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O APARATO JURÍDICO ESTATAL COMO INSTRUMENTO PARA A REPRODUÇÃO DA IDEOLOGIA DOMINANTE E AGENTE DE CULPABILIZAÇÃO DE MENINAS

4 O ESTADO ENQUANTO PERPETUADOR DA CULTURA DE ESTUPRO NO CONTEXTO DE OPRESSÃO DE MENINAS ABUSADAS SEXUALMENTE

4.3 O APARATO JURÍDICO ESTATAL COMO INSTRUMENTO PARA A REPRODUÇÃO DA IDEOLOGIA DOMINANTE E AGENTE DE CULPABILIZAÇÃO DE MENINAS

VÍTIMAS DE ABUSO SEXUAL

Conforme visto anteriormente, Althusser entende existir o Aparelho Ideológico de Estado jurídico, que atua disseminando uma ideologia para colaborar com a manutenção da ordem social hegemônica no campo das relações que envolvem o Direito. Portanto, o AIE jurídico, por assim o ser, constitui-se como uma das vias de garantia de disciplinamento e controle dos grupos dominados, visando um efeito harmonizador e pacificador a colaborar com a perpetuação do status quo.

Nesse sentido, Marlise Silva elenca tanto o aparato policial e judiciário, a legislação e, até mesmo, a Constituição como integrantes do aparato estatal que objetiva a conformação da consciência a serviço dos interesses dos setores dominantes146. A autora ainda afirma que a lei para a manutenção da ordem é evocada sendo utilizada a justificativa da necessidade de conservação da paz social, quando, na verdade, ela é mecanismo ideológico das classes

144 BARRET, 1993, apud BOUCHER, Geoff. Marxismo. Tradução: Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes, 2015 (Série Pensamento Moderno). p. 229.

145 SILVA, Marlise Vinagre. Violência contra a mulher: quem mete a colher? São Paulo: Cortez, 1992. p. 57. 146 SILVA, Marlise Vinagre. Ibidem, p. 55.

detentoras de poder social, político e econômico147. Este posicionamento pode ser interpretado como que se desse em concordância com a teoria dos Aparelhos Ideológicos de Estado elaborada por Althusser, visto que com ela guarda bastante compatibilidade.

Então, o aparato jurídico que o Estado detém, como Aparelho Jurídico de Estado que é, está inserido em uma lógica estrutural mais ampla, onde se busca sempre a manutenção de poderes de segmentos sociais dominantes, em especial do segmento o qual condensa todos os privilégios garantidos pela nossa sociedade.

Considerando que a implantação do Estado de direito se deu em consonância com advento do modo de produção capitalista, prezou-se pela igualdade de status jurídico entre as pessoas. Isso porque, na situação de mercado, a liberdade jurídica gozada por cada indivíduo leva à ilusão de que os méritos – ou deméritos – de cada um correspondem diretamente às suas capacidades individuais148.

Contudo, destaca Saffioti149 que essa liberdade formal é contraposta pela divisão da

sociedade em classes sociais e na dominação de uma pela outra, abordando o viés econômico das relações de dominação-exploração. Dessa forma, o modo de produção capitalista está sempre negando a liberdade jurídica que ele criou em benefício próprio.

Esse mesmo raciocínio pode ser aplicado às demais relações de dominação-exploração, especificamente às do masculino sobre o feminino e dos adultos sobre não-adultos. Isso fica evidente principalmente quando é levado em conta que o alargamento das liberdades humanas foi um processo que atingiu mulheres e crianças e adolescentes escassamente. As questões de discrepâncias entre o tratamento jurídico e a realidade concreta referentes a essas populações já foram abordadas neste trabalho, comprovando tal desenvolvimento deficitário das proteções legais.

Por conseguinte, é válido afirmar que o Aparelho Ideológico de Estado jurídico foi formulado para reproduzir a ideologia de dominação de homens adultos sobre crianças e adolescentes do sexo feminino, impondo os valores patriarcais e adultocêntricos, além dos da sociedade de classes. Assim, todo o aparato jurídico, a partir da sua ideia de liberdade formal, atua para camuflar o peso real das implicações sociais em decorrência de fatores naturais de cada socius.

147 SILVA, Marlise Vinagre. Violência contra a mulher: quem mete a colher? São Paulo: Cortez, 1992. p. 107. 148 SAFFIOTI, Heleieth I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 2 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1979 (Coleção Sociologia Brasileira – vol. 4). p. 26.

É no contexto aqui desenhado que a culpabilização, pela via estatal (através dos aparelhos envolvidos na atividade jurídica do Estado), de meninas vítimas de abuso sexual fica denotada. O deslocamento da culpa pela violência sexual para a vítima, enquanto reflexo da violência de gênero que atinge meninas, se configura como uma forma de dominação que se manifesta por duas vias, tanto a dominação imposta pelos papeis de gênero quanto a imposta pela diferença de faixa etária.

Entretanto, essa forma de responsabilizar a vítima não se dá explicitamente, posto que, segundo Schreiner150, “é mascarando uma parte importante de si mesmo que o poder é tolerável”. Portanto, a atuação estatal através da aplicação do Direito, acaba sendo uma forma bastante eficaz na produção da dominação e da submissão pela sutileza do mecanismo.

Nesse mesmo sentido, Pinto151, embasando-se nas lições de Bourdieu, esclarece que a imposição da dominação do feminino pelo masculino passa despercebida aos nossos olhos quando é difundida pelo Estado, enquanto aparelho ideológico através do qual o patriarcado sustenta seu discurso machista.

Toda a opressão envolvida no processo de responsabilizar as meninas vítimas de abuso sexual também é expressa pelo tratamento que o Estado despende a essas crianças e adolescentes. Isso não se dá apenas como mero reflexo dos valores da nossa sociedade, mas ocorre também como forma de alimentar e reforçar a cultura a qual dá fundamento a tais valores. Uma vez reforçado o patriarcado e a visão adultocêntrica pela via em questão, são reforçadas as demais relações de dominação-exploração, considerando-se a análise simbiótica proposta e desenvolvida por Saffioti.

Pela interpenetração dos sistemas de dominação-exploração se explica como a culpabilização de vítimas nos casos de abuso sexual contra meninas – situação que por si só já explicita a simbiose entre dois níveis de opressão – traz benefícios até mesmo ao capitalismo. Este sistema econômico baseado em contradições sociais é reforçado e reafirmado por mais essa expressão de uma relação onde determinados grupos são contrapostos.

Ora, se o Direito que conhecemos hoje foi concebido para fazer funcionar o sistema capitalista, surge como consequência o fato de aquele reproduzir uma ideologia que gere, através da suas diversas formas de aplicação, a culpabilização tratada, esta enquanto

150 SCHREINER, Marilei Teresinha. O abuso sexual numa perspectiva de gênero: o processo de responsabilização da menina. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008. p. 27.

151 PINTO, Lucas Alencar; BRAGA, Ana Elisa Linhares de Meneses. Mulheres em luta por direitos: rompendo com o patriarcado. Revista Direito & Dialogicidade, Crato, v. 6, n.1, jan./jun.2015. Disponível em: <http://periodicos.urca.br/ojs/index.php/DirDialog/article/viewFile/963/791>. Acesso em: 13 mar. 2017. p. 58.

exteriorização do poder de um grupo social sobre outro. Assim ocorre a alimentação de toda uma estrutura composta por engrenagens que ativam umas às outras, com a finalidade de sempre manter a supremacia de uma classe (não só no sentido econômico) como hegemônica no poder, seja este político, ideológico, cultural ou econômico.

Pelas razões expostas, as teóricas do feminismo socialista propõem que os problemas sociais resultantes do patriarcado, assim como o que compõe a temática central desta monografia, não serão superados completamente enquanto vivermos sob a égide do sistema vigente, sustentado por contradições. Como aduz Saffioti152, “não atacando o coração da engrenagem de exploração/dominação, alimenta-a”.

152 SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero patriarcado violência. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular: Fundação Perseu Abramo, 2015. p. 147.