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Vozes indígenas dessilenciadas: memória e identidade em Eliane Potiguara

4. VOZES INDÍGENAS DESSILENCIADAS E CONTEMPORÂNEAS: MEMÓRIA,

4.2 Vozes indígenas dessilenciadas: memória e identidade em Eliane Potiguara

Que faço com minha cara de índia? E meus cabelos

E minhas rugas E minha história

E meus segredos (POTIGUARA, 2019, p. 32).

Potiguara)

No segundo subtópico deste capítulo, apresento a vida e a produção literária da escritora indígena Eliane Potiguara, esta que visa por meio de suas narrativas reforçar e valorizar a identidade indígena. Para tanto, por meio do poema Identidade Indígena (2019) destacarei a valorização identitária e a(s) voz(es) que clamam no poema por liberdade.

Eliane Lima dos Santos, mais conhecida como Eliane Potiguara, é descendente do povo Potiguara, conselheira do Inbrapi27 e fundadora do GRUMIN - Grupo Mulher-Educação Indígena. Foi também indicada para o Projeto internacional Mil Mulheres do Prêmio Nobel da Paz. Eliane Potiguara é formada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, cidade onde ela nasceu. Vale destacar que Eliane Potiguara não morou na comunidade a qual pertence, porém, isso não anula sua identidade, nem a faz menos indígena que os demais.

Em entrevista concedida ao editor da revista P@rtes28 via e-mail, no ano de 2004, Potiguara diz, no texto que foi intitulado de Mulher, índia, defensora da natureza! “Eu sempre tive que transpor obstáculos para sobreviver”, pois junto com sua família enfrentou a pobreza, lutou muito para se manter viva.

Na mesma entrevista, Potiguara fala sobre sua ida à escola, relata os problemas que encontrou, ao se deparar com um mundo preconceituoso:

Quando fui à escola não entendia porque riam de mim e de vovó que todos os dias vendia bananas na porta da escola! Ali comecei a me sentir diferente das crianças e adultos. Minha avó bebia e eu chorava muito porque não conseguia entender nada do que a professora ensinava e porque vovó bebia e se embalava no fumo de rolo. Minha escola era outra! (POTIGUARA, 2004, s/p).

A menina servia de chacota para os colegas de sala. Desprezada e inferiorizada, com cara de índia, sentia-se diferente. A diferença que ela sentia era como se o fato de ser indígena fosse defeito; aos poucos, a menina foi tornando-se mulher, e percebeu que sua cara de índia é parte de sua identidade, da sua vida. Potiguara viu na literatura um espaço para reforçar e

27 Instituto Indígena de Propriedade Intelectual.

28 Disponível em https://www.partes.com.br/2004/11/30/mulher-india-defensora-da-natureza/. Acesso em 24 de

preservar a identidade indígena. Assim, a produção literária de Eliane Potiguara, como a dos demais escritores indígenas, é um grito de resistência, é um voar por diversos bosques.

Em 1975, Eliane Potiguara tornou-se a primeira mulher indígena a publicar um poema no Brasil, o poema tem por título Identidade Indígena. A parente Graça Graúna (2013, pp. 78- 79, inserção minha) diz que “é possível dizer que o referido poema inaugurou o movimento literário indígena contemporâneo no Brasil [e] continua sugerindo um grito indígena em meio aos contrapontos da palavra [...]”.

Além de escritora, mãe e professora, Potiguara é também defensora dos direitos humanos e, através da sua causa, visa transcender para a literatura a luta pelos direitos dos povos, como meio de reafirmação da busca pela valorização da mulher e da pessoa indígena. A autora indígena, por meio da poesia, demonstra que os textos indígenas são campos de auto afirmação identitária.

Sobre identidade, Hall (2006, p. 38) diz que:

[...] a identidade é realmente algo formado, ao logo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo formada (HALL, 2006, p. 38).

A identidade, então, é aquilo que está sempre em processo de formação, inacabado, e ao longo do tempo vai estruturando-se. No caso da identidade indígena, ela foi se solidificando no decorrer do tempo, foi buscando espaço, em relação ao processo colonizatório, que tentou a todo custo desfazer a identidade indígena existente no Brasil.

A literatura de Eliane Potiguara difere do ideário romântico, visto que “o romantismo brasileiro constrói como exótico o passado colonial, elegendo o índio como símbolo de um projeto nacionalista” (THIÉL, 2006, p. 14). De tal modo, Potiguara desvincula a imagem do indígena da visão nacionalista, na qual era um mero selvagem, dotado de talentos, mas submisso ao colonizador, e o apresenta como um ser rico em histórias, crenças, como sujeito que está buscando uma identidade sólida.

Dessa forma, “a literatura produzida por indígenas brasileiros apresenta na sua constituição as suas próprias características, tanto na forma quanto no conteúdo” (FIGUEIREDO, 2018, p. 130), um conteúdo próprio, embasado na memória e na ancestralidade e que avança de geração para geração.

Identidade Indígena (2019), que analiso a partir de agora, é um poema composto por 8 estrofes, possui uma voz lírica de tom feminino, com características plurais. Potiguara diz na epígrafe do poema presente no livro Metade cara, metade máscara (2019) que o poema foi escrito em memória dos seus avós; a partir de então sua inspiração lírica surgiu.

O poema então é uma junção da forma poética com a autobiografia, não apenas da escritora Potiguara, mas, da sua avó. Assim, vejo o quanto o conhecimento ancestral, dos mais velhos é essencial para a construção do texto literário indígena, pois o saber, a memória da avó proporciona a escrita do poema. Em um poema longo, cantado – que mesmo não possuindo rimas – canta com uma voz plural, marca da literatura indígena, pois, é uma literatura de coletividades. Assim, por não seguir uma métrica específica vale ressaltar que:

A liberdade rítmica criou uma nova música do verso, tornando o metro mais livre, o poema menos cantante que os tradicionais, o ritmo mais seco e contundente. Em outras palavras, um ritmo inesperado como o da vida do homem contemporâneo (GOLDSTEIN, 2006, p. 50).

Não seguir regras estabelecidas é uma das características da literatura contemporânea, na qual está inserida a literatura indígena. Assim, Potiguara rompe com a ideia de métrica e propõe um poema com oito estrofes, possuindo versos irregulares. A voz lírica inicia o poema da seguinte maneira:

Nosso ancestral dizia: temos vida longa! mas caio da vida e da morte

e range o armamento contra nós. mas enquanto eu tiver o coração acesso não morre a indígena em mim e

nem tão pouco o compromisso que assumi perante os mortos

de caminhar com minha gente passo a passo e firme, em direção ao sol.

sou uma agulha que ferve no meio do palheiro carrego o peso da família espoliada

desacreditada, humilhada

sem forma, sem brilho, sem fama (POTIGUARA, 2019, p. 113).

O poema apresenta um eu lírico de voz feminina indígena, a voz poética carregada de identidade diz que mesmo o armamento rangendo contra eles (colonizadores) a indígena que há nela não morre. Essa preservação identitária e rica em memória é muito marcante para os povos indígenas que foram feitos de objeto na colonização. Os mortos, são aqueles indígenas que partiram para preservar o que se tem hoje, esses são lembrados e valorizados pela coragem e pela bravura.

A morte citada no poema traz uma memória ancestral de grande valor, pois foi através dos mortos que lutaram e reivindicam por justiça que os indígenas hoje são protegidos. Enquanto para a cultura ocidental os mortos não recebem tanta atenção, para os indígenas, são sinal de proteção.

Ao enunciar que assumiu o compromisso “de caminhar com minha gente passo a passo e firme, em direção ao sol”, o eu lírico de voz feminina se coloca como um ser que resiste em meio aos massacres. A categoria resistência é uma das principais marcas desse poema.

Em outro fragmento do poema, a voz indígena é proclamada dizendo:

Mas não sou eu só

não somos dez, cem ou mil

que brilharemos no palco da história. Seremos milhões unidos como cardume e não precisaremos mais sair pelo mundo embebedados pelo sufoco do massacre a chorar e derramar preciosas lágrimas por quem não nos tem respeito. a migração nos bate à porta as contradições nos envolvem as carências nos encaram

como se batessem na nossa cara a toda hora. mas a consciência se levanta a cada murro e nos tornamos secos como o agreste mas não perdemos o amor.

Porque temos o coração pulsando

jorrando sangue pelos quatro cantos do universo. (POTIGUARA, 2019, p. 113).

É notável que a voz do poema reclama os ultrajes já sofridos pelos indígenas, faz um retorno a memória dos parentes que sofreram e reafirma que, embora perseguidos, não aceitarão mais a perseguição, a migração e as contradições. A voz do eu lírico até então individual, começa a apontar uma coletividade, para apresentar que os povos indígenas não estão sós. Essa coletividade é apresentada nas estrofes “mas não sou eu só” e logo depois “seremos milhões unidos como cardume” no qual exclamam a ancestralidade coletiva e em seguida o desejo de justiça.

As angústias sofridas tornaram esse povo seco29, como aponta o poema, mas o amor jamais fora perdido. Secos depois de sofrerem tanto, de pois de tanto sangue derramado e de tantas imposições das crenças do colonizador. Adiante, a voz indígena exclama:

29 Ser seco não significa ser despossuído de sentimentos, mas secos para não aceitar imposições e normas que

eu viverei 200, 500 ou 700 anos e contarei minhas dores pra ti oh! identidade

e entre uma contada e outra morderei tua cabeça

como quem procura a fonte da tua força da tua juventude

o poder da tua gente

o poder do tempo que já passou mas que vamos recuperar. e tomaremos de assalto moral as casas, os templos, os palácios

e os transformaremos em aldeias do amor em olhares de ternura

como são os teus, brilhantes, acalentante identidade e transformaremos os sexos indígenas

em órgãos produtores de lindos bebês guerreiros do futuro e não passaremos mais fome

fome de alma, fome de terra, fome de mata fome de história

e não nos suicidaremos

a cada século, a cada era, a cada minuto e nós, indígenas de todo o planeta só sentiremos a fome natural e o sumo de nossa ancestralidade nos alimentará para sempre

e não existirão mais úlceras, anemias, tuberculoses desnutrição

que irão nos arrebatar

porque seremos mais fortes que todas as

células cancerígenas juntas. (POTIGUARA, 2019, p. 114).

Nesta parte do poema a voz aponta o que não quer que se repita, a fome, fome de tudo, fome de identidade. A ancestralidade é o alimento principal para os povos indígenas. As doenças causadas pelos colonizadores ceifarão e os indígenas não permitirão serem magoados. A voz coletiva continua a enunciar a resistência indígena. O poema aponta a preservação da identidade indígena, mas também, com grande insistência o ato de resistir dos povos indígenas. Esse ato torna os indígenas cada vez mais fortes para lutar com garra e preservar a memória dos antepassados, assim, a voz lírica exclama que a resistência existe e que através disso “seremos mais fortes que todas as células cancerígenas juntas”. O poema continua declamando sobre o que os indígenas almejam.

De toda a existência humana. e os nossos corações?

E pisaremos a cada cerimônia nossa mais firmes

e os nossos neurônios serão tão poderosos quanto nossas lendas indígenas

que nunca mais tremeremos diante das armas

e das palavras e olhares dos que “chegaram e não foram”. Seremos nós, doces, puros, amantes, gente e normal! e te direi identidade: eu te amo!

e nos recusaremos a morrer

a sofrer a cada gesto, a cada dor física, moral e espiritual. Nós somos o primeiro mundo! (POTIGUARA, 2019, p. 114).

A identidade é vista no poema como poder, então, os sujeitos indígenas lutam para recuperar aquilo que deles foi tirado, roubado. Vejo então que os escritos de Eliane Potiguara apresentam uma voz indígena inconformada com o passado, mas que almeja dias melhores, a identidade indígena está também na luta para recuperar o que foi perdido. Sendo assim, a literatura indígena é um espaço que dá voz às historicidades do passado (a literatura da oralidade) e do presente (as narrativas que surgem na contemporaneidade em relação com a cultura local). Ser contemporâneo, para Agamben (2009), não é se limitar ao tempo cronológico, mas, estar ciente dos tempos que o rodeiam, os rodearam e os rodearão, bem como faz Potiguara.

Durante todos os versos a(s) voz(es) mencionam a luta em meio ao processo colonizatório, os sofrimentos, mas, também, a coragem, a ousadia e a esperança dos povos indígenas. A voz narrativa rompe com os padrões estabelecidos e provoca rupturas no modo de narrar, no modo de apresentar a estruturação dos versos e das estrofes. Continua:

Aí queremos viver pra lutar

e encontro força em ti, amada identidade! encontro sangue novo pra suportar esse fardo nojento, arrogante, cruel…

e enquanto somos dóceis, meigos somos petulantes e prepotentes diante do poder mundial diante do aparato bélico

diante das bombas nucleares (POTIGUARA, 2019, p. 115).

Possuir uma identidade formada é para os indígenas sinônimo de liberdade. A identidade indígena recusa todo mal já apontado/apresentado a esse povo. A luta não acaba nunca. O texto indígena reforça a potência de escrita que foi negada/retirada à força anteriormente. Sendo assim, além das categorias de resistência e identidade, há outra que aparece no poema, a

liberdade. O indígena, após resistir contra todos os empecilhos para manter sua identidade, busca ser livre, para viver bem em comunidade, com o próximo.

A liberdade aparece como uma categoria que existe a partir da ação de lutar. Os indígenas lutam contra as imposições do colonizador e concretizam aos poucos essa liberdade tão almejada. Assim, a última estrofe canta a liberdade e o resgate da memória:

Nós, povos indígenas

queremos brilhar no cenário da história resgatar nossa memória

e ver os frutos de nosso país, sendo dividido radicalmente

entre milhares de aldeados e “desplazados” como nós (POTIGUARA, 2019, p. 115).

O poema encerra-se clamando por liberdade. Ser livre é essencial para manter viva cada vez mais a memória e a ancestralidade indígena. O ato de ser livre só acontece pelo fato de o indígena não aceitar ação de docilizar o corpo indígena, esse corpo que possui uma identidade própria e que não precisa ser moldado em outra cultura.

A voz poética/indígena quer viver da identidade, da memória indígena, do resgate. Embora “desplazados”, ou seja, deslocados, os indígenas não querem divisão entre os seus, mas querem viver na tessitura do acolhimento, da unidade. Sendo assim, faz-se necessário entender que:

Pensar a poesia em Eliane Potiguara é reconhecer a construção da diferença, pois trata-se de uma poesia em que a identidade literária se constrói à luz das tradições; como quer a voz da enunciação indígena (seja em verso, ou na “contação de histórias) (GRAÚNA, 2013, p. 98).

Pensar a poesia de Potiguara é pensar o que Graúna (2013) fala, reafirmar a identidade e perceber a voz indígena em questões de lugar/entrelugar, identidade/alteridade e autohistória. De tal modo, o jeito próprio de Potiguara narrar seus poemas faz dela uma escritora indígena que preserva a identidade do seu povo e que exclama na poesia gritos de liberdade.