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3. LITERATURAS INDÍGENAS: UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃO

3.1 Da oratura à escritura: ecos da literatura indígena

A literatura indígena contemporânea é um lugar utópico (de sobrevivência), uma variante do épico tecido pela oralidade; um lugar de confluência de vozes silenciadas e exiladas (escritas) ao longo dos mais de 500 anos de colonização (GRAÚNA, 2013, p. 15).

Esse subtópico tem por objetivo apresentar a literatura indígena como uma arte narrativa e apresentar o processo de surgimento da(s) literatura(s) desde a oralidade até a escritura, destacando as vozes que foram silenciadas e apagadas como vozes que ressurgem produzindo contra-narrativas.

Antes disso, vale ressaltar que no período da colonização brasileira os indígenas que habitavam as terras foram vistos como sujeitos a serem moldados. Em O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem, para explicar a inconstância do indígena do período colonial, Viveiros de Castro (1992) vai até a metáfora realizada pelo padre Antônio Vieira, no sermão do Espírito Santo. Assim, vê o indígena como murta14, mais fácil de ser formada, mas que precisava sempre de reparos para que se conservasse. Ao serem catequizados, os indígenas aprendiam a doutrina cristã, mas voltavam aos seus costumes rapidamente. Esses costumes, para os jesuítas, eram obstáculos, tornavam os indígenas inconstantes e impediam que eles se tornassem mármores aos princípios cristãos.

Os colonizadores queriam moldar o sujeito indígena, “porém, este gentio sem fé, sem lei e sem rei não oferecia um solo psicológico e institucional onde o Evangelho pudesse deitar raízes” (VIVEIROS DE CASTRO, 1992, p. 22). Mesmo sendo os indígenas inconstantes, os colonizadores não desistiram de moldá-los. Inclusive, os indígenas foram impossibilitados de realizar rituais, de praticar costumes e de falar em suas próprias línguas, pois o colonizadores obrigavam os indígenas a realizarem ações que compactuassem com os costumes europeus.

No entanto, antes mesmo dos colonizadores chegarem às terras brasileiras, os indígenas já cultivavam a arte literária através da oratura. A oratura é entendida como todo conjunto de conhecimento oral dos povos indígenas. Conhecimento este, guardado na memória e transmitido de geração para geração. É também carregada de ancestralidade, de muitas vozes

indígenas que nos antecederam. Assim, a literatura indígena é oriunda de conhecimento oral que, em meio a proibições de se falar as línguas nativas, se manteve vivo.

Sendo assim, a literatura indígena pode ser considerada uma sobrevivente, pois os indígenas resistiram bravamente em meio às proibições de falarem suas línguas nativas. Porém, muito foi perdido, as imposições dos colonizadores fizeram com que mais de mil línguas indígenas fossem extintas e muito da literatura oral também fora perdido.

Graúna (2013), escritora indígena brasileira, defende o espaço da literatura indígena como um lugar de autoafirmação cultural. De tal modo, aponta as literaturas indígenas que inicialmente eram cultivadas por meio da oralidade, é fruto de muito silenciamento e exilamento, devido às proibições e invasões do colonizador. Contudo, a poesia oral indígena, embora silenciada na colonização, hoje, produz ecos de resistência.

A oralidade indígena é entendida como um mecanismo de preservação dos costumes, crenças e rituais das diversas comunidades indígenas. Por meio do conhecimento oral, ou seja, de uma gama de cânticos, toantes, rezas, literatura (de diferentes etnias), os indígenas transmitiam de geração para geração esse conhecimento.

Para Zumthor (2014), por meio da voz, ou seja, da oralidade, nos situamos no mundo, sendo assim, a voz indígena situa e conclama a um olhar aos povos indígenas distante de representações idealizadas:

A voz é uma forma arquetípica, ligada para nós ao sentimento de sociabilidade. Ouvindo uma voz ou emitindo a nossa, sentimos, declaramos que não estamos mais sozinhos no mundo. A voz poética nos declara isso de maneira explícita, nos diz que, aconteça o que acontecer, não estamos sozinhos (ZUMTHOR, 2014, p. 83).

Sendo a oralidade um ato espontâneo, natural; com a ausência de uma literatura ágrafa – escrita –, o registro oral dos indígenas nasceu intimamente na fala. Assim, a oratura indígena funciona como todo conjunto de conhecimento daquilo que fora preservado na memória pelos povos indígenas. O conhecimento que era partilhado em comunidade, fora guardado e partilhado através do da oralidade. Assim:

Essa literatura teria como uma de suas características centrais tomar os mitos indígenas, que antes eram transmitidos de geração em geração como uma tradição milenar apenas através da oralidade, e recriá-los, dando-lhes uma dimensão estética e conferindo-lhes um caráter literário, na medida em que são escritos, editados e publicados em forma de livro, para serem lidos tanto por um público indígena, quanto por um público “branco”, mesmo que seja em menor escala (GUESSE, 2011, p. 1).

Essa recriação que dá uma dimensão estética e confere aos textos indígenas um valor literário, faz com que em meados dos anos 90 do século XX a literatura indígena escrita aconteça. Nesse período, o escritor indígena começou a expandir a literatura produzida em comunidade por meio da escrita, trazendo da oralidade para a escrita tudo que fora preservado na memória e repassado pelos ancestrais, tanto para o público indígena, quanto para os brancos, assim como fala Guesse (2011).

A literatura indígena escrita entra em ascensão, principalmente após a garantia legal dos direitos que asseguraram uma ação de ensino-aprendizagem diferenciado aos indígenas, a começar pela “Constituição de 1988, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, e pelo Plano Nacional da Educação, de 2001” (GUESSE, 2011, p. 2). A educação diferenciada garantida por lei, faz com que professores indígenas comecem a levar a literatura dos próprios povos indígenas, como ação de transmissão de conhecimento e aprimoramento da cultura com as novas gerações.

Com o desenvolvimento da literatura indígena escrita, não se pode dizer que a oratura foi desprezada e esquecida. O conhecimento oral é a mola propulsora para os povos indígenas, tudo que foi herdado pode ser transmitido para os parentes cotidianamente em comunidade, assim, a oralidade é que fornece suporte para o nascimento do texto escrito, a literatura escrita não existiria sem a literatura oral e a literatura oral proporciona a produção da literatura escrita, ou seja, “a escrita não chega para ser predominante, ela chega como auxiliar e veículo para a expressão de toda uma tradição que se estabelece por meio da oralidade” (PERES, 2018, p. 113).

As relações entre oralidade e escrita são marcas constantes da literatura indígena brasileira. As duas estão ligadas intrinsicamente, sendo literaturas em que a memória e a ancestralidade indígena reaparecem por meio do texto.

Sendo assim, no fragmento a seguir, Graúna (2013) nos diz que:

A busca da palavra, mais precisamente a luta dos povos indígenas pelo direto à palavra oral ou escrita configura um processo de (trans)formação e (re)conhecimento para afirmar o desejo de liberdade de expressão e autonomia e (re)afirmar o compromisso em denunciar a triste história da colonização e os seus vestígios [...] (GRAÚNA, 2013, p. 54).

Todo o processo de luta visa a re(construção) de uma identidade que embora seja sólida, foi abatida na colonização. Os ecos da literatura indígena clamam por liberdade de expressão e por um espaço autônomo para produzir denúncias, mas também para expor as belezas da cultura indígena.

A literatura indígena oral é muito forte nas comunidades indígenas, sendo passada de geração para geração, comprovando que a literatura indígena oral vive e continua sendo preservada em comunidade. Portanto, “ao escrever, de maneira nenhuma, o índio nega sua tradição oral. Pelo contrário; paradoxalmente, ele usa a escrita para manter viva sua oralidade e a partir dela construir sua prática literária, a literatura da floresta” (GUESSE, 2011, p. 8).

Pensando o processo transitório da oralidade para a escrita, a partir de Graúna (2013), entendo que os textos escritos indígenas confrontam com os textos canônicos e ao chegar a povos não indígenas provocam rupturas. No entanto, com a ascensão das tecnologias, os escritores indígenas, fazendo uso desse meio, expandiram a literatura indígena, publicando em sites e blogs para levar essa literatura dos povos indígenas para todos. Inclusive, muitos criticam os indígenas pelo fato de usarem as tecnologias, visto que foi inventada pelo homem branco. Contudo, esquecem que o indígena hoje pode e deve usufruir de tudo aquilo que é benéfico para seu reconhecimento, inclusive as tecnologias digitais, criadas pelo branco, mas que foram inventadas a partir da mão de obra escrava de muitos indígenas.

Escritores indígenas como Graça Graúna15, Eliane Potiguara16 e Daniel Munduruku17 possuem blogs e sites para expor trabalhos e para debater diversas questões dos povos indígenas; nesses, indígenas e não indígenas acessam as produções e podem repensar/questionar conceitos e imagens anteriores. Através do suporte tecnológico, a literatura indígena chega a mais pessoas, tornando-se, assim, objeto de estudo com maior frequência.

Dessa forma,

O advento da escrita dentro das comunidades indígenas vem reformulando as tecnologias adotadas para a preservação da memória do escrito e sua publicização. Livro, celular, rádio e vídeo não são mais instrumentos avessos à tradição indígena, senão que foram assumidos de modo consciente pelos povos indígenas como espaço de auto expressão e de denúncia da violência que sofrem. Estes instrumentos possibilitam desenvolver a criatividade do sujeito indígena, mas, principalmente, reforçar o valor de sua alteridade (PERES, 2018, p. 113).

O escritor indígena agrega a sua cultura, a sua literatura e a sua ancestralidade ao meio digital, fazendo com que esses instrumentos tecnológicos promovam uma ascensão da produção literária indígena, não vendo esses usos como a aceitação de uma passividade, mas usando este meio para expressar-se ainda mais e denunciar a violência, assim como fala Peres (2018).

15 http://ggrauna.blogspot.com/ - blog da escritora indígena Graça Graúna;

16 http://www.elianepotiguara.org.br/home.html#.XAUoO2hKhPY - site da escritora indígena Eliane Potiguara 17 http://danielmunduruku.blogspot.com/p/daniel-munduruku.html - blog do escritor indígena Daniel Munduruku

Do mesmo modo, Graúna (2013) diz que:

[...] ainda que o(a) indígena more numa cidade grande, use relógio e jeans, ou se comunique por um celular [...], ainda que nos deparemos com o indígena nos caminhos da internet, em plena construção de aldeias (aparentemente) virtuais; mesmo assim, a indianidade permanece, por que o índio e/ou a índia, onde quer que vá, leva dentro de si a aldeia (GRAÚNA, 2013, p. 59).

A globalização tecnológica não anula a memória, a ancestralidade, nem a identidade indígena18, ao contrário, dá visibilidade àquilo que o indígena produz. Pensando a globalização tecnológica em relação com a cultura indígena, concordo com Laraia quando em Cultura: um conceito antropológico (2001, p. 24) diz que “o homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridas pelas [...] gerações que o antecederam”.

Sendo herdeiro de memórias dos seus antepassados e fincado em um conhecimento ancestral, a cultura indígena jamais se perde, visto que foi um processo acumulado durante muito tempo. Herdar um conhecimento entre os povos indígenas é manter uma relíquia guardada e solidificada, no qual gerações futuras terão acesso e conhecerão aquilo que seus antepassados conheceram, e esse conhecimento, com o passar dos tempos, vai sendo atualizado. Em outra perspectiva um tanto parecida com a proposta de Laraia, Terry Eagleton em A ideia de cultura (2003) diz que “se cultura significa a procura ativa de crescimento natural, a palavra sugere, então, uma dialética entre o artificial e o natural, aquilo que fazemos ao mundo e aquilo que o mundo nos faz (EAGLETON, 2000, p. 13). Nessa perspectiva, cultura é aquilo que nos faz sujeitos no mundo, que vai nos marcando no decorrer de nossa existência e tornando-nos herdeiros do que nos antecedeu, como menciona Laraia. A cultura enquanto agente de formação da nossa experiência de mundo é também formadora de identidade.

A literatura indígena propõe essas novas identidades que são abordadas por Hall (2006), sem perder-se no caminho, na cultura. Desse modo, a literatura indígena é composta pelas culturas oral e escrita, porém, ambas mantem relações recíprocas, visto que não podemos dissociar uma cultura da outra.

Podemos pensar as literaturas indígenas como literaturas de entre lugares, carregadas de narrativas diversas que une o texto oral e o escrito, promovendo uniões identitárias e culturais, todavia:

Compostas em um entre lugar cultural de enfrentamento e intercâmbio, as textualidades indígenas revelam seu caráter híbrido, estando não só vinculadas

à grafia pictórica ou táctil, mas também à tradição oral e a elementos de performance. Assim, é necessário valorizar sua multimodalidade discursiva, sua narração e narrativa, e os contextos de sua produção e recepção (THIÉL; QUIRINO, 2011, p. 6634).

Pensar as literaturas indígenas como detentoras de elementos de performance é levar em consideração que essas literaturas são resultado de “um acontecimento oral e gestual” (ZUMTHOR, 2014, p. 41), ou seja, a voz e o gesto imbrincados resultam nas literaturas indígenas, por meio da palavra e da imagem. A performatividade dessas literaturas solidifica- se quando além da voz e da palavra o texto literário é acompanhando pela imagem, pelos grafismos, desenhados pelos próprios indígenas, não de formas soltas, mas, em total relação/sintonia com o texto e o contexto.

Sendo assim, as literaturas indígenas, resultadas da ancestralidade e da memória, da oralidade até a escrita preservam os saberes e características dos seus povos. Sendo assim, as vozes ancestrais e os saberes “surgem no texto indígena não apenas na transposição do saber oral para o impresso, mas de modo criativo, reatualizado” (PERES, 2018, p. 115). Essa reatualização não anula a sabedoria ancestral indígena, ao contrário, enuncia agora também a partir de um olhar contemporâneo.

Com isso, o escritor indígena fala e escreve a partir de seus retornos a memória e a ancestralidade do seu povo, como também fala da sua relação/observação/vivência com os sujeitos da sociedade no geral, para problematizar questões diversas. Assim,

A literatura escrita indígena vai além da publicação de livros com a temática indígena. Ela contém a possibilidade de autorrepresentação de povos que por vezes foram mantidos em categoria secundária no panorama político e cultural nacional (FRANCA; SILVEIRA, 2014, p.72).

Os textos produzidos pelos escritores indígenas apresentam, então, sujeitos que foram e são marginalizados na sociedade, como uma forma de problematizar que compactuam da mesma dor, da mesma exploração e dos assujeitamentos, mas que não os aceitam. Desse modo, as literaturas indígenas além de possuírem características ancestrais e memoriais, são, também, literaturas de militância pelos seus e pelos outros, pois:

A tradição indígena permeia, influencia diretamente a escrita contemporânea realizada desde os indígenas revelando que, diferente do sujeito moderno, o homem não se dissocia de seu povo, de sua cultura, de sua ancestralidade, mas vê na escrita a condição de possibilidade para promovê-la estética e politicamente (PERES, 2018, p. 116).

O escritor indígena ao passo que escreve sobre si e sobre o outro – sem estereotipá-lo – está realizando um ato político, promovendo, assim, uma escrita que valida sujeitos e sujeitas que foram/são menosprezados e excluídos da/na sociedade e na literatura. O escritor indígena é também contemporâneo, pois percebe o seu tempo, mas também faz retornos ao passado e, de tal maneira,

O escritor contemporâneo parece estar motivado por uma grande urgência em se relacionar com a realidade histórica, estando consciente, entretanto, da impossibilidade de captá-la na sua especificidade atual, em seu presente (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 10).

Assim, nos textos literários, os escritores indígenas “[...] 2) transitam por tradições tribais e ocidentais; 3) produzem obras destinadas às suas próprias comunidades tribais, às comunidades de parentes (outras etnias) e ao leitor não índio” (THIÉL, 2012, p. 63). Ou seja, apresentam seus espaços, suas culturas, bem como, a visão da cidade, produzindo assim, obras para o público indígena e para o não indígena também, mas, acima de tudo, preservam a memória e a ancestralidade indígena. Com isso, as textualidades indígenas são multimodais, pois são resultado do imbricamento entre oralidade, escrita e imagem.

Os espaços das narrativas indígenas são em sua maioria tribais, ou seja, acontecem na comunidade indígena, nos rituais, nas contações de histórias, mas já vemos bastante a imagem da cidade grande apresentado na narrativa indígena. Inclusive:

Muitos dos textos indígenas contemporâneos se dirigem, sem disfarces, aos não índios. Há autores que, inclusive, fazem questão de afirmar que seus textos são orientados para a educação dos não índios. São textos que trazem a história de suas etnias, versam sobre a arte de criar e narrar histórias. São, em suma, uma contribuição para a cultura literária brasileira (THIÉL, 2012, p. 63).

Dessa maneira, o texto literário produzido pelo escritor indígena é carregado de um lugar de fala próprio e enuncia vozes diversas de diferentes comunidades brasileiras. Tratam-se de literaturas que nasceram na oralidade e chegando até a escrita e a imagem propõem novos olhares para se perceber o indígena na sociedade.

A voz performática indígena ecoa na esperança de dias melhores, dias em que o escritor e a escritora indígena possam apresentar suas narrativas para o público indígena e branco, com o intuito de apresentar o mundo indígena, de questionar imagens e pressupostos anteriores e de cantar o canto da união e da paz.