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4. VOZES INDÍGENAS DESSILENCIADAS E CONTEMPORÂNEAS: MEMÓRIA,

4.1 Memória e ancestralidade em Terra à vi$ta, de Graça Graúna

A literatura indígena contemporânea é um lugar utópico (de sobrevivência), uma variante do épico tecido pela oralidade; um lugar de confluência de vozes silenciadas e exiladas (escritas) ao longo dos 500 anos de colonização. Enraizada nas origens, a literatura indígena contemporânea vem se preservando na autohistória de seus autores e autoras e na recepção de um público-leitor diferenciado, isto é, uma minoria que semeia outras leituras possíveis no universo de poemas e prosas autóctones (BRANCO, 2010, s/p).

Mulher, mãe, indígena, escritora e nordestina. Graça Graúna. Como seu sobrenome indígena diz, é pássaro que voa, que escreve embasada em sua ancestralidade. A literatura da escritora indígena Potiguara voa assim como o pássaro, provocando rupturas e reestabelecendo ninhos.

Neste subtópico, destaco a vida e a produção artístico-literária da escritora indígena Graça Graúna. Para tanto, recorrerei a uma entrevista cedida pela escritora e apontarei por meio de sua poesia Terra à vi$ta (1999) o processo de valorização memorial e ancestral da cultura literária indígena.

Como pássaro, Graúna sempre esteve disposta a voar. Nascida em São José do Campestre no estado do Rio Grande do Norte e descendente dos Potiguaras, encontrou no decorrer de sua vida diversas dificuldades, no entanto, nenhuma a impediu de buscar lugares mais seguros. Os ventos contrários eram muitos e, devido às condições precárias, a menina Graúna mudava com sua família sempre de lugar23 em busca de melhores condições. Por estar sempre em constante mudança, os estudos eram atrapalhados e ela não conseguia concluí-los.

A garota, hoje mulher, não desistiu. Para concluir os estudos ousou entrar no supletivo, também conhecido por Curso de Madureza. Com o passar do tempo, o que era um desafio tornou-se uma paixão, Graúna desenvolveu o gosto pelos estudos e após concluir o supletivo entrou para a faculdade.

Graúna falou em uma entrevista à Tarsila Lima em 2015 sobre a entrada na faculdade:

23 Traço as características da vida da escritora indígena Graça Graúna a partir de uma entrevista concedida pela

escritora a Tarsila de Andrade Ribeiro Lima, no ano de 2015, disponível em http://www.pgletras.uerj.br/palimpsesto/num20/entrevista/Palimpsesto20entrevista01.pdf

Desenvolvi o gosto pelos estudos e me atrevi a entrar na Universidade. Fiz Jornalismo, pela metade; entrei, depois, em Filosofia e larguei o curso no meio do caminho porque morava longe da Universidade e não tinha condições financeiras para continuar a vida acadêmica e criar os filhos, tudo ao mesmo tempo (GRAÚNA, 2015, p. 141).

Graúna sempre gostou da literatura, era uma aluna dedicada e sempre realizava vestibulares, na última vez que tentou, entrou na UFPE para cursar Letras e dedicou-se ao estudo da cultura e da história dos povos indígenas. Foi também na UFPE que Graúna realizou seu mestrado e se doutorou24.

Sendo uma mulher indígena que aspirava e aspira os ares da literatura, Graúna passou a escrever como forma de demonstrar que o indígena pode realizar diversas ações que os foram negadas desde o processo colonizatório.

Em entrevista concedida a Tarsila Lima, Graúna usa as seguintes palavras: “a cada leitura de mim e do outro, foi se ampliando a minha busca por um lugar no mundo” (GRAÚNA, 2015, p. 144), esse lugar no mundo é cada vez mais firmado através do texto literário, a tessitura narrativa e poética indígena afirma que o indígena também escreve como forma de manifestar e demarcar seu lugar no mundo.

Graúna (2012, p. 268) diz que “[...] os povos indígenas vivenciaram a impossibilidade de escrever e expor o seu jeito de ser e de viver em sua própria língua”. Por longos anos os indígenas viveram em situação de passividade, proibidos de realizarem qualquer ação, inclusive de falarem suas próprias línguas. De tal modo, da oratura à escrita, a literatura indígena contemporânea, na qual está inserida a literatura de Graça Graúna, emerge como o grito que estava entalado desde quando os portugueses aqui chegaram.

Agamben (2009, p. 59) diz que ser contemporâneo é manter “[...] uma relação singular com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias [...]”. Assim, Graça Graúna adere a esse tempo, mas dele também toma distâncias, para então retornar a sua ancestralidade, a memória do seu povo.

Com as proibições dos colonizadores, os indígenas ousaram manter viva as suas culturas; sendo a oralidade proibida, vale perguntar, como toda uma carga de saberes foi preservada? A memória indígena mesmo em meio a proibições resistiu bravamente. Rituais,

24 Graduada, mestre e doutora em Letras, pela UFPE; Pós-doutora em Literatura, Educação e Direitos indígenas,

pela UMESP. Professora adjunta orientadora na UPE. Em sua tese de doutorado teve como orientador o professor Dr. Roland Walter, e teve como título da tese “Contrapontos da Literatura indígena contemporânea no Brasil”, que depois tornou-se um livro de grande importância para os estudos em Literatura Indígena no Brasil. Informações colhidas no Currílo Lattes da escritora. Disponível em: http://lattes.cnpq.br/5740105436083026. Acesso em 26 de novembro de 2019.

crenças, costumes e a própria literatura foi preservada por meio da memória e é reverberada atualmente através de todo um conhecimento ancestral.

Nesse entremeio, vale também nos perguntarmos o que seria memória e como ela reaparece nas culturas que foram perseguidas e abaladas. Em História e Memória (1990), Le Goff diz que:

A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas (LE GOFF, 1990, p. 423).

Para Le Goff, a memória está relacionada a questões do passado, mas, ao mesmo tempo, mantém relações intrínsecas com o presente. De tal modo, é definida como um mecanismo de preservação daquilo que o autor chama de “certas informações”. Pensando os povos indígenas, essas certas informações apontadas por Le Goff são os cânticos dos rituais, as rezas, os costumes e também a literatura, sobreviventes do processo colonizatório imposto.

A concepção de memória nas palavras do escritor indígena Munduruku (2008) se aproxima da definição proposta por Le Goff – memória é definida como o encontro do novo com o velho – assim, para Munduruku:

A memória é, pois, ao mesmo tempo passado e presente que se encontram para atualizar os repertórios e encontrar novos sentidos que se perpetuarão em novos rituais que abrigarão elementos novos num circular movimento repetido à exaustão ao longo de sua história (MUNDURUKU, 2008, s/p).

A definição de Munduruku (2008) é recíproca à de Le Goff (1990). Para os autores, a memória é entendida como aquilo que foi salvo de um passado e que, ao chegar no presente, (re)atualiza repertórios e provoca novos pensamentos na história. A memória indígena então, é resultado do passado – ou seja, da ancestralidade – em sintonia com os saberes atuais, apreendidos no dia a dia dos povos indígenas.

A memória enquanto ação que guarda fatos do passado e é atualizada por ações do presente, é em grande parte definida como resultado daquilo que fora guardado ou solidificado em objetos, podendo assim, ser palpável.

Para Pollak (1989):

A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. (POLLAK,1989, p. 7).

A definição de memória proposta por Pollak se distancia das definições debatidas anteriormente. Enquanto Le Goff e Munduruku definem memória como o encontro do presente com o passado, Pollak sustenta que memória é o passado formado por coletividades que está fincado em objetos.

Porém, a partir de Pollak pode-se entender que a memória reforça pertencimentos de coletividades, a memória é fruto do coletivo, embora possua também raízes individuais, próprias de cada sujeito. No entanto, “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali ocupo” (HALBWACHS, 1990, p. 51), pois não se pode dissociar o individual do coletivo, a memória embora individual é resultado de coletividades.

Pensando a memória indígena, faz-se necessário destacar que, na concepção de Pollak, a memória indígena não existiria, pois, sendo resultante da oralidade, não é algo palpável, mas, falável, passada de geração para geração, ao passo que o que é falável não é solidificado. Em relação a isso, Munduruku (2008) aponta a memória indígena como uma memória forte e resistente.

A memória indígena é base para os escritos de Graça Graúna e essa literatura é resultado da preservação de memórias ancestrais, preservadas pela comunidade e mantidas vivas na literatura escrita dessa mulher indígena.

Sendo assim, no discurso poético de Graúna, a imagem dos sujeitos indígenas e de sua cultura aparecem como protagonistas, livres de estereótipos, rememorando e criticando ações do colonizador, mas também, apontando a escrita e a oralidade como fonte de preservação da cultura indígena. Munduruku (2008) ao falar sobre os seus ancestrais diz:

Estes povos traziam consigo a memória ancestral. Essa harmônica tranquilidade foi, no entanto, alcançada pelo braço forte dos invasores: caçadores de riquezas e de almas. Passaram por cima da memória e foram escrevendo no corpo dos vencidos uma história de dor e sofrimento (MUNDURUKU, 2008, s/p).

A história citada por Munduruku (2008) propõe a invenção do modelo de índio, denominou-o como sujeito a ser convertido, como corpo vencido. No entanto, a literatura indígena agrega a memória e a ancestralidade em constante relação com o local e o global, ou seja, une o passado, a ancestralidade, com o presente, com as questões urbanas, da contemporaneidade, como forma de demonstrar preocupação com a figura do indígena, mas também com o espaço não indígena. Assim, já ouvimos falar no termo glocal (global + local),

como a ação de unir o que é próprio e ancestral ao novo e atualizar repertórios. Com isso, vale ressaltar que:

As textualidades indígenas estão abertas às redes de relações que congregam o local e o global e os autores indígenas transitam por espaços tribais, mas também urbanos; ou seja, eles estão localizados em espaços culturais ancestrais, além de dialogarem com culturas cosmopolitas (THIÉL, 2012, p. 77).

Sendo uma escritora indígena que em seus escritos a ancestralidade e a memória se reverberam, Graúna, enquanto mulher, mãe, indígena, escritora e nordestina, produz um contra discurso e fala de si, do seu povo, das suas raízes na literatura. Não podemos definir a escrita de Graúna como uma escrita da atualidade, mas como uma escrita dos retornos ao passado, às memórias e que, quando escritas, emergem com ares de contemporaneidade. A escrita de Graúna e de todos os escritores indígenas são águas que se encontram, pois:

O papel da literatura indígena é, portanto, ser portadora da boa notícia do (re)encontro. Ela não destrói a memória na medida em que a reforça e acrescenta ao repertório tradicional outros acontecimentos e fatos que atualizam o pensar ancestral (MUNDURUKU, 2008, s/p).

Como escritora indígena que visa preservar a memória e a ancestralidade dos povos indígenas, Graça Graúna visa também em suas poesias problematizar acerca das representações dos sujeitos indígenas na literatura canônica. Os textos dessa escritora indígena são contemporâneos, memoriais e ancestrais e, por meio do narrar poético, falam das riquezas e crenças dos povos indígenas, como forma de liberdade e espaços de questionamentos. Em seus escritos, visa à apresentação do devir indígena, apresentando-os como sujeitos diversos, ricos em conhecimentos, dotados de sabedoria25.

Graça Graúna escreve em prosa e poesia, sendo a primeira (prosa) voltada para o público infanto-juvenil e a segunda (poesia) voltada para os mitos e experiências indígenas e também para as questões sociais. Uma das maiores características da literatura indígena, é o fato das narrativas voltarem-se para o público infantil, mecanismo cultural que faz com que se passe de geração para geração esses traços memoriais.

No gênero poético, Graça Graúna escreveu obras como, Canto Mestizo (1999), Tessituras da Terra (2000) e Tear da Palavra (2001). Na prosa, destacou-se a obra infanto- juvenil Criaturas de Ñanderu (2010).

25 Apoio-me na concepção de devir de Deleuze, quando diz que “escrever não é certamente impor uma forma (de

expressão) a uma matéria vivida. […] Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita e inseparável do devir […] (DELEUZE, 1997, p. 11).

Em sua escrita, Graça Graúna realiza críticas, demonstra as riquezas dos indígenas e debate diversas questões acerca do ser indígena. Em um dos poemas que se encontra no livro Canto Mestizo (1999), Graúna demonstra a insatisfação daqueles (os indígenas) que estão perdidos e jogados devido àqueles (colonizadores) que vinham pelo oceano e viram Terra à vi$ta26: Perdidos no perdido os filhos da terra sem barco sem arco sem lança sem onça sem-terra. Jogados no mundo os filhos da terra. Só o silêncio dos deuses

pelos (des)caminhos (GRAÚNA, 1999).

Trata-se de um poema curto, que possui versos livres. Embora cause uma certa rima, o quinteto não obedecer às regras de metrificação, pois:

Esse tipo de verso, típico do modernismo, vem sendo muito usado a partir da segunda década de nosso século. Num poema em versos livres, cada verso pode ter tamanho diferente a sílaba acentuada não é fixa, variando conforme a leitura que se fizer (GOLDSTEIN, 2006, p. 49).

A rima presente nos versos – sem barco, sem arco, sem lança, sem onça – são rimas consoantes, vê-se que, sem barco rima com sem arco e sem lança rima com sem onça, recitar essa parte do poema provoca um respiração rápida que provoca cansaço, o que remete ao fato de os indígenas estarem perdidos, pois, caminham sem saber para onde ir, pelos (des)caminhos.

A partir do título do poema Terra à vi$ta podemos entender que a autora realiza uma crítica à chegada dos colonizadores, pois o uso do cifrão ($) no nome vista enuncia que a terra que estava para ser invadida seria explorada e, na busca por riquezas, os indígenas exerceriam a mão de obra para tal ação.

Assim, a autora estabelece uma memória ancestral e começa dizendo “perdidos no perdido/os filhos da terra”, o que nos leva a perceber que, se antes os indígenas eram os donos

26 O acesso a poesia deu-se por meio do blog da escritora indígena Graça Graúna. Disponível em

de suas terras, com a entrada dos colonizadores nas terras brasileiras, os filhos da terra estão perdidos, sem mais nada – sem barco/sem arco/sem lança/sem onça/ sem-terra –, perderam tudo.

A repetição da preposição sem no quinteto é usada de modo anafórico, sempre no início do verso, provoca rima AABBC em – sem barco/sem arco/sem lança/sem onça/sem-terra. Por se tratar de um poema livre, as escolhas da poetisa indígena não são coincidências, a forma não fixa é característica também da poesia indígena, dialogando com a independência da forma literária.

O ecoar da voz indígena é forte nessa poesia e também na literatura produzida pelos escritores indígenas. São vozes que ecoam e falam das riquezas indígenas, mas que também protestam, são memórias que trazidas da oralidade para a escrita surgem como campos de escrevivências.

Assim, nas palavras da própria escritora indígena, faz-se importante entender que: A nossa literatura contemporânea é um dos instrumentos que dispomos também para refletir acerca das tragédias cometidas pelos colonizadores contra os povos indígenas; a literatura é também um instrumento de paz a fim de cantarmos a esperança de que dias melhores virão para os povos indígenas no Brasil e em outras partes do mundo (GRAÚNA, 2012, p. 275).

A literatura indígena contemporânea de Graça Graúna ecoa como esperança de dias melhores, onde os indígenas possam cantar a liberdade, longe de preconceitos e estereótipos, longe da exploração. Graúna reconhece que não veio ao mundo aleatoriamente e que não escreve de forma desvinculada da sua identidade. Trata-se de uma indígena que escreve influenciada e movida pela sua ancestralidade, pela cultura do seu povo e dá conta do seu lugar de fala.

A escrita de Graça Graúna é sólida e autêntica, na qual aponta que sua cultura, a memória do seu povo e a ancestralidade herdada estão imbricadas, em constante processo de união. A memória e a ancestralidade se reverberam desde a oralidade até a escrita, marcando um lugar próprio.

A literatura indígena produzida por Graça Graúna é um campo de afirmação identitária, no qual o indígena fala de si no passado, mesclando com características dos dias atuais e projetando dias melhores.