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A insurgência do herói indígena em O roubo do fogo, de Daniel Munduruku

4. VOZES INDÍGENAS DESSILENCIADAS E CONTEMPORÂNEAS: MEMÓRIA,

4.3 A insurgência do herói indígena em O roubo do fogo, de Daniel Munduruku

– Quando leem minha biografia, dizem que não sou mais índio, que já sou “civilizado”. Eu não sou índio e não existem índios no Brasil. Essa palavra não diz o que eu sou, diz o que as pessoas acham que eu sou. Essa palavra não revela minha identidade, revela a imagem que as pessoas têm e que muitas vezes é negativa (SEGRANFEDO, 2017, s/p).

“Eu não sou índio”. Essa frase de Daniel Munduruku parte de um lugar de insatisfação. O colonizador inventou esse termo que para muitos tem sentido negativo, pejorativo. É através dessa indignação que a voz de Daniel Munduruku ecoa nos dias de hoje. O sujeito indígena estando inconformado, não aceita essa passividade imposta desde séculos passados, ao contrário, hoje em dia, luta para desmistificar estereótipos e propor uma nova narrativa.

Assim como diversos outros indígenas, Munduruku prefere o uso do termo indígena, pois parte de um lugar mais próprio. Para Munduruku, o termo índio reforça preconceitos que rodearam os povos indígenas por muito tempo e surge como um aspecto de negação e inferioridade.

Desse modo, o último subtópico deste capítulo tem por finalidade apresentar Daniel Munduruku como um escritor indígena brasileiro, que pertence ao povo Mundurucu, nascido em Belém do Pará. De tal modo, destacarei sua produção literária que é principalmente voltada para o público infantil e, também, como o escritor escreve a partir do seu lugar de fala, das suas experiências, dos mitos e riquezas do povo indígena. Para tanto, analisarei o conto O roubo do fogo (2005) para entender como se dá a construção do herói indígena na narrativa escrita por ele, em contraposição às narrativas alencarianas.

As produções literárias de Munduruku, visam desmistificar os rótulos empregados na figura do ser indígena, muito propagados no Indianismo, no qual o indígena era inferior ao homem branco e submisso a ele. E, também, a noção do senso comum, no qual o indígena é apontado como bárbaro e selvagem, pois, como fala o próprio escritor indígena “essas duas vertentes, não dizem quem nós somos, elas dizem o que as pessoas acham que nós somos, o que as pessoas querem que a gente seja, mas não somos nem uma coisa nem outra” (MUNDURUKU, 2017, p. 19).

Rompendo barreiras e desmistificando ideias errôneas, Munduruku produz uma contra- narrativa na literatura e na vida, pois, possui o que para muitos é impossível a um sujeito indígena brasileiro. Munduruku é graduado em Filosofia e possui licenciatura em História e

Psicologia; além disso, é doutor em Educação pela USP e pós-doutor em Literatura pela UFSCar.

Esse escritor indígena rompe com a ideia europeizada, sua escrita é fruto de uma vontade de afirmar e reafirmar que o indígena é mais que uma representação idealizada. Em seus escritos, visa à construção de uma identidade de sujeitos que são ricos linguística, cultural e artisticamente.

Munduruku já produziu mais de quarenta obras literárias, seus livros visam, primeiramente, atender ao público infantil. Dentre as diversas obras deste autor estão Coisas de índio (2000), O sinal do pajé (2003), O segredo da chuva (2006) e O sumiço da noite (2006). São narrativas carregadas de conceitos indígenas, de fácil leitura, e quase sempre acompanhadas de ilustrações e de personagens narradores.

Na literatura indianista, o heroísmo do indígena está no fato de morrer/sofrer para dar origem a um povo, ou então para que algo de melhor possa acontecer. Diferenciando-se desse ideal e dessas propostas, há atualmente escritores indígenas como Daniel Munduruku, que emergem com propostas que refazem a ideia do ser índio na literatura brasileira30.

A voz narrativa presente em Daniel Munduruku produz uma crítica às representações anteriores, no qual o indígena morria, submetia-se e sofria. Dessa forma, a escrita deste autor, muito embasada nos traços orais indígenas, demonstra a urgência de se falar de um indígena não estereotipado, que não precisa ser submisso, mas, de um sujeito que luta pelo seu povo. Munduruku em uma entrevista cedida a Bruno Ribeiro em fevereiro de 201031 quando questionado sobre o que a literatura indígena teria a nos ensinar, disse:

A gente tem uma preocupação em educar a sociedade, em fazer com que ela perca seus preconceitos e passe a olhar o índio como um igual, como parte do povo brasileiro. Por isso, a nossa literatura não pode ser superficial, ela tem que inserir o leitor no cerne da cultura indígena. Nós colocamos a nossa riqueza a serviço da Nação (RIBEIRO, 2010, s/p).

É através dessa vontade de fazer sociedade repensar conceitos e ideias que, em O roubo do fogo, Daniel Munduruku apresenta de forma sucinta a luta do povo indígena Guarani pelo fogo, e apresenta uma nova visão de herói indígena com a coragem do personagem Nhanderequeí. Trata-se de um mito, porém, pode-se perceber a construção do personagem indígena em relação com o seu povo, seus parentes.

30 Sugiro a audição uma entrevista de Daniel Munduruku disponível em https://www.geledes.org.br/voce-sabia-

que-existe-diferenca-entre-as-palavras-indio-e-indigena/. Acesso em 26 de fevereiro de 2019.

Assim, em suas narrativas, Daniel Munduruku visa proporcionar um novo olhar para os povos tradicionais, e através da sua escrita busca demonstrar a coragem dos indígenas, não recorrendo a velhos estereótipos, mas, dando ênfase ao indígena que luta por si, mas, acima de tudo, pelo bem do seu povo.

Munduruku propõe uma ruptura com a ideia de indígena que se tinha/tem a partir da literatura indianista. Assim, rompe também com a ideia colonizadora e europeizada, pois, ao falar do colonizador, não o coloca como patrão do índio, mas como explorador dos seus parentes. Dessa forma, quando questionado sobre a literatura que escreve, Munduruku em entrevista concedida32 a Tatiana Ribeiro, em dezembro de 2014, disse:

Sempre faço questão de dizer que sou um indígena que escreve. Alguns colegas escritores falam: ‘Mas, Daniel, você escreve bem… Por que tem que colocar literatura indígena?’. Respondo que, se eu não colocar literatura indígena, vão me comparar a José de Alencar. Não quero isso. Porque a literatura indigenista que ele escreveu detonou com a gente. Tem muitos livros de bons escritores que dizem bobagens sobre os indígenas. Não é culpa deles. É o estereótipo que aprenderam e reproduzem. Hoje a literatura indígena é um fenômeno no Brasil. São mais de 40 autores. É importante que a gente reafirme de onde é que vem o que a gente escreve (RIBEIRO, 2014, s/p).

Sendo assim, Munduruku nos leva a pensar na literatura propriamente indígena, produzida por esses mais de 40 escritores dos quais fala, fugindo dos estereótipos e das comparações com Alencar. A voz de Daniel Munduruku é insurgente, pois diz não às representações anteriores. Além disso, questiona o nome índio, pois, é carregado de preconceitos, já que foi um nome dado pelo colonizador. Desse modo, é um escritor, pesquisador e indígena questionador, preocupado com o seu povo e também com seus parentes.

Em O roubo do fogo, um conto mítico do povo indígena Guarani que fala as línguas M’Bia, Nhandeva e Kaiowá, pertencentes à família Tupi Guarani e ao tronco Tupi, há o debate que parte de um lugar próprio do indígena33.

Entendemos que o gênero conto é uma narrativa menor que o romance e a novela, possuindo menos personagens e podendo tratar de qualquer tema, chama a atenção dos leitores pelo fato de tudo tender para uma conclusão, muitas vezes rápida e inesperada. Sobre o conceito do gênero conto, Gancho (2002, p. 8) diz:

É uma narrativa mais curta, que tem como característica central condensar conflito, tempo, espaço e reduzir o número de personagens. O conto é um tipo de narrativa tradicional, isto é, já adotado por muitos autores nos séculos XVI

32 Disponível em: https://www.geledes.org.br/daniel-munduruku-indio-e-invencao-total-folclore-puro/. Acesso

em 22 de fevereiro de 2019.

33 Nos anexos colocarei em imagem o conto formatado no livro Contos Indígenas Brasileiros, para que o leitor

e XVII, como Cervantes e Voltaire, mas que hoje é muito apreciado por autores e leitores, ainda que tenha adquirido características diferentes, por exemplo, deixar de lado a intenção moralizante e adotar o fantástico ou o psicológico para elaborar o enredo (GANCHO, 2002, p. 8).

A linguagem presente em O roubo do fogo é carregada de emoções e ações. Este conto possui um narrador observador que sabe todos os detalhes dos personagens, ele narra em detalhes as ações de cada elemento presente na narrativa, desde os culturais até os estéticos. A respeito da produção literária indígena, ao ser entrevistado por Cernicchiaro, Munduruku (2017, p. 18), fala:

Gosto de pensar que estou ajudando o Brasil a olhar para os povos indígenas sem o crivo dos estereótipos, sem a venda da ignorância, porque isso ajudaria todos nós a termos uma ideia mais objetiva do nosso processo histórico, colocando os povos indígenas nos lugares onde eles escolhem, ou seja, como seres humanos, portanto, cheios de problemas, de dificuldades, com tentativas de responder às angústias da existência, com a possibilidade de serem pessoas violentas, ciumentas, raivosas, como todo ser humano (MUNDURUKU, 2017, p. 18).

A literatura indígena aponta um novo modo de ser ver o indígena na literatura brasileira, e colabora para que o leitor fuja das ideias mecanizadas. Em O roubo do fogo, há uma luta constante pela busca do fogo, visto que o povo Guarani não possuía este elemento, nem sabia produzi-lo. Só quem possuía o fogo eram os urubus, que iam até o sol e pegavam brasas e detinham esse elemento, porém, não compartilhavam com ninguém:

É claro que todos os urubus tomavam conta das brasas como se fosse um tesouro precioso e não permitiam que ninguém delas se aproximasse. Os homens e os outros animais viviam irritados com isso. Todos queriam roubar o fogo dos urubus, mas ninguém se atrevia a desafiá-los (MUNDURUKU, 2005, p. 15).

Neste fragmento, percebemos os detalhes presentes na narrativa, é notável que a narrativa escrita segue o roteiro da narrativa oral, com sua carga de detalhes e ações. O modo como é narrado apresenta resquícios de oralidade, trazendo a memória dos anciãos para o texto. Sendo o fogo um elemento desejado pelos indígenas, algo precisaria ser realizado, mas como? Ninguém ousava desafiar os urubus, eles detinham o fogo e o guardava com grande proteção. Então, a narrativa apresenta alguém que ousa desafiar os urubus, o herói indígena surge para lutar pelo seu povo.

Nhanderequeí, guerreiro indígena, decide armar um plano para capturar o fogo, conseguindo-o depois de muito esforço. Assim, percebemos como a narrativa é detalhista, pois

enfoca a partir de determinado momento a coragem do personagem herói, que ousa fingir-se de morto para roubar o fogo dos urubus:

Todos concordaram e procuraram um lugar para se esconder. Não sabiam por quanto tempo iriam esperar. Nhanderequeí deitou-se. Permaneceu imóvel por um dia inteiro [...] O herói permaneceu o segundo dia do mesmo jeito. Sequer respirava direito para não criar desconfianças nos urubus que continuavam rodeando seu corpo. Foi no fim do terceiro dia, no entanto, que as aves baixaram as guardas. Ficavam imaginando que não era possível uma pessoa fingir-se de morta por tanto tempo (MUNDURUKU, 2005, p. 16).

A construção do herói indígena dá-se de modo objetivo, primeiro ele se propõe a fingir- se de morto, monta o plano e organiza táticas para capturar o fogo. Percebe-se que não pensa em abandonar seu povo, mas, em conseguir o objeto que todos almejavam. O heroísmo não está em ter conseguido o fogo, mas, em propor capturar àquilo que todos queriam. A ousadia de Nhanderequeí, a coragem também, faz dele um herói. Assim, enquanto em Iracema e O Guarani, Iracema e Peri submetiam-se ao homem branco. No conto, o personagem indígena submete-se a seu povo, não como obrigação, mas como meio de obter o que o povo almejava. A narrativa é construída de modo a instigar o leitor a possuir um olhar mais aprimorado no ato do guerreiro Nhanderequeí, que se propõe a realizar o que fosse preciso para conseguir o fogo. Com sua coragem e ousadia, a narrativa começa a desenvolver-se, pois é a partir de sua ação que acontece o clímax do conto, o momento da captura do fogo. Então, devido a todo o esforço e heroísmo de Nhanderequeí o povo lutou e conseguiu o fogo para suas utilidades, porém, graças também à esperteza de outro herói presente na narrativa, o pequeno sapo Cururu:

Acontece que, por trás de todos, saiu o pequeno cururu, dizendo: - Durante a luta os urubus se preocuparam apenas com os animais grandes e não notaram que eu peguei uma brasinha e coloquei na minha boca. Espero que ainda esteja acesa. Mas pode ser que... - Depressa. Pare de falar, meu caro cururu. Não podemos perder tempo. Dê-me esta brasa imediatamente - disse Nhanderequeí, tomando a brasa em suas mãos e assoprando levemente (MUNDURUKU, 2005, p. 18).

Um debate emerge a partir das análises das obras O roubo do fogo, Iracema e O Guarani, a diferença na construção dos personagens é grande, de uma estética a outra, o tempo, os espaços e os escritores também. As representações de Alencar, seguindo os pressupostos do Romantismo, criaram um índio europeizado. A proposta dos escritores indígenas, de Daniel Munduruku, propõe o indígena na literatura de maneira a se perceber a história, a cultura dos povos indígenas.

Não há a presença do colonizador nesse conto (como centro e/ou condutor da narrativa) produzido pelo escritor indígena. Criou-se esta ideia no Brasil, de que falar do indígena precisa

colocar o colonizador como ápice do debate. É importante salientar que a história sempre é distorcida e o que invade acaba sendo ajudado pelo que foi invadido. Porém, vale lembrar que em Ubirajara (2015) também não há a presença do colonizador, mas, devido questões políticas do escritor. Em Alencar o índio é imaturo e selvagem, já em Munduruku, o colonizador não está pois o indígena não precisa dele para narrar sua história.

Por diversos motivos há de se colocar em debate que há a contradição de concepções de heróis diferentes nas narrativas de Alencar e de Munduruku. Dessa forma, é de grande importância destacar a emergência da literatura indígena, que produz essa contra-narrativa em relação ao cânone literário, no qual o próprio indígena fala do indígena sem desmerecer seu povo. Dessa forma, para Graúna (2012, p. 275), “fazer literatura indígena é uma forma de compartilhar com os parentes e com os não indígenas a nossa história de resistência, a nossas conquistas, os desafios, as derrotas, as vitórias [...]”.

Todavia, a literatura indígena produz um discurso que não é personificado ou demonstrado, mas, sim, um discurso de si mesmo, das suas origens, dos seus rituais e conhecimentos, um discurso potente e preciso em contraposição às noções estereotipadas e limitadas das expressões literárias em que o índio foi demonstrado anteriormente.

No final do conto, após a demonstração de coragem do herói Nhanderequeí, o povo Guarani guarda o fogo, o tão esperado elemento. Após o plano do personagem que se dispôs a lutar pelo seu povo, os indígenas conseguem o que queriam e passam a preservar esse elemento essencial, então:

Percebendo que tudo estava sob controle, o herói ordenou que seus parentes encontrassem madeiras canelinha, criciúma, cacho de coqueiro e cipó-de-sapo e as usassem sempre toda vez que quisessem acender e conservar o fogo. Além disso, o corajoso herói ensinou os Apopocúva a fazer um pilãozinho onde guardar as brasas e assim conservar o fogo para sempre. Dizem os velhos desse povo que até os dias de hoje os Apopocúva guardam o pilãozinho e aquelas madeiras (MUNDURUKU, 2005, p. 19).

Assim, o fogo passou a ser posse do povo Guarani e foi passado de geração para geração. Logo, o título do conto demonstra essa ação de roubar, para preservar o elemento essencial e vital aos povos. A construção dessa narrativa reforça o novo modo de se ver o sujeito indígena na literatura, não apenas como um mero personagem, mas, sim, como aquele personagem que luta e que é destemido.

O modo como é representado o indígena em O roubo do fogo nos leva a perceber que não é apenas uma ação de desmistificação de rótulos e estereótipos, mas, de potência afetiva e

diversidade multicultural que os indígenas possuem. Munduruku, em seus escritos, escreve com urgência; esta urgência é causada pelas ações atribuídas aos sujeitos indígenas. Desse modo, sua voz, inconformada com essas propostas, produz um discurso de desmistificação das ideias existentes, e também um discurso de si, da sua vivência, dos seus costumes.

De tal forma, assim como as literaturas indígenas e a escrita de Munduruku, o Toré é fator de luta. A literatura questiona pressupostos. O Toré afirma: nós, povos indígenas, somos a voz da esperança, por isso, antes de convidá-lo para dançar, gostaria de dizer também que:

É através do Toré que nos identificamos como povo indígena. Mas, vale ressaltar que cada dança tem a função de demonstrar a realidade específica de cada comunidade indígena. Para nós Katokinn, o toré contribui bastante nos momentos culturais, nos rituais e no fortalecimento da crença e da religiosidade (Maria Aparecida – Liderança Katokinn).

A literatura indígena de Daniel Munduruku assume um lugar próprio e nos faz pensar na representação que o eu indígena faz de si mesmo. Assim como a literatura dos escritores indígenas anuncia a liberdade do ser indígena, o Toré proclama, convida-nos a cantar e aspirar àquilo que é bom para o mundo e para nós. Assim, nas considerações, vamos dançar o Toré, pois a poesia do dançar nos encaminha para a liberdade.

5. POR ENQUANTO, ALGUMAS CONSIDERAÇÕES: VAMOS AO TERREIRO