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A perpetuação da cultura do estupro pela via estatal: a culpabilização da vítima nos casos de abuso sexual de meninas

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

AIMÊ FONSECA PEIXOTO

A PERPETUAÇÃO DA CULTURA DO ESTUPRO PELA VIA ESTATAL: A

CULPABILIZAÇÃO DA VÍTIMA NOS CASOS DE ABUSO SEXUAL DE MENINAS

NATAL/ RN 2017

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A PERPETUAÇÃO DA CULTURA DO ESTUPRO PELA VIA ESTATAL: A

CULPABILIZAÇÃO DA VÍTIMA NOS CASOS DE ABUSO SEXUAL DE MENINAS

Monografia apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como pré-requisito para obtenção do título de bacharela em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientador: Prof. Lucas Wallace Ferreira dos Santos

NATAL/ RN 2017

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Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA Peixoto, Aimê Fonseca.

A perpetuação da cultura do estupro pela via estatal: a culpabilização da vítima nos casos de abuso sexual de meninas / Aimê Fonseca Peixoto. - Natal, RN, 2017.

66f.

Orientador: Prof. Lucas Wallace Ferreira dos Santos.

Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Curso de Graduação em Direito.

1. Cultura do estupro – Monografia. 2. Abuso sexual de meninas – Monografia. 3. Culpabilização da vítima – Monografia. 4. Estado capitalista – Monografia. I. Santos, Lucas Wallace Ferreira dos. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

RN/BS/CCSA CDU 343.54-055.25

1. Abuso sexual - Crianças e adolescentes – Monografia. 2. Relações de gênero - Monografia. 3. Culpabilização - Monografia. 4. Estado - Monografia. I. Santos, Lucas Wallace Ferreira dos. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

RN/BS/CCSA CDU 343.54-055.25

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A todas as meninas que, muito mais do que ser princesas, sonham em ser tudo o que quiserem ser, inclusive, ser livres em seus corpos, suas mentes e seus corações.

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Agradeço a mainha e painho pelo apoio, pelo incentivo à minha superação pessoal e pelas inúmeras batalhas que travaram para que eu pudesse chegar até aqui. Agradeço a eles, especialmente, por terem me ensinado um conceito de amor e um senso de justiça que carregarei por toda a vida, bem como por sempre terem me lembrado que, para muitos, a vida não é fácil, mas estamos aqui para estufar o peito, erguer o punho e lutar pelos nossos direitos, pois eles nunca nos foram dados de mão beijada.

Agradeço a toda a minha família, que foi fonte de muitas histórias de inspiração para que eu pudesse seguir adiante sempre em busca do melhor.

Ao meu namorado, Cássio, agradeço pela paciência sem tamanho que teve e está tendo comigo em todo esse processo desgastante. Seu amor e sua presença ao meu lado tem sido fundamental, seja para revisar o texto, encher minha bola, atentar para as minhas horas de sono, me trazer comida ou mesmo para olhar bem nos meus olhos e dizer “VDC”. Sem esse sagitariano, eu também teria conseguido, mas não teria sido com tanto amor em forma de zoeira. A Juliana, Carol, Camila, Laís e Rogério, toda minha gratidão pelas companhias nos momentos em que esse curso foi mais difícil do que nunca de aguentar, os quais se tornaram tão mais leves e cômicos com essa carreta do amor. Elas (sim, elAs!) são as responsáveis pelos melhores momentos dessa graduação.

Gratidão também às demais amigas e aos demais amigos que fiz na universidade, não só no curso de Direito. Muitas delas a quem estou devendo algumas saídas em agradecimento pela paciência que demonstraram após tantos furos em virtude dessa reta final de curso. Cada uma delas e cada um deles tem sua parcela de contribuição para quem eu sou hoje.

A toda a juventude do Projeto Popular, sou eternamente grata pelos aprendizados que eu jamais teria na faculdade. Foi com as amigas e os amigos do Levante Popular da Juventude que eu aprendi sobre gênero, luta de classes, opressões e, principalmente, astrologia, conhecimento de grande valor para o entendimento de todo tipo de conjuntura. Com certeza, o movimento social renovou toda a minha mística e mudou meus rumos nessa caminhada, tendo sido essencial para que eu pudesse me encontrar na luta por um Direito menos elitizado e cada vez mais atento aos anseios populares.

Agradeço a todas e todos as profissionais (desde as defensoras e os defensores, passando pelas assessoras e assessores, até as terceirizadas e terceirizados), estagiários e estagiárias, assistidas e assistidos (principalmente estes últimos) da Defensoria Pública da União pelas

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Ao meu orientador, Lucas, agradeço por ter se convidado para essa tarefa, por ter lutado para nela permanecer de toda forma, por ter chorado as pitangas comigo no árduo processo da pesquisa, por sido tão compreensivo e constantemente preocupado com minha saúde mental. As melhores reuniões de orientação sempre começavam com alguma choradeira, tinham alguns encaminhamentos, faziam um arrodeio grande (resultado do diálogo entre um pisciano e uma quase pisciana), encaminhavam mais algumas coisas e terminavam como um aliviante VDC (grande filosofia de vida). Quem entrava naquela sala da supervisão podia não acreditar que isso aconteceria, mas chegamos aqui!

Por fim, (para não dizer que esqueci de ninguém) a todas e a todos que contribuíram para minha formação de alguma forma, direta ou indireta, meu muitíssimo obrigada!

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Predestinada

Fui estuprada essa manhã E também noite passada Essa tarde não foi diferente Também fui violentada.

Pelo meu pai, meu avô

Meu namorado, um falso amigo Um professor, meu padrasto. Um homem qualquer

Sou eu a menina que sonha A senhora carente

A criança inocente A moradora de rua A meretriz indecente

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Ao ar livre e em prisões.

Em chão frio, em camas quentes De todas as formas e posições.

Tive minhas roupas rasgadas Minha pele arranhada

As pernas afastadas

A alma dilacerada em uma plena escuridão.

Eu agonizava e ele sorria

Eu gritava de dor, e ele sentia prazer.

Quem me estuprou tinha tesão pelo meu sofrer.

Fui rebaixada ao nada E depois de abusada Usada

Violentada Maltratada Fui abandonada.

Bem além de lesões corporais O que já é grave o suficiente Eu fui invadida

E não me sentia gente.

Eu disse que não queria. E ele me disse grosseiramente "VOCÊ QUER"

E fui explorada outra vez. Quem sou eu?

Eu sou mulher!

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O presente trabalho tem como escopo desconstruir a culpabilização das meninas vítimas de abuso sexual a qual ocorre no âmbito das atividades do Estado que envolvem a aplicação do Direito. Para tanto, foi utilizado o método materialista dialético, a partir de uma perspectiva marxista estruturalista, encabeçada por Louis Althusser, e feminista socialista, destacando-se as obras de Heleieth Saffioti. Valendo-se de uma metodologia documental, pela análise de legislação, e referencial bibliográfica, a pesquisa buscou demonstrar a estrutura envolvida no processo de responsabilização da menina vítima de abuso sexual quando tal processo acontece através da aplicação do Direito enquanto via de atuação estatal. O estudo tratou das relações de gênero, definidas teoricamente a partir das lutas feministas, e da crítica ao adultocentrismo, abordando o tratamento sócio-jurídico de crianças e adolescentes, bem como tratando dos efeitos da cultura do estupro nesse contexto. Assim, foram apresentados os âmbitos de contradições sociais que acabam por trazer sofrimento em dobro a meninas pela condição de gênero e de vulnerabilidade destas, diante da lógica de dominação e exploração de um ser pelo outro. Por fim, esta monografia conclui que, através de todo seu aparato, o Aparelho Ideológico de Estado jurídico, segundo o entendimento althusseriano, serve à manutenção do status quo e reproduz a ideologia dominante, sendo o patriarcado colaborador de tal ideologia. Assim, não é possível vislumbrar a superação das desigualdades sociais abordadas enquanto a sociedade se guiar pelos padrões de um sistema competitivo como o capitalismo.

Palavras-chave: Cultura do estupro. Abuso sexual de meninas. Culpabilização da vítima.

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This study aims to desconstruct the culpabilization of girls victims of sexual abuse, which occurs within state activities that involve the application of law. For this purpose, the dialectical materialism method was used from a marxist structuralist approach, spearheaded by Louis Althusser. A socialist feminism approach was also employed, with a focus on the works by Heleith Saffioti. By using a review and analysis on the existing legislation and specialized literature about the subject, this research sought to demonstrate the structure involved in the process of responsabilization of girls victims of sexual abuse when this happens through the application of law as a means of state activity. This way, the relevant social contradictions which bring double suffering to girls because of their gender condition and vulnerability were presented, given the logic of domination and exploitation of one being by the other. Finally, this study concludes that, through all its apparatus, the Ideological Apparatus of the Juridical State, according to the Althusserian understanding, contributed to the maintenance of the status quo and reproduces the dominant ideology, being the patriarchy a collaborator to such ideology. Thus, it is not possible to glimpse the overcoming of the social inequalities here addressed as long as our society is guided by the standards of a competitive system such as the capitalism.

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1 INTRODUÇÃO ... 13 2 A VIOLÊNCIA SEXUAL SOB A ANÁLISE DE GÊNERO ... 16

2.1 O CONCEITO DE GÊNERO DEFINIDO A PARTIR DAS LUTAS FEMINISTAS .. 16 2.2 A VIOLÊNCIA SEXUAL COMO VIOLÊNCIA DE GÊNERO E CONTRA A MULHER ... 20 2.3 A CULPABILIZAÇÃO DA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA SEXUAL EM DECORRÊNCIA DA CULTURA DO ESTUPRO ... 25

3 O TRATAMENTO SÓCIO-JURÍDICO DISPENSADO A CRIANÇAS E ADOLESCENTES ... 30

3.1 TRATAMENTO LEGAL DISPENSADO A CRIANÇAS E ADOLESCENTES ANTES E DEPOIS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (LEI N° 8.069/1990) ... 30 3.2 A REALIDADE DO ABUSO SEXUAL COMO VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA MENINAS ... 35 3.3 A CULPABILIZAÇÃO DA MENINA VÍTIMA DE ABUSO SEXUAL POR SUA CONDIÇÃO DE VULNERABILIDADE E DE GÊNERO ... 39

4 O ESTADO ENQUANTO PERPETUADOR DA CULTURA DE ESTUPRO NO CONTEXTO DE OPRESSÃO DE MENINAS ABUSADAS SEXUALMENTE ... 45

4.1 UMA PERSPECTIVA MARXISTA: A IDEIA DE APARELHOS IDEOLÓGICOS DE ESTADO, DE LOUIS ALTHUSSER, PARA REPRODUÇÃO DA LÓGICA DE DOMINAÇÃO OPRESSORA ... 45 4.2 O PATRIARCADO INTEGRANDO A IDEOLOGIA DOMINANTE ... 49 4.3 O APARATO JURÍDICO ESTATAL COMO INSTRUMENTO PARA A REPRODUÇÃO DA IDEOLOGIA DOMINANTE E AGENTE DE CULPABILIZAÇÃO DE MENINAS VÍTIMAS DE ABUSO SEXUAL ... 54

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 58 REFERÊNCIAS ... 61

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1 INTRODUÇÃO

Apesar dos recentes avanços legislativos na proteção dos direitos das mulheres, bem como das crianças e adolescentes – conquistados à base de muito sangue, suor e lágrimas nas lutas populares –, as desigualdades sociais ainda existem e persistem, se expressando, majoritariamente, através da violência.

Partindo da intersecção desses dois grupos da sociedade, temos o caso das crianças e adolescentes do sexo feminino, onde as mesmas tanto sofrem com a violência de gênero, como com a violência praticada por adultos. Assim, surge o abuso sexual de meninas como resultante dessas duas formas violentas de expressão das contradições sociais, estando acompanhado da constante culpabilização da vítima, por sua condição de subordinação.

Nesse contexto, a presente monografia parte da problematização quanto à referida culpabilização partindo dos meios de atuação do Estado, em prejuízo à liberdade e à integridade moral e mental de meninas vítimas de abuso sexual. Sendo observada, no âmbito da sociedade em geral, a responsabilização de quem é alvo da violência estrutural pelo próprio sofrimento, quais relações estão envolvidas para que isso se aplique ao Direito, enquanto via de atuação estatal, quando diante de situações de meninas abusadas sexualmente?

Diante de uma sociedade construída de modo complexo e envolvendo diversos sistemas onde imperam a dominação e a exploração, foi inicialmente suposto que a relação entre todos estes explica o fenômeno a ser estudado. Isso porque entende-se que todos os referidos sistemas existem para manter o status quo e as ferramentas estatais, por sua vez, também operam nesse intuito, visto que são criações das classes hegemônicas.

Dessa forma, a pesquisa adentra em um campo interdisciplinar, envolvendo uma visão sociológica, histórica e antropológica, posto que o tema a ser debatido percorre várias áreas do conhecimento além da jurídica. Inclusive, a importância deste estudo no universo jurídico é deveras significante, uma vez que os fenômenos sociais também são da alçada do Direito, não sendo à toa a existência do brocardo o qual enuncia que está o Direito onde está a sociedade.

Então, a relevância da temática em questão é denotada pela necessidade de fazer os pesquisadores da ciência jurídica e os operadores do Direito atentarem para o contexto de opressões vivenciados por meninas abusadas sexualmente.

É de se ressaltar que o objetivo geral desta monografia é problematizar a culpabilização de crianças e adolescentes enquadradas no gênero feminino pelas agressões sofridas, havendo essa desconstrução, especificamente, no que tange ao ambiente das instituições as quais operam e aplicam as normativas jurídicas.

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Além disso, são objetivos específicos da pesquisa, os seguintes: i) analisar os motivos pelos quais a violência sexual é considerada como violência de gênero e o papel da cultura do estupro nesse contexto; ii) investigar a evolução histórica da proteção formal a crianças e adolescentes em contraponto à permanência das violações dos direitos dessa população, especificamente do direito ao desenvolvimento sexual saudável; iii) demonstrar como estereótipos e discriminações, aliados ao despreparo de profissionais que trabalham com a suposta aplicação da justiça resulta na revitimização de infantes abusadas sexualmente, causando a culpabilização da vítima; iv) fazer a reflexão sociológica de como o Estado, especialmente através do aparato jurisdicional, atua na perpetuação da cultura do estupro.

Portanto, o presente trabalho, entendendo os fenômenos sociais dentro de um contexto amplo em que um influencia o outro, adota o método materialista dialético. Para tanto, será empregada a metodologia documental, a partir de análise da legislação, e referencial bibliográfica, este tendo caráter interdisciplinar e sendo composto por livros, artigos científicos, dissertações e outras monografias.

Quanto à fundamentação teórica para tratar de gênero, será adotada uma perspectiva feminista socialista, figurando Saffioti como autora principal. Já no tocante ao tratamento do Estado, o ponto de partida se dará por um viés marxista estruturalista, tendo Althusser como autor principal.

O trabalho segue estruturado em três capítulos, estes tratando de aspectos primordiais acerca da problemática que constitui o tema abordado, sendo feito um apanhado da conjuntura que explica a persistência da violência aqui analisada como central.

O primeiro capítulo se encarregará de fazer uma breve explanação sobre o conceito de gênero e a importância dos movimentos feministas nessa elaboração conceitual e no questionamento da ideia de dominação masculina pela análise dos diferentes papeis historicamente atribuídos a homens e a mulheres. Além disso, será tratado o papel da cultura do estupro e da responsabilização da vítima mulher, estando tal cultura inserida no contexto da relação de poder envolvida pelas questões de gênero.

No segundo capítulo, mais adiante, será analisado o tratamento sócio-jurídico dispensado a crianças e adolescentes, sendo feito o recorte de gênero. Nesse sentido, serão destacadas as evoluções no âmbito formal em contraposição à realidade de abuso sexual e de culpabilização de meninas, expondo a contradição entre as disposições normativas formais e a forma como estas se aplicam na prática.

Por fim, o terceiro capítulo fará uma abordagem da dominação do homem adulto sobre a criança/adolescente do sexo feminino, baseada na teoria marxista, situando tal relação no

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contexto de encadeamento entre todas as opressões, que visam a beneficiar as classes sociais dominantes. Assim, será analisado como a imposição dos papeis de gênero ainda na infância resultam no processo de culpar a menina pelo abuso sexual do qual ela foi vítima, ressaltando a contribuição do Aparelho Ideológico de Estado jurídico, através da disseminação de uma ideologia hegemônica, para promover a referida culpabilização.

A partir das conclusões da pesquisa em apreço, pretende-se colaborar com os estudos interdisciplinares sobre a temática, envolvendo o Direito de modo a tornar cada vez mais clara, para os profissionais da área, a relação do todo nas situações de abuso sexual analisadas. Assim, sendo observado o todo, há mais chances de que os rumos da sociedade caminhem para a efetiva liberdade de meninas e mulheres e para a garantia de uma vida digna a todas elas.

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2 A VIOLÊNCIA SEXUAL SOB A ANÁLISE DE GÊNERO

Apesar das importantes conquistas de direitos através das lutas encabeçadas pelos feminismos e pelos movimentos de mulheres, a igualdade entre os gêneros ainda não é uma realidade fática na nossa sociedade. A violência sexual, enquanto violência de gênero vitimadora do sexo feminino na grande maioria dos casos, denota bem o quanto ainda precisamos avançar no sentido de alcançarmos a efetiva igualdade entre homens e mulheres.

Além do notável papel na conquista de garantias legais, os movimentos feministas tiveram e têm sua contribuição no campo teórico, abordando de maneira científica as construções sociais que envolvem as relações de gênero e evidenciando que estas se tratam de relações de poder, onde o masculino se sobrepõe ao feminino nos âmbitos privados e públicos da sociedade.

Assim, o primeiro capítulo da presente monografia se encarregará de fazer uma abordagem geral do contexto em que se definiu o conceito de gênero, no intuito de investigar e fazer entender o porquê de ser considerada a violência sexual como violência de gênero.

Da mesma forma, serão analisadas as formas como os fatos sociais tratados implicam na dupla violação da mulher ao tratarem-na como culpada da agressão sexual sofrida por ela, diante do contexto de cultura do estupro que vivenciamos, a qual reproduz a naturalização do comportamento agressivo por parte do homem como forma de culpabilizar a vítima, atingido até mesmo os julgamentos ditos imparciais das instâncias jurídicas nos casos de violência sexual.

Portanto, se buscará entender os valores sociais dominantes para explicar a existência da violência sexual contra as mulheres.

2.1 O CONCEITO DE GÊNERO DEFINIDO A PARTIR DAS LUTAS FEMINISTAS

Até o século XIX, era comum crenças religiosas ou filosóficas se valerem do discurso científico predominante baseado no determinismo para justificar a inferioridade da mulher, de modo que tal condição era atribuída à diferenciação biológica entre os sexos1. Uma das formas

da manifestação de tal raciocínio era o de que as mulheres seriam inferiores aos homens pelo

1 MASCARENHAS, Jasminne Fernandes. O estupro como violência de gênero: desmistificando o “in dubio pro stereotipo” a partir dos casos de estupros coletivos praticados contra mulheres em natal/RN. Monografia (Graduação em Direito) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015. p. 14-15.

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fato de que aquelas, em geral, detêm menos força física, de modo que estariam elas inabilitadas a exercerem atividades que demandassem maior esforço físico.

Acontece que, seguindo o pensamento de Saffioti2 ao recorrer à história, é de se observar que, nos tempos de guerras, quando os homens eram enviados ao combate, eram as mulheres as responsáveis pelas funções antes assumidas pelos elementos masculinos. Logo, resta evidenciada a capacidade feminina para desempenhar qualquer atividade entendida como exclusivamente masculina.

Com inspiração nesse tipo de constatação e nos questionamentos dele resultantes, o termo gênero, ao final do século XX, foi utilizado pelas feministas da época como forma de evidenciar as impropriedades das teorias até então existentes para explicar as desigualdades entre mulheres e homens, reivindicando-se um campo de definição no meio das análises teóricas3.

Tendo em vista o papel fundamental do movimento feminista na elaboração do conceito de gênero, se faz necessária a menção à conjuntura do desenvolvimento do feminismo, visto que o termo a ser aqui analisado nasce e ganha destaque a partir das questões levantadas nas diversas lutas dessa militância por conquistas de direitos para as mulheres.

De início, ainda no século XIX, as mulheres se organizaram pelo ideal de “direitos iguais à cidadania”, considerando a igualdade entre os sexos, tendo desencadeado mobilizações feministas em vários países, principalmente em países da Europa e da América do Norte, as quais conseguiram romper com algumas das mais discrepantes desigualdades formais, em especial as referentes aos direitos ao voto, à propriedade e ao acesso à educação4.

No contexto brasileiro, tanto observou-se o processo de luta das mulheres auto organizadas por direitos quando estas clamaram pelo direito ao voto, este conquistado somente em 1932, como quando denunciaram as opressões sofridas pelas trabalhadoras na organização da “União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas”5.

2 SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. São Paulo: Editora Moderna, 1987. (Coleção Polêmica). p. 12. 3 SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical analyses. Tradução: Christine Rufino Debat e Maria Betània Ávila. Gender and the politics of history. New York. Columbia University Press. 1989. Disponível em:

<http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/185058/mod_resource/content/2/G%C3%AAnero-Joan%20Scott.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2017. p. 19.

4 PISCITELLI, Adriana. Re-criando a (categoria) mulher? In: ALGRANTI, Leila M. (Org.). A prática feminista e o conceito de gênero. Campinas: IFCH-Unicamp, 2002. Disponível em: <http://articulacaodemulheres.org.br/wp-content/uploads/2015/06/TC-2-PISCITELLI-Adriana-Re-criando-a-categoria-Mulher.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2017. p. 2.

5 PINTO, Lucas Alencar; BRAGA, Ana Elisa Linhares de Meneses. Mulheres em luta por direitos: rompendo com o patriarcado. Revista Direito & Dialogicidade, Crato, v. 6, n.1, jan./jun.2015. Disponível em: <http://periodicos.urca.br/ojs/index.php/DirDialog/article/viewFile/963/791>. Acesso em: 13 mar. 2017. p. 59.

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A partir da década de 1960, a problemática central do feminismo como um todo passou a ser a naturalização da subordinação da mulher, sendo investigadas as formas como se chegou a tal subordinação e como ela se mantém, além de concluir-se que esta resulta do modo como a mulher é construída socialmente6.

É importante destacar que, à época, o movimento feminista enfrentava, no âmbito brasileiro, uma conjuntura desfavorável ao desenvolvimento de movimentos libertários e de massas em decorrência da supressão do Estado Democrático de Direito pelo golpe militar de 1964, ocorrendo as manifestações de tal movimento praticamente na clandestinidade7.

Foi a partir dessa naturalização que se difundiu no imaginário social a ideia de que as diferenças entre os sexos, por serem biológicas, são imutáveis e inquestionáveis. Isso porque, ao se afirmar que as mulheres, a todo tempo e em todo lugar, ocuparam funções relacionadas ao ambiente doméstico8, são destacadas as características “naturais” dessas funções tidas como femininas, ao mesmo tempo em que são eliminadas as questões históricas de diferenciações envolvidas9.

Nesse contexto das discussões do feminismo em torno da situação de subordinação da mulher, temos que, ao final do século XX, as militantes feministas passaram a se preocupar com a definição de um campo de estudos para tal aspecto social, insistindo em demonstrar o quão inadequadas e insatisfatórias eram as teorias as quais versavam acerca das explicações para as persistentes desigualdades entre os sexos10. Assim, o gênero passa a ser inserido como categoria de análise, evidenciando que as diferenças entre os papeis desempenhados por homens e os desempenhados por mulheres são resultado de construções sociais históricas ao questionar a ideologia de superioridade masculina biológica.

6 PISCITELLI, Adriana. Re-criando a (categoria) mulher? In: ALGRANTI, Leila M. (Org.). A prática feminista e o conceito de gênero. Campinas: IFCH-Unicamp, 2002. Disponível em: <http://articulacaodemulheres.org.br/wp-content/uploads/2015/06/TC-2-PISCITELLI-Adriana-Re-criando-a-categoria-Mulher.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2017. p. 2.

7 PINTO, Lucas Alencar; BRAGA, Ana Elisa Linhares de Meneses. Mulheres em luta por direitos: rompendo com o patriarcado. Revista Direito & Dialogicidade, Crato, v. 6, n.1, jan./jun.2015. Disponível em: <http://periodicos.urca.br/ojs/index.php/DirDialog/article/viewFile/963/791>. Acesso em: 13 mar. 2017. p. 59. 8 Essa associação do ambiente doméstico ao papel da mulher era explicada, segundo Beauvoir, pelas teorias baseadas nas diferenças biológicas entre os sexos tomando-se como premissa os dois traços que, de acordo com a análise das suas funções reprodutivas, caracterizam a mulher, quais sejam: ter domínio sobre o mundo menos extenso que o do homem; ser estreitamente submetida à espécie, no sentido de estar ligada à procriação e cuidados para a perpetuação da espécie. (BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: 1. Fatos e mitos. Tradução: Sérgio Milliet. 4ª ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970. Título do original: Le Deuxiême Sexe: Les Faits et Les Mythes. Disponível em: <http://brasil.indymedia.org/media/2008/01/409660.pdf>. Acesso em: 14 mar. 2017. p. 73.).

9 SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. São Paulo: Editora Moderna, 1987. (Coleção Polêmica). p. 11. 10 SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical analyses. Tradução: Christine Rufino Debat e Maria Betània Ávila. Gender and the politics of history. New York. Columbia University Press. 1989. Disponível em:

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Buscando conceituar gênero, Saffioti e Almeida11 trazem a abordagem de uma relação social que “remete os indivíduos a uma categoria previamente constituída. Coloca em relação um indivíduo com outros, determina se ele é pertencente a uma categoria e o posiciona face a outros pertencentes a outra categoria”.

Desse modo, os seres humanos nascem, rigorosamente, machos ou fêmeas e são condicionados, desde crianças, a se enquadrarem em uma determinada categoria de acordo com suas diferenciações biológicas, estas servindo apenas como parâmetro para as diferenças de gênero. Cada uma dessas categorias envolvem certos padrões de comportamento, os quais são impostos pelas instituições sociais a todas as pessoas já devidamente enquadradas no respectivo gênero.

Uma outra definição de gênero importante de trazer à baila é a de Joan Scott12, para quem aquele se constitui como um componente das relações sociais calcado nas diferenças características de cada sexo, sendo ainda o gênero “uma forma primeira de significar as relações de poder”. Ou seja, as relações de gênero são permeadas pelo poder, de modo a se processar por uma dicotomia e uma hierarquização em que se opõem as qualidades masculinas às femininas, considerando-se estas como inferiores. Assim, segundo Andrade13, o polo ativo é

representado pelo homem-racional-ativo-forte-guerreiro-viril-trabalhador-público, enquanto que o polo passivo é representado pela mulher-emocional-passiva-fraca-impotente-pacífica-recatada-doméstica.

É nesse contexto que as meninas aprendem, desde os primeiros anos de vida, que precisarão saber cuidar da casa e das crianças, tomando uma postura de sempre servir ao pai, aos irmãos e ao marido. Enquanto isso, os meninos são ensinados a tomar decisões e a comandar, inclusive as mulheres e filhas.

Como influenciador das relações de gênero enquanto relações de poder, está o patriarcado, inspirado pela formação familiar de pai, mãe e filhos (estando o pai em posição superior aos demais membros) e que, além da mais pura opressão do homem sobre a mulher,

11 SAFFIOTI, Heleieth I. B.; ALMEIDA, Suely Souza. Violência de Gênero: Poder e Impotência. Rio de Janeiro: Revinter, 1995. p. 20.

12 SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical analyses. Tradução: Christine Rufino Debat e Maria Betània Ávila. Gender and the politics of history. New York. Columbia University Press. 1989. Disponível em:

<http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/185058/mod_resource/content/2/G%C3%AAnero-Joan%20Scott.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2017. p. 21.

13 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sexo e gênero: a mulher e o feminino na criminologia e no sistema de Justiça Criminal. Boletim IBCCRIM. São Paulo: v. 11, n. 137, abr. 2004, p. 01-02, apud ROSSI, Giovana. Os estereótipos de gênero e o mito da imparcialidade jurídica: Análise do discurso judicial no crime de estupro. Monografia (Graduação em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015. p. 12.

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atinge o significativo nível relativo ao poder político, de forma a estarem figuras masculinas responsáveis pelas grandes decisões as quais afetam a vida de um povo14.

É justamente nesses aspectos que se denota a imposição de poder que deriva das relações de gênero. Mais do que somente uma categorização apoiadas em determinações biológicas, elas servem a uma ideologia de dominação masculina, segundo a qual certos seres humanos teriam legitimidade para se sobreporem a outros.

Nesse sentido, como bem lembra Lima15, de extrema importância tem sido a teorização sobre gênero, uma vez que agora busca-se as causas para as desigualdades jurídicas e morais entre homens e mulheres, bem como as formas de dirimi-las. Ora, se já é conhecida a origem sociocultural para as ideias de subordinação feminina, conclui-se que essa realidade pode, pela mesma via, ser modificada, visto não ser derivada de condições imutáveis.

Diante do exposto a respeito do que vem a ser gênero, uma nova questão passa a ser vista como resultado das relações de poder até então tratadas e que será tratada a seguir: a violência de gênero.

2.2 A VIOLÊNCIA SEXUAL COMO VIOLÊNCIA DE GÊNERO E CONTRA A MULHER

Para tratar de violência de gênero, inicialmente cabe fazer algumas considerações abordando o próprio conceito de violência, um termo que, apesar de muito frequente em nosso cotidiano, não nos traz tanta atenção para sua definição. Contudo, tanto autoras e autores como até mesmo organizações internacionais, se preocuparam em elaborar uma definição genérica do que se entende por violência.

Nesse sentido, segundo Teles16, violência se refere ao uso da força, seja física, psicológica ou intelectual, para obrigar uma outra pessoa a fazer algo que não seja de sua vontade ou mesmo para impedi-la de fazer algo que deseja, sendo uma forma de alguém submeter outrem à sua vontade e ao seu domínio.

Por outro lado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) traz a definição de violência como sendo “o uso de força física ou poder, em ameaça ou na prática, contra si próprio, outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade que resulte ou possa resultar em sofrimento, morte, dano psicológico, desenvolvimento prejudicado ou privação”, nas palavras de Dahlberg e

14 SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. São Paulo: Editora Moderna, 1987. (Coleção Polêmica). p. 47. 15 LIMA, Rebeca Napoleão de Araújo; LIMA, Marina Torres Costa. O estupro como crime de gênero. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3734, 21 set. 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25354>. Acesso em: 19 mar. 2017.

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Krug17. Tais autoras ainda fazem a consideração de que a inclusão da palavra “poder” na conceituação em questão expande o conceito usual de violência de modo a incluir na mesma significação os atos resultantes de uma relação de poder, inclusive ameaças e intimidação.

Trazendo mais uma definição do que vem a ser violência, o entendimento de Chauí18 é no sentido de que se trata de uma realização das relações de força, seja em termos de classes sociais, seja em termos interpessoais. Desse modo, ela considera a violência sob dois ângulos, consistindo o primeiro em uma conversão dos diferentes em desiguais e da desigualdade em relação hierárquica com finalidade de dominação, exploração e opressão. Enquanto que o segundo ângulo se refere à ação a qual trata um ser humano como coisa, não como sujeito, impedindo ou anulando a fala de outrem através da inércia, da passividade e do silêncio.19

Já Saffioti destaca que a denominação da violência significando a ruptura de integridades deixa a desejar no aspecto científico, visto que, entendida dessa forma, a violência não encontra lugar ontológico por se situar a ruptura de integridades no âmbito da individualidade. Em virtude disso, a socióloga opta por utilizar o conceito por meio do qual se considera violência todo agenciamento capaz de violar os direitos humanos. Logo, para a autora, torna-se necessária uma releitura destes direitos de forma a contemplar as diferenças entre homens e mulheres, aspirando à igualdade social, já que, desde a Revolução Francesa, os direitos humanos foram pensados no masculino20.

Relacionando o conceito de violência especificamente às questões de gênero, observa-se que aquela faz referência a uma força social estruturante das relações interpessoais e sociais

17 DAHLBERG, Linda L.; KRUG, Etienne G.. Violência: um problema global de saúde pública. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro , v. 11 (supl.) p. 1163-1178, 2006 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232006000500007&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 25 mar. 2017.

18 CHAUÍ, Marilena. Participando do debate sobre mulher e violência. In: ZAHAR, Ana Cristina (Ed.). Perspectivas antropológicas da mulher – 4: sobre mulher e violência. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1985. p. 35.

19 A autora ainda acrescenta considerar a existência de diferença entre a relação de força e a de violência nos seguintes termos: “Consideramos haver diferença entre a relação de força e a de violência (ainda que esta seja uma realização particular daquela). A pura relação de força visa, em última instância, a aniquilar-se como relação pela destruição das partes. A violência, pelo contrário, visa a manter a relação mantendo as partes presentes uma para a outra, porém uma delas anulada em sua diferença e submetida à vontade e à ação da outra. A força deseja a morte ou a supressão imediata do outro. A violência deseja a sujeição consentida ou a supressão mediatizada pela vontade do outro que consente em ser suprimido na sua diferença. Assim, a violência perfeita é aquela que obtém a interiorização da vontade e da ação alheias pela vontade e ação da parte dominada, de modo a fazer com que a perda da autonomia não seja percebida nem reconhecida, mas submersa numa heteronímia que não se percebe como tal. Em outros termos, a violência perfeita é aquela que resulta em alienação, identificação da vontade e da ação de alguém com a vontade e a ação contrária que a dominam. Sob esse aspecto, podemos falar em sociedade violenta e em Estado violento, mas não é possível um poder violento, desde que entendamos o poder como exercício e reconhecimento efetivo de direitos e da prática política. O poder não exclui a luta. A violência, sim.” (CHAUÍ, Marilena. idem).

20 SAFFIOTI, Heleieth. Gênero patriarcado violência. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular: Fundação Perseu Abramo, 2015. p. 80-82.

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de modo geral, principalmente no contexto a ser aqui abordado, qual seja o de violência de gênero contra a mulher. Afinal, como bem resume Bandeira acerca das manifestações de violência nas relações de gênero, são “estruturantes, seja pelo fato de normatizar, modelar e regular as relações interpessoais entre homens e mulheres em nossa sociedade, seja pela forma indistinguível de poder que assumem, seja pela dimensão quantitativa que apresentam” 21.

As pesquisas sobre as formas de violência contra a mulher e de gênero tiveram início a partir da década de 1980, abordando o aspecto desse tipo de violência no espaço doméstico ou conjugal. Isso se deve justamente ao fato de ter se dado o desenvolvimento dessa área de pesquisa graças às visibilidades pública e política dedicadas a tal fenômeno, estas em função da atuação dos movimentos feministas, os quais mantinham a pauta em questão como identidade do feminismo nacional22.

A partir de então, a violência contra a mulher passou a ser denunciada como sendo de responsabilidade de toda a sociedade, devendo ser enfrentada pela implementação de políticas públicas e chegando a ser tratada como violação aos Direitos Humanos.

Dessa dedicação às pesquisas na área, surgiu a necessidade de conceituar violência de gênero, o que Saffioti e Almeida entendem como a violência que objetiva a preservação da organização social de gênero, a qual, conforme abordado anteriormente, se baseia na hierarquia e nas diferenciações atribuídas socialmente em função do sexo de forma a subalternizar o gênero feminino. Além disso, as autoras ainda caracterizam esse tipo de violência pela sua capacidade de ampliação e atualização na mesma medida em que a dominação masculina é ameaçada23.

Logo, a violência de gênero tem potencial para vitimar todas as mulheres, sem delimitar fronteiras entre classes sociais, segmentos culturais e religiosos ou grupos étnico-raciais. Por essa razão, Massula24 afirma que ela tem sido qualificada, metafórica e ironicamente, como perversamente democrática.

A Convenção de Belém do Pará trata a violência contra a mulher como sendo qualquer ato ou conduta praticada com base no gênero, a qual venha a causar morte, dano ou sofrimento

21 BANDEIRA, Lourdes Maria. Violência, gênero e poder: múltiplas faces. In: STEVENS, C. et al (Org.). Mulheres e violências: interseccionalidades. Brasília: Technopolitik, 2017. Disponível em: <https://media.wix.com/ugd/2ee9da_8fed7c3298fd46bc8553fef0f5b400ea.pdf>. Acesso em: 27 mar. 2017. p. 19-20.

22 BANDEIRA, Lourdes Maria. ibidem, p. 20.

23 SAFFIOTI, Heleieth I. B.; ALMEIDA, Suely Souza. Violência de Gênero: Poder e Impotência. Rio de Janeiro: Revinter, 1995. p. 20.

24 MASSULA, Letícia. A violência e o acesso das mulheres à justiça: o caminho das pedras ou as pedras do (no) caminho. Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/leticiapdf.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2017. p. 144-145.

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físico, sexual ou psicológico à mulher, seja na esfera pública ou na esfera privada, consistindo na violência praticada pela simples pertença ao gênero feminino25.

Diante desse contexto, a violência de gênero tem se generalizado como a expressão utilizada para fazer menção aos diversos atos violentos praticados contra mulheres, sendo eles caracterizados no âmbito doméstico ou mesmo a nível de participação social, em especial no tocante às relações de trabalho, como forma de impor a subordinação do gênero masculino ao feminino.

Ressalta-se que existe diferença entre violência contra mulheres e violência de gênero, apesar de, conforme Saffioti, um conceito se sobrepor parcialmente ao outro, sendo este último tipo o que consiste na categoria mais geral. Assim, é afirmado que a violência entre dois homens ou entre duas mulheres também pode figurar como violência de gênero. Contudo, o vetor mais amplamente difundido desta violência se dá no sentido homem contra mulher, uma vez que nos encontramos sob uma cultura de aspectos machistas26. Nesse sentido é que o termo violência

de gênero tem sido muito utilizado para fazer referência à violência contra mulheres.

Portanto, assim como o conceito de gênero, a violência de gênero é fruto do processo de socialização das pessoas, consistindo em uma manifestação da relação de poder construída historicamente de modo desigual entre homens e mulheres a partir da noção de superioridade daqueles (agressores) e da consequente inferioridade destas (vítimas)27.

De acordo com Teles28, existem diversas formas de manifestação da violência de gênero, dentre elas a violência sexual, a qual consiste no tipo em que a parte agressora obriga a outra a manter relação sexual contra sua vontade. Essa forma de manifestação ocorre, na grande maioria das vezes, pela prática de homens contra mulheres, conforme demonstrado pelos dados resultantes de estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2014, o qual revela que 88,5% das vítimas de estupro – espécie de violência sexual – são do sexo

25 BRASIL. Decreto n°1.973, de 1º de agosto de 1996. Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/D1973.htm>. Acesso em: 30 mar. 2017.

26 SAFFIOTI, Heleieth. Gênero patriarcado violência. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular: Fundação Perseu Abramo, 2015, p. 73-75.

27 ROSSI, Giovana. Os estereótipos de gênero e o mito da imparcialidade jurídica: Análise do discurso judicial no crime de estupro. Monografia (Graduação em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/134028/Monografia%20-%20Giovana%20Rossi%20-%20Vers%C3%A3o%20Reposit%C3%B3rio.pdf?sequence=1>. Acesso em: 19 mar. 2017. p. 12.

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feminino29. Ao mesmo passo, o percentual de agressores do sexo masculino nos casos desse crime chega a 96,69%.

Diante disso, constata-se que a violência sexual configura o caso extremo da ideologia de dominação masculina enraizada no machismo. Isso porque a manutenção dessa ideologia depende da ideia de controle da mulher pelo homem em todos os aspectos da sua vida, inclusive o sexual, âmbito onde historicamente há permissão para que o homem tenha máxima liberdade a despeito da castração da mulher em sua capacidade de sentir prazer como, quando e com quem bem entender.

Saffioti30 entende ser através do estupro, enquanto violência sexual, que o homem prova sua capacidade de submeter a mulher vitimada, vista pela ideologia dominante como aquela que não tem direito de desejar ou de escolher.

Ressalta-se o fato de que a submissão mencionada não é aplicada apenas com relação à mulher vitimada (vítima direta), sendo direcionada a qualquer outra pessoa enquadrada no gênero feminino, visto que a violência sexual, por se tratar de um tipo de violência de gênero, também paira sobre as cabeças de todas as mulheres pela simples razão de assim serem: mulheres.

Um outro aspecto que denota ainda mais esse caráter de submissão da vítima nos casos de violência sexual é a razão para o repúdio social a essa forma de violência. Isso porque, em consonância com Massula31, quando se agride sexualmente uma mulher não seria o corpo desta o bem atingido, e sim a propriedade de um outro homem, qual seja o pai, o irmão, o marido, o namorado ou o companheiro da vítima. Logo, o que se pune tão severamente pela sociedade nessas situações é a invasão de um “território” imaginário.

A referida autora acrescenta que talvez seja justamente por isso tão comuns, ao longo da história, os relatos de estupros em massa nos momentos de guerra e conflito, visto que se violentava os corpos das mulheres como forma de humilhar o exército adversário32.

Nada obstante, a punição social pela violência sexual não recai apenas sobre o agressor, atingindo também a vítima, que sofre em dobro com o ocorrido diante das acusações de ter ela própria concorrido para que fosse agredida. Sobre isso, se discorrerá adiante.

29 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA E APLICADA. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde (versão preliminar). Março de 2014. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdf>. Acesso em: 31 mar. 2017. p. 08.

30 SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. São Paulo: Editora Moderna, 1987. (Coleção Polêmica). p. 18. 31 MASSULA, Letícia. A violência e o acesso das mulheres à justiça: o caminho das pedras ou as pedras do (no) caminho. Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/leticiapdf.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2017. p. 145.

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2.3 A CULPABILIZAÇÃO DA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA SEXUAL EM DECORRÊNCIA DA CULTURA DO ESTUPRO

A violência sexual, por ser uma das formas de violência de gênero, também se apresenta como produto da socialização das pessoas enquanto processo, sendo imposta a ideia de naturalização dessa manifestação violenta através da disseminação dos papeis de gênero. Assim, ao gênero masculino é atribuída a predominância de um desejo sexual mais intenso, quando, em verdade, essa é a tentativa de naturalizar o desejo de dominação da mulher pelo homem.

Ao descrever o padrão normal, aceitável e, até mesmo, desejável de sexualidade heteronormativa imposto, Whisnant afirma que o macho deve ser persistente, agressivo, invulnerável, poderoso, rígido e dominante, ao contraponto de uma fêmea frequentemente relutante e passiva, a qual deseja o comportamento atribuído ao homem. Ainda é afirmado que a idealização do que seriam “homens de verdade” está relacionada à capacidade destes de terem acesso sexual a mulheres quando, onde e como eles bem entenderem, tendo eles direito a sexo (o que é colocado como ato de conquista masculina) e sendo as mulheres meros objetos ou bens sexuais dos homens33.

A desmitificação dessa naturalização pode ser percebida pela resumida explicação de Saffioti ao dizer que, por ser o homem detentor do poder nas suas relações com a mulher, apenas ele pode ser sujeito do desejo, restando a ela a posição de objeto do desejo masculino34.

Corroborando a referida naturalização do comportamento do agressor, a sociedade ainda impõe que a violência sofrida pela mulher teve culpa desta de alguma forma, prevalecendo-se no imaginário da maioria das pessoas a ideia de que, em algum momento, será descoberta a culpa da mulher violentada por ter sido vitimada, o que é denominado culpabilização da vítima.

O termo “culpabilização da vítima”, de acordo com Cardoso e Vieira35, foi utilizado

pela primeira vez em 1971, por William Ryan, em seu livro Blaming the Victim, para fazer

33 WHISNANT, Rebecca. Feminist Perspectives on Rape. The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Stanford, 2009, p. 18, tradução livre, apud FERNANDES, Leonísia Moura. Traduzir a linguagem do medo para superar a cultura de estupro. Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito, João Pessoa, n. 01, 2015. Disponível em: <http://www.ies.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/article/view/23590/13598>. Acesso em: 03 abr. 2017. p. 350.

34 SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. São Paulo: Editora Moderna, 1987. (Coleção Polêmica). p. 19. 35 CARDOSO, Isabela; VIEIRA, Viviane. O discurso de notícias sobre estupro em jornais eletrônicos: a mídia na culpabilização da vítima de violência sexual. EID&A – Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 7, dez. 2014. Disponível em: <http://periodicos.uesc.br/index.php/eidea/article/view/486/474>. Data de acesso: 04 fev. 2017. p. 70.

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referência à responsabilização dos negros e das negras dos Estados Unidos, vítimas de violento preconceito racial, pela estagnação socioeconômica e desestruturação familiar que apresentavam em geral. Recentemente o referido termo se consolidou no âmbito dos estudos de gênero acerca da mesma responsabilização sofrida pelas mulheres vítimas de agressões machistas.

Portanto, a culpabilização da vítima de violência sexual consiste justamente nessa responsabilização que recai sobre a mulher de modo a pretender justificar a violação por ela sofrida com base no seu comportamento ou nas suas vestes. Logo, atribui-se parcial ou totalmente a responsabilidade pelo ocorrido à vítima feminina, sendo relegado à mulher o papel de objeto, o qual deve estar se mostrando à disposição de qualquer homem que a desejar somente pelo fato de ela estar exercendo sua liberdade. A partir de tal julgamento, é imposta a culpa de um ato violento a quem constitui a parte mais prejudicada com o sofrimento e o constrangimento decorrente dessa violência.

Conforme a já mencionada pesquisa realizada pelo IPEA36, 35,3% das pessoas

entrevistadas concordam totalmente e 23,2% concordam parcialmente com a afirmação de que “se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros”, totalizando 58,55% o percentual de entrevistados e entrevistadas que, de alguma forma, se identificaram com a ideia de que o comportamento da mulher influencia a violência sexual por ela sofrida ou evitada. Ademais, 26% concordaram que “mulheres que usam roupas curtas que mostram o corpo merecem ser atacadas”, sendo que 13,2% concordaram totalmente com tal afirmação 12,8% concordaram parcialmente, revelando uma parcela da população que ainda admite a justificação da agressão com base nas vestimentas da vítima.

Esse tipo de julgamento feito pela sociedade revela a descrença na versão da mulher enquanto vítima da violência cometida em função do acobertamento do agressor. Isso porque, em consonância com as definições de gênero, os padrões de credibilidade e normalidade vigentes tomam como base ideias machistas, segundo as quais seria evidentemente mais fácil acreditar no que diz alguém do sexo masculino.

Aliado a isso, existe ainda o ideário da mulher como sedutora sempre, o que justifica o entendimento de que a negativa da mulher seria apenas uma “técnica de sedução”, um subterfúgio para aguçar o desejo masculino pelo corpo feminino. Desse modo, também é

36 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA E APLICADA. Sistema de Indicadores de Percepção Social – SIPS: Tolerância social à violência contra as mulheres. Abril de 2014. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/140327_sips_violencia_mulheres_novo.pdf>. Acesso em: 03 abr. 2017. p. 23.

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utilizada essa ideia para justificar o comportamento do homem agressor, o qual se vale do argumento socialmente aceito de que a mulher estava querendo a relação sexual e não estava admitindo para “fazer charme”, possibilitando um maior descrédito da vítima.

Todo esse contexto de descrença na versão da vítima, naturalização de comportamentos dos agressores, relativização do ato, de sua gravidade e, consequentemente, do prejuízo causado a quem sofre a agressão evidencia o modus operandi do que se conhece por cultura do estupro, de maneira a subjugar a mulher e lhe impor uma posição de inferioridade37.

A cultura do estupro se manifesta através da responsabilização da vítima pela violência por ela sofrida em virtude de algum comportamento seu que tenha se distanciado do papel social imposto e esperado para o seu gênero. Além disso, um outro reflexo dessa cultura se visualiza pelo incentivo à prática da violência sexual como método para correção do comportamento da mulher agredida tido como desviante, resultando na isenção ou, pelo menos, minoração da culpa do agressor.

Portanto, a situação observada é a de regulação da mulher38, a qual está ligada à

culpabilização desta por uma distância diminuta, fazendo a mulher vítima da agressão sexual crer que foi violentada por não ter seguido corretamente as regras impostas como sendo adequadas à sua moral sexual. Caso ela não chegue a esta conclusão, a sociedade cuidará de fazer isso por ela39.

Whisnant40 explica que o estupro – como manifestação de violência sexual – tem por alvos as vítimas diretas, vistas como dispensáveis, e a população mais ampla, a qual, pela

37 SILVA, Natiene Ramos Ferreira da. Representações da Culpabilização de Mulheres Vítimas de Estupro:

Uma Análise Étnico-Racial. Disponível em:

<http://estatico.cnpq.br/portal/premios/2013/ig/pdf/ganhadores_9edicao/Cat_E_Graduacao/NatieneRamos.pdf>. Acesso em: 04 abr. 2017. p. 13.

38 A situação de regulação da mulher pode ser observada tanto em situações mais explícitas como em situações do cotidiano comum. Nesse sentido, a professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutora em Literatura em Língua Inglesa pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Lola Abromovich, listou em seu blog “Escreva, Lola, escreva” uma série de situações cotidianas onde a cultura do estupro pode ser percebida, conforme segue: “Cultura de estupro é comediante dizer que homem que estupra mulher feia não merece cadeia, merece um abraço, e metade da população rir e, diante dos protestos da outra metade, xingar quem se indignou com o chiste de mal amada, mocreia, sapatão, ‘nem pra ser estuprada vc [sic] serve’. Cultura de estupro é vender camisa (e muita gente comprar pra usar) com ‘fórmula do amor’que equivale a embebedar a mulher para conseguir sexo sem resistência. Cultura de estupro é um programa de TV fazer rir em cima de um problema que acomete milhares de mulheres por dia (bolinações dentro de meios de transporte coletivo). Cultura de estupro é anúncio de preservativo brincar que sexo sem consentimento queima mais calorias.” (ABROMOVICH, Lola. Cultura de estupro? Não, imagine! Disponível em: <http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2012/08/cultura-de-estupro-nao-imagine.html>. Acesso em 04 abr. 2017).

39 FERNANDES, Leonísia Moura. Traduzir a linguagem do medo para superar a cultura de estupro. Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito, João Pessoa, n. 01, 2015. Disponível em: <http://www.ies.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/article/view/23590/13598>. Acesso em: 03 abr. 2017. p. 348. 40 WHISNANT, Rebecca. Feminist Perspectives on Rape. The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Stanford, 2009, tradução livre, apud FERNANDES, Leonísia Moura. Traduzir a linguagem do medo para superar a cultura de estupro. Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito, João Pessoa, n. 01, 2015.

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mensagem enviada através do cometimento do crime, pode ser manipulada a obedecer exigências que seriam facilmente rejeitadas apenas em função do medo. As mulheres controlam e restringem suas próprias escolhas em reação ao risco de serem violentadas sexualmente, de modo a garantirem que estão seguindo as regras definidas pelo sistema de gêneros para qual seria o comportamento padrão feminino e que fazem a suposta distinção entre as garotas más, as quais são estupradas, e as garotas de bem, as quais permanecem a salvo da violência sexual. Esse processo de constrangimento social visando a manutenção dos papeis de gênero é o que constitui a cultura do estupro, a qual, por também ser fruto de construções sociais, “não pode ser considerada como um conjunto de ações individuais, como se todos os homens odiassem as mulheres, mas uma convenção social que determinados papéis [sic] e estruturas sociais sejam mantidos ao longo dos anos”41.

Considerando que as pessoas as quais compõem os órgãos do Judiciário, por óbvio, também estão inseridas na sociedade, é plausível considerar que elas também são afetadas pelos paradigmas e construções sociais dominantes. Consequentemente, até mesmo a nossa Justiça, a qual deveria se colocar de forma imparcial, é passível de perpetuar a cultura do estupro em sua atuação.

A despeito dos avanços em âmbito legal formal e até mesmo jurisprudencial – inclusive, evidenciado pelo entendimento majoritário do Superior Tribunal de Justiça quanto ao valor probatório da palavra da vítima42 – o que se observa é o menosprezo e a desvalorização da versão da mulher agredida ao colocar em questão a validade da palavra desta no processo, o que corrobora a cultura do estupro. Isto porque, ao mesmo tempo, há o desmerecimento do relatado pela vítima, bem como a sua culpabilização pela agressão sofrida.

Coulouris43, fazendo menção ao seu trabalho intitulado “Violência, Gênero e Impunidade: A construção da verdade nos casos de estupro”, afirma que, nos 53 processos de

Disponível em: <http://www.ies.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/article/view/23590/13598>. Acesso em: 03 abr. 2017, p. 343.

41 GOMES, Marilise Mortágua. “As genis do século XXI”: Análise de casos de pornografia de vingança através das redes sociais. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação Social/Jornalismo) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: < http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/as_genis_do_seculo_xxi.pdf>. Acesso em: 04 abr. 2017. p. 16. 42 AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PENAL. ESTUPRO. PALAVRA DA VÍTIMA. VALOR PROBANTE. ACÓRDÃO A QUO EM CONSONÂNCIA COMA JURISPRUDÊNCIA DESTE TRIBUNAL. MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. SÚMULAS 7 E 83/STJ. 1. A ausência de laudo pericial conclusivo não afasta a caracterização de estupro, porquanto a palavra da vítima tem validade probante, em particular nessa forma clandestina de delito, por meio do qual não se verificam, com facilidade, testemunhas ou vestígios. (STJ - AgRg no AREsp: 160961 PI 2012/0072682-1, Relator: Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Julgamento: 26/06/2012, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 06/08/2012).

43 COULOURIS, Daniella Georges. Ideologia, dominação e discurso de gênero: reflexões possíveis sobre a discriminação da vítima em processos judiciais de estupro. Mnme - Revista Virtual de Humanidades, Natal v.

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estupro registrados no período situado entre 1995 e 2000 analisados, as condenações são exceções à regra comum de arquivamento e absolvições por falta de provas. Apesar de ser a palavra da vítima considerada suficiente para sustentar a condenação do acusado na falta de provas mais consistentes, o que se verificou na análise dos casos foi o uso da justificativa da falta de provas materiais para certificarem os depoimentos das vítimas. Muitas das vezes se alegava que estes depoimentos não seriam confiáveis com base no comportamento social da mulher vitimada, ou pelo fato de ela ter passagem por instituição psiquiátrica ou mesmo por ser ela ainda muito nova e supostamente sujeita a “fantasias” ou outros motivos para servirem de aparente jusfiticativa para o arquivamento do processo ou absolvição do réu. Ao fim, dos 53 processos analisados, 44 denúncias foram consideradas inconsistentes, sendo tidas como falsas ou “fracas”.

Nessa toada, Mascarenhas44 aponta que existem decisões judiciais refletindo a dinâmica da dominação masculina, ao passo que observam a presença ou ausência de “deslizes” sociais das vítimas, fundamentadas em discursos de restrição à autonomia e à liberdade sexual da mulher. É o caso do acórdão datado de 13 de novembro de 2014, referente à Apelação Criminal nº 0000585-95.2008.8.26.0382148, da Comarca de Mirassol/SP. Neste acórdão, o relator Desembargador Louri Barbiero fez questão de ressaltar o fato de que “tratando-se de mulher honesta e recatada, seu relato assume maior relevo, tornando-se decisivo para o exame da culpabilidade do réu”.

Diante do exposto, observa-se a cultura do estupro como resultado de uma construção social, a qual se dá a partir de outras construções sociais, como é o caso dos papeis de gênero, nada obstante as tentativas de naturalização dessa violência pela ideologia dominante, derivada do patriarcado.

Assim, a cultura do estupro, por diversos meios – até mesmo o judicial – finda por fazer com que a mulher vítima de violência sexual seja persistentemente atingida pela sua condição de gênero, visto que teve sua dignidade sexual agredida e ainda foi tornada culpada pelo próprio tormento gerado pela agressão por ela sofrida.

11, n. 5, 2004. Disponível em: <https://periodicos.ufrn.br/mneme/article/view/226/206>. Acesso em: 04 abr. 2017. p. 104-105.

44 MASCARENHAS, Jasminne Fernandes. O estupro como violência de gênero: desmistificando o “in dubio pro stereotipo” a partir dos casos de estupros coletivos praticados contra mulheres em Natal/RN. Monografia (Graduação em Direito) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015. p. 43.

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3 O TRATAMENTO SÓCIO-JURÍDICO DISPENSADO A CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Não só no âmbito das relações de gênero a realidade fática se distancia da previsão legal de proteção dos direitos humanos. Além das questões de gênero, as relações sociais estão permeadas pelos padrões estabelecidos pelos adultos.

Nesse sentido, observa-se que a legislação nacional e internacional muito já avançou para garantir integral proteção a crianças e adolescentes. Contudo, tal proteção ainda é constantemente desrespeitada, como se observa nos casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes, demonstrando que, apesar da situação legal de sujeitos de direitos, crianças e adolescentes ainda são tratados pela sociedade como objeto.

Acrescenta-se a isso o fato de que a maioria dos casos de abuso sexual vitimando a população infanto-juvenil se dá contra meninas, o que denota a existência das imposições de gênero ainda nas fases iniciais da vida do ser humano.

Em virtude desse caráter de violência de gênero e de objetificação do ser em desenvolvimento, o abuso sexual também é permeado pela culpabilização da vítima, a qual ocorre até mesmo a nível institucional. Isso acontece como reflexo do patriarcado e do adultocentrismo, imperantes em nossa sociedade.

Diante do exposto, o presente capítulo se propõe a fazer uma breve análise das contradições entre as previsões legais e da realidade de abuso sexual envolvendo crianças e adolescentes, tomando por base as relações sociais de poder.

3.1 TRATAMENTO LEGAL DISPENSADO A CRIANÇAS E ADOLESCENTES ANTES E DEPOIS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (LEI N° 8.069/1990)

Por muito tempo, a questão da infância e adolescência no Brasil refletiu um processo histórico de negação de direitos a crianças e adolescentes, em virtude de uma visão adultocêntrica, através da qual a intervenção de adultos dominava o mundo daqueles sujeitos45. Nessa fase, nem mesmo a legislação se preocupava com a condição de seres em

45 FERREIRA, Adeilza Clímaco. “Eu quero ver se a justiça vai funcionar mesmo”: a resolubilidade dos casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes no município de Natal/RN. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2014. p. 42.

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desenvolvimento das crianças e dos adolescentes, de modo que ela não lhes assegurava qualquer proteção especial.

À época colonial do Brasil, o pai detinha o direito de castigar seus filhos e suas filhas como forma de educá-los, o que era garantido para o resguardo da autoridade parental, especificamente da figura adulta masculina. Somente na fase imperial houve alguma preocupação estatal com os considerados menores de idade, contudo tal preocupação não se dava no sentido de protegê-los, mas de punir os infratores, fossem eles adultos ou não, por meio de uma política repressiva fundada no temor ante a crueldade das penas aplicadas. Portanto, a preocupação do Direito com crianças e adolescentes se limitava às punições pela prática de infrações penais, enquanto que a atuação estatal fora do campo infracional se dava através das atividades da Igreja.46

Entre algumas pequenas mudanças trazidas pelos Códigos Penais no sentido de tratar da idade em que se consideraria a pessoa como inimputável, apenas com a edição dos dois primeiros Códigos de Menores do Brasil, em 1927 e 1979, se observou uma consciência geral de que o Estado teria o dever de proteger a infância e a adolescência. No entanto, essa “proteção” ainda se dava através da supressão das garantias de crianças e adolescentes, visto que ela findava por criminalizar a infância pobre pela aplicação de doutrina fundada no binômio carência/delinquência.

Amin47 assevera que, a partir desse momento, já se delineava a Doutrina da Situação Irregular, quando se tratava dos cuidados aos infantes expostos e abandonados. Após, com o Código de 1927 (mais conhecido como Código Mello de Mattos), firmou-se que a família, independentemente da situação econômica, seria a responsável por suprir as necessidades básicas das crianças e dos adolescentes, em consonância como o modelo idealizado pelo Estado. Além disso, ficou a encargo do Juiz de Menores a decisão acerca do destino dos infantes encontrados sob a denominada situação irregular e medidas assistenciais e preventivas foram previstas para minimizar a infância na rua, objetivando a promoção de uma higienização social. De acordo com Faleiros48, o Código de Menores de 1927 incorporou, além da visão de proteção do meio e do indivíduo dos higienistas, a visão repressiva e moralista de juristas, tendo tais agentes encaminhado estratégias de controle da raça e da ordem.

46 AMIN, Andréa Rodrigues. Evolução Histórica do Direito da Criança e do Adolescente. In: MACIEL, Kátia Regina F. L. A. (Coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente: Aspectos Teóricos e Práticos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010. p. 05.

47 AMIN, Andréa Rodrigues. op. cit, p. 06.

48 FALEIROS, Vicente de Paula. Infância e processo político no Brasil. In: RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco. A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. 3 ed. São Paulo: Cortez Editora, 2011. p. 42.

Referências

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