De tal modo, as mortes simbólicas de Ubirajara representam o processo de estereótipo.

(33) 33. proposto na narrativa, que apresenta um índio que nunca busca se satisfazer com o que é seu, o índio em Alencar sempre busca algo de fora, o proibido. O personagem Ubirajara possui características de cavaleiro medieval, não de índio brasileiro. O índio Ubirajara é tomado por um sentimento de dominação e poder. E como se dispôs a lutar pela moça da tribo inimiga, quando no combate nupcial revela sua verdadeira origem cria um conflito, pois seu prisioneiro, aquele com quem lutou para tornar-se guerreiro, é seu cunhado, filho de Itaquê e irmão de Araci, a índia que ele quer por esposa. Em Ubirajara, há também a presença do discurso colonial, pois o indígena na tríade indianista de Alencar é criado por meio de perspectivas negativas, de separação, de abandono. Ao final da narrativa, quando os tocantins estavam para lutar contra os araguaias, surge na narrativa a tribo tapuia com quem as duas tribos antes inimigas lutam e vencem, sendo assim, Ubirajara e Araci selam o arco das duas nações e tornam-se uma nação só, os Ubirajaras. Embora no final da narrativa as duas nações selem a paz, o personagem Ubirajara precisou inicialmente mentir, lutar, desfazer-se de seu povo para ficar com Araci, mesmo já possuindo a mão de Jandira. O personagem passa por mortes simbólicas para ir se construindo como guerreiro. A tríade de Alencar fecha-se com essa narrativa, levando-nos a perceber que, embora não possua colonizador, o índio ainda é servil, não faz decisões certas e, se preciso, abandona seu povo. Assim, o abandono ao povo não condiz com a identidade dos povos indígenas, ao contrário, são povos que procuram manter viva a união ancestral, como será debatido no próximo capítulo..

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