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3. LITERATURAS INDÍGENAS: UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃO

3.2 Uma contra-narrativa

A leitura da literatura indígena convoca o leitor a conhecer diferentes mundos, culturas, saberes, epistemologias, pensamentos e expressões, não mais pelas vozes e escritas de outrem, de modo extemporâneo, objetivo e neutro, mas a partir de si mesmos, desde si mesmos, para si mesmos e para o outro (PERES, 2018, p. 109).

Neste subtópico, apresento as literaturas indígenas como literaturas produzidas pelos próprios indígenas, como literatura descendente da oratura19. Para tanto, destaco as produções indígenas como uma contra-narrativa, visto que questiona os padrões impostos pelo grupo dominante e também a visão eurocêntrica que perpetua na literatura canônica.

O indígena produzindo literatura apresenta novas formas de se perceber a figura dos indígenas na literatura brasileira. Distanciando-se de estereótipos e do discurso colonial, a visão indígena tem por objetivo contra-narrar, produzir narrativas que, ao mesmo tempo que apresenta as riquezas dos povos indígenas, contraria e questiona a proposta romântica.

Assim, diferente do primeiro capítulo deste trabalho, no qual usei com constância o termo índio, agora, passarei a usar o termo indígena, pois este é o termo adequado para denominar o nativo brasileiro, visto que, o nome índio foi uma invenção do colonizador20. Inclusive, em uma entrevista concedida à professora Suzane Lima Costa em 2017, Daniel Munduruku diz que a palavra índio não retrata a sua experiência de vida, pois foi sempre uma negação, um apelido que reforça em alguém uma ausência que ela tem e, por muito tempo, as pessoas diziam que nascer índio era um defeito21.

Em seu livro Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil, a escritora indígena Graça Graúna (2013) menciona o termo “contraliteratura” e se pergunta se esse seria o termo para denominar as literaturas das minorias. Vejo que o uso da palavra “contra” reforça um lugar de insatisfação, então, de fato, as literaturas das minorias, periféricas, dos subalternos são contraliteraturas que se manifestam contra as imagens propagadas insistentemente pelo cânone.

19 Trago Literatura indígenas, no plural, pois cada comunidade produz literaturas, de diferentes formas.

20 Ainda hoje muitas comunidades aceitam o termo indio, porém, ele é visto não com o sentido de negação assim

como fora na colonização.

21 Debate em uma mesa inédita com autores indígenas no encerramento da sétima edição da Festa Literária

Internacional de Cachoeira, disponível em: https://g1.globo.com/bahia/noticia/a-descolonizacao-do-pensamento- proposta-por-daniel-munduruku-e-eliane-potiguara-eu-nao-sou-indio.ghtml.

Graúna (2013, p. 66) ainda diz que as cidades letradas denominam esses grupos marginalizados como “literaturas extraocidentais de discurso “subliterário”. Essas literaturas marginais, inclusive a literatura indígena, por provocarem contra-narrativas e não se submeterem aos desmandos do cânone, são tachadas de subliteraturas. Contudo, produzem discursos potentes, de autoidentificação e de resistência.

A contra-narrativa produzida pela literatura indígena problematiza conceitos e imagens anteriores em que o índio foi representado. Nessa literatura, a figura do indígena não aparece mais como ser servil e subserviente ao homem branco, mas como sujeitos que têm espaço para demonstrarem sua bravura e garra para lutar pelo seu povo, sem os abandonar os parentes.

As textualidades produzidas pelos escritores indígenas demarcam um lugar de fala próprio, e é aquilo que Deleuze e Guattari chamam no livro Kafka: Por uma literatura menor (1975) de literatura menor. Não no sentido pejorativo do termo, mas no sentido de que sendo uma literatura produzida nas margens, emerge com um lugar de fala bem definido, próprio.

De tal modo, “nas mãos dos escritores indígenas, ela se torna ferramenta fundamental de autoafirmação, auto expressão, resistência e luta, coadunando-se diretamente com o Movimento Indígena no país (PERES, 2018, p. 108). A literatura indígena é um poderoso instrumento de afirmação cultural dos indígenas, e aparece como objeto de poder para apresentar novas visões.

Tendo como objetivo principal contra-narrar, as literaturas indígenas brasileiras se organizam para que as produções cheguem a mais pessoas, a diversos lugares. Nesse sentido, existe hoje, no Brasil, mais de quarenta escritores indígenas, escrevendo literatura de resistência, identidade, deslocamento, mitos, sobre seu povo, para afirmar que o indígena brasileiro também produz literatura, também falam de si, sem recorrer a estereótipos. Escritores como Daniel Munduruku, Eliane Potiguara, Graça Graúna, Ailton Krenak, Olívio Jekupé e outros, produzem literaturas, textualidades indígenas que demarcam seus lugares. Produzem uma literatura menor, cheia de afetos e de curiosidades dos povos indígenas22.

Através da literatura, os escritores indígenas mantêm um posicionamento de crítica e usam esse espaço, como afirma Thiél (2012), para retomar estereótipos não para dar mais ascensão ou visibilidade, mas, para desconstruí-los. Essa retomada se faz necessária para que o que fora proposto lá atrás possa ser repensado, problematizado.

22 Penso a literatura menor a partir das palavras de Deleuze e Guattari (1975, p. 25) que veem que “uma literatura

menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior”, neste caso, a língua maior está nas múltiplas textualidades dos indígenas e na facilidade de adaptar seus temas.

As literaturas indígenas emergem como contra-narrativa, ao mesmo tempo que emergem com um contra discurso, promovendo questionamentos acerca das imagens produzidas anteriormente. O escritor indígena é movido por um desejo de não recorrer a estereótipos, mas de repensá-los, revê-los.

Desde os anos 90, a literatura indígena escrita que é impulsionada pela literatura oral produz novas imagens para os indígenas brasileiros e do mundo também, bem como questionando o passado estereotipado. Cada vez mais, os indígenas produzem contra-narrativas de afirmação cultural e identitária.

Repensando conceitos e imagens, a literatura indígena brasileira traz o indígena para o centro e não o deixa nas margens como selvagem e subalterno. O indígena na sua literatura projeta dias melhores para os povos, transmitindo mensagens de esperança e afirmação de seu lugar próprio.

Na voz, na palavra, na imagem. O indígena celebra a vida e a resistência, como poderemos ver nas poesias de Graúna e Potiguara e no conto de Munduruku, apresentados e analisados no capítulo seguinte.

4. VOZES INDÍGENAS DESSILENCIADAS E CONTEMPORÂNEAS: