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3 O TRATAMENTO SÓCIO-JURÍDICO DISPENSADO A CRIANÇAS E ADOLESCENTES

3.2 A REALIDADE DO ABUSO SEXUAL COMO VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA MENINAS

Inspirada pela Doutrina da Proteção Integral, a Constituição Federal demonstra, no § 4º do seu artigo 22765, a preocupação em resguardar crianças e adolescentes especificamente da violência sexual, como uma forma de priorizar a garantia dos direitos desses sujeitos.

Nesse mesmo sentido, além de ter sido abarcada a violência sexual como ponto de enfrentamento também no ECA, várias medidas foram implementadas em âmbito nacional visando combater esse tipo de violência. Dentre elas, podem ser citadas a instituição do Comitê

61 AMIN, Andréa Rodrigues. Evolução Histórica do Direito da Criança e do Adolescente. In: MACIEL, Kátia Regina F. L. A. (Coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente: Aspectos Teóricos e Práticos. 4 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010. p. 09-10.

62 FIRMO, Maria de Fátima Carrada. A criança e o adolescente no ordenamento jurídico brasileiro. 2ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 220.

63 FALEIROS, Vicente de Paula. Infância e processo político no Brasil. In: RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco. A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. 3 ed. São Paulo: Cortez Editora, 2011. p. 83.

64 LIMA, Fernanda da Silva; FREITAS, Maria Serafim de. Vitimização secundária de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual: estudo sobre a rota crítica do atendimento pelo sistema de garantia de direitos. In: Seminário Internacional de Demandas Sociais e Políticas Públicas na Sociedade Contemporânea, XIII, 2016, Santa Cruz do Sul. Anais do XIII Seminário Internacional... Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2016. Disponível em: <http://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/sidspp/article/view/15784/3683>. Acesso em: 19 abr. 2017. (paginação irregular).

65 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

[...]

Nacional e da Comissão Intersetorial de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, no ano de 2003; a adoção da experiência de Códigos de Conduta contra a Exploração Sexual em diferentes segmentos econômicos (turismo, transporte etc.); a criação do serviço de disque denúncia nacional gratuito (Disque 100); a realização do III Congresso Mundial de Enfrentamento da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes no Brasil, em 2008; e a criação e revisão do próprio Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, tido como referência para a estruturação de políticas, programas e serviços sobre o tema66.

Na leitura do Código Penal, observa-se que o art. 217-A trata especificamente do estupro de vulnerável, descrevendo-o como o ato de “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos” 67. Por tal previsão, a punição acaba sendo agravada

quando o ilícito é cometido nessas condições, pelo fato de que a criança e o adolescente não podem oferecer resistência ou mesmo ter noção da prática do ato, em razão da sua vulnerabilidade. Assim, a violência é presumida por se encontrar a vítima em estado peculiar de desenvolvimento, o que também se coaduna aos desígnios da Teoria da Proteção Integral.

Apesar de todos esses esforços, a violência sexual ainda é realidade nas vidas de muitas crianças e adolescentes, consistindo em uma das mais amargas manifestações da violência contra esses sujeitos e se mostrando como uma brutal violação de direitos humanos, sexuais e reprodutivos. Isso porque, ao receberem um estímulo sexual não estando preparados para isto, crianças e adolescentes têm desrespeitado o seu direito a um desenvolvimento sexual saudável68.

Sobre a violência sexual infanto-juvenil, Ferreira69 aduz que se trata de um fenômeno multifacetado e construído historicamente, sendo sustentado por um padrão cultural que é reproduzido por gerações em diferentes níveis de classes sociais, faixas etárias, sexos, etnias e raças.

66 BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Maio, 2013. Disponível em: <http://www.sdh.gov.br/assuntos/bibliotecavirtual/criancas-e-adolescentes/publicacoes-2013/pdfs/plano-

nacional-de-enfrentamento-da-violencia-sexual-contra-crianca-e-adolescentes>. Acesso em 14 abr. 2017. p. 08. 67 BRASIL. Código Penal (1940).

68 MILITÃO, Raquel Maíra dos Santos Alves. O sistema de garantia dos direitos da criança e do adolescente: análise da trajetória e do processo de resolubilidade dos casos de violência doméstica sexual em Recife – PE (2007- 2011). Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2013. p. 46-47.

69 FERREIRA, Adeilza Clímaco. “Eu quero ver se a justiça vai funcionar mesmo”: a resolubilidade dos casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes no município de Natal/RN. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2014. p. 60.

Partindo para a análise de dados estatísticos acerca da temática em questão, temos que, de acordo com os indicadores produzidos pelo Disque Denúncia Nacional, de maio de 2003 a maio de 2010, foram formalizadas 125.357 denúncias de violência contra crianças e adolescentes70. Destas denúncias, 32% se referiam a casos de violência sexual, de modo que tal percentual quase se igualou aos números referentes à negligência e à violência física e psicológica, os quais foram de 34% cada71. Assim, nota-se que a realidade prática ainda é de constante violação dos direitos garantidores da integridade de pessoas em desenvolvimento.

A violência sexual contra crianças e adolescentes pode envolver tanto situações de abuso sexual como de exploração sexual comercial, consistindo a diferença entre elas na questão do lucro, conforme Paiva72. Portanto, para a autora, o abuso sexual – o qual figura como foco desta monografia – é caracterizado pela utilização do corpo de uma criança ou um adolescente para que se pratique qualquer ato de natureza sexual, não havendo intuito lucrativo ou relação de compra ou troca. É apresentada como comum nesses casos a relação de confiança entre vítima e agressor, geralmente praticada por alguém que participa do mesmo convívio, que pode ser comunitário, além do familiar.

Uma outra definição para abuso sexual, compatível com a anterior, é a de que se refere a uma situação onde uma criança ou adolescente, tomando por base uma relação de poder, serve para gratificação sexual de um adulto ou de um adolescente mais velho. No caso, o abuso pode incluir desde carícias e pornografia até o ato sexual com ou sem penetração73.

Furniss74 entende o abuso sexual como o envolvimento de crianças e adolescentes em atividades sexuais para o qual elas não têm capacidade de dar consentimento, mas, ainda assim, acontecem, em decorrência de uma dependência estrutural da vítima e objetivando satisfazer as demandas e desejos sexuais do abusador.

Logo, é de se entender que o abuso sexual contra crianças e adolescentes pode se manifestar de diversas formas, desde que não envolva o caráter lucrativo, e se baseia em uma

70 BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Relatório do Disque 100: maio de 2003 a maio de 2010. Brasília: Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente: Disque 100, 2010. p 03. 71 BRASIL. ibidem, p 06.

72 PAIVA, Leila. Violência sexual – conceitos. In: BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-juvenil no Território Brasileiro – PAIR: 2 Conteúdos para Capacitação. Brasília: Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da

Criança e do Adolescente, 201-. Disponível em:

<http://pair.ledes.net/gestor/titan.php?target=openFile&fileId=1108>. Acesso em: 17 abr. 2017. p. 33.

73 ABRAPIA – Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência. Abuso sexual: mitos e realidade. Petrópolis: Autores & Agentes & Associados, 1997. p. 06.

74 FURNISS, Tilman. Da loucura à maldade: ponto d partida multidisciplinar e metassistêmico. In: FURNISS, Tilman. Abuso sexual da criança: uma abordagem multidisciplinar – manejo, terapia e intervenção legal integrados. Tradução de Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. p. 12.

relação de poder, na qual a vítima não tem capacidade o suficiente para consentir sobre a atividade sexual e o agressor se vale disso e da sua consequente “superioridade” para satisfazer suas vontades.

Entendido o conceito para abuso sexual infanto-juvenil, cabe destacar alguns dados e informações sobre a ocorrência dessa situação. De início, relativamente a casos de abuso de forma mais abrangente, Lalor e McElvaney, a partir de uma revisão sistemática da literatura internacional sobre a temática, trazem estatísticas de vários países e identificam que o número de vítimas do sexo feminino é, em todos os casos da violência referida, maior que o de vítimas do sexo masculino75.

Em âmbito nacional, dados do Relatório do Disque 100 apontam que, das quatro categorias em que se subdivide a violência sexual contra crianças e adolescentes (tráfico de pessoas, pornografia, exploração sexual comercial e abuso sexual), contam com 59,76% os registros de denúncias por abuso sexual. Acerca desses crimes envolvendo o abuso, constatou- se que 79% dos casos são de vítimas do sexo feminino, enquanto que 21% são de vítimas do sexo masculino76.

Ademais, estudo do IPEA77, já mencionado no capítulo anterior, também denota que os

casos de estupro registrados contra crianças e adolescentes apresentam diferenças consideráveis quando feita a análise do sexo das vítimas. Nos casos de crianças, o percentual de vítimas do sexo feminino chega a 81,2%, ao mesmo passo que, em se tratando de vítimas adolescentes do sexo feminino, esse número chega a 93,6%. Por outro lado, são vitimadas crianças e adolescentes do sexo masculino somente em 18,8% e 6,4% dos casos, respectivamente.

Esse estudo ainda revela que os agressores são do sexo masculino em 92,55% dos casos de estupro de crianças e em 96,69% dos casos do referido abuso sexual contra adolescentes78.

75 LALOR, Kevin; MCELVANEY, Rosaleen. Child sexual abuse, links to later sexual exploitation/high-risk sexual behavior, and prevention/treatment programs. 2010 apud ANDRADE, Vinícius N. G. de; SOUSA, Sônia M. G.. As situações de violência e abuso sexual e os direitos das crianças e adolescentes. In: SOUSA, Sônia M. G.; MOREIRA, Maria I. C. (Orgs.). Quebrando o silêncio - disque 100: estudo sobre a denúncia de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil. Goiânia: Cânone Editorial, 2013. p. 79.

76 BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Relatório do Disque 100: maio de 2003 a maio de 2010. Brasília: Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente: Disque 100, 2010. p 07. 77 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA E APLICADA. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde (versão preliminar). Março de 2014, p. 08. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdf>. Acesso em: 31 mar. 2017.

78 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA E APLICADA. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde (versão preliminar). Março de 2014, p. 09. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdf>. Acesso em: 31 mar. 2017.

Portanto, a pesquisa deixa evidente que a grande maioria dos estupros de crianças e adolescentes envolvem agressores do sexo masculino e vítimas do sexo feminino.

A partir dessas informações, pode-se concluir que, apesar de convergirem muitas variáveis para o abuso sexual, existe a associação desta violência com as relações de gênero. Logo, os padrões adultocêntrico e falocêntrico norteiam uma cultura de desrespeito a um ser ainda em formação, o qual passa a ser tratado como objeto de prazer e tem negadas sua liberdade e sua dignidade79. Tudo isso em função de relações de poder, as mesmas que submetem as mulheres de forma geral à dominação masculina, conforme tratado anteriormente neste trabalho.

Corroborando com esse entendimento, Schreiner80 analisa o abuso sexual enquanto violência de gênero por servir como “aporte de confirmação e reafirmação da dominação masculina”, de modo que ela concorda com a visão do abuso tratado como forma de demonstrar poder, além da simples satisfação sexual.

Esta autora ainda destaca, ao analisar os depoimentos de profissionais de programas de proteção a crianças e adolescentes vítimas de violência, que a violência de gênero evidenciada no abuso sexual transparece também quando apresenta às meninas, desde cedo, o lugar submisso e subalterno reservado a elas no meio familiar81.

Portanto, o abuso sexual pode ser visto como mais um resultado de construções sociais, visto que se baseia em relações de poder, tanto a relativa a crianças/adolescentes e adultos, como a que aborda mulheres e homens. Então, as meninas são duplamente colocadas em posição de submissão, o que se reflete também na forma como a cultura do estupro as atinge, quando elas são culpabilizadas pelas agressões sexuais sofridas e, mais uma vez, têm violados seus direitos enquanto pessoas do sexo feminino e enquanto vulneráveis.

3.3 A CULPABILIZAÇÃO DA MENINA VÍTIMA DE ABUSO SEXUAL POR SUA