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4 O ESTADO ENQUANTO PERPETUADOR DA CULTURA DE ESTUPRO NO CONTEXTO DE OPRESSÃO DE MENINAS ABUSADAS SEXUALMENTE

4.2 O PATRIARCADO INTEGRANDO A IDEOLOGIA DOMINANTE

realidades que se apresentam “sob a forma de instituições distintas e especializadas”122,

servindo para perpetuar ideologias que beneficiam a classe dominante sem se valer, em regra, da repressão. Por seu caráter de multiplicidade123, os AIE se apresentam como unificados pela ideologia dominante124.

Assim, resta definida a forma de atuação de uma das instâncias estruturais, que se articula às demais pelo modo de produção, cujas relações são reproduzidas a partir dos AIE, visando à formação social em conformidade com os padrões hegemônicos, definidos pela classe dominante.

Ao propor uma lista empírica das realidades que se apresentam como Aparelhos Ideológicos de Estado, Louis Althusser elenca o Aparelho Ideológico de Estado jurídico, fazendo a ressalva de que o Direito se enquadra, simultaneamente, como ARE e como AIE125.

É de se visualizar que o Aparelho Ideológico de Estado jurídico assim o é pela existência de uma ideologia jurídica, a qual se observa pela criação da categoria “sujeito de direito”. Tal categoria é apresentada por Althusser como uma noção ideológica pelo fato de ela propor que o ser humano é naturalmente um sujeito. Pela tese de que “só há ideologia pelo sujeito e para o sujeito”126, aquela proposição cria a condição necessária ao desenvolvimento de uma ideologia,

tendo em vista que provoca o reconhecimento de cada indivíduo enquanto sujeito ideológico. A ideologia dominante que unifica os Aparelhos Ideológicos de Estado se baseia em diversos tipos de opressão, as quais envolvem relações de exploração, aptas a fortalecerem a dominação de um segmento social específico sobre outros. É nesse sentido que se insere o patriarcado como colaborador da ordem social hegemônica, dentro de um contexto onde as relações sociais se desenvolvem em torno da questão do poder e em função de outras determinantes além da classe, inclusive a de sexo.

4.2 O PATRIARCADO INTEGRANDO A IDEOLOGIA DOMINANTE

122 ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado: notas para uma investigação. Tradução: Joaquim José de Moura Ramos. Lisboa: Editora Presença, 1980. p. 43.

123 Althusser afirma que os AIE são múltiplos, distintos e relativamente autônomos e exprimem as contradições que se mostram como efeitos dos choques entre a luta de classes capitalista e a luta de classes proletária. Por outro lado, os ARE constituem membros de um todo organizado, os quais estão subordinados a uma “unidade de comando, a da política da luta de classes aplicada pelos representantes políticos das classes dominantes que detêm o poder de Estado” (ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado: notas para uma investigação. Tradução: Joaquim José de Moura Ramos. Lisboa: Editora Presença, 1980. p. 54-55).

124 BOUCHER, Geoff. Marxismo. Tradução: Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes, 2015 (Série Pensamento Moderno). p. 224.

125 ALTHUSSER, Louis. op. cit., p. 44. 126 ALTHUSSER, Louis. op. cit., p. 93.

É de se observar que as relações de poder incutidas no âmbito social se baseiam em relações de dominação-exploração, as quais, na prática podem estar presentes através de uma ou mais determinantes. De acordo com Marlise Silva127, essa imposição de poder pode se dar pela dominação-exploração do homem sobre a mulher, do branco sobre o negro, do adulto sobre a criança, entre outras formas.

Nessa perspectiva, Saffioti128 explica que o patriarcado contempla uma dupla dimensão, atuando tanto pela dominação quanto pela exploração. Isso porque, enquanto a dominação é situada nos campos políticos e ideológicos – onde já foi pontuado que há a opressão de gênero –, a exploração está ligada ao campo econômico. Neste terreno, também é nítida a discriminação entre homens e mulheres, principalmente quando é colocada em questão que, no trabalho clandestino, estas se apresentam como maioria, conforme constata a autora, denotando o papel inferiorizado relegado à população feminina no meio econômico.

Portanto, admitir que o patriarcado consiste em uma relação de dominação-exploração significa dizer que os valores machistas anteriormente discutidos extrapolam o nível da sociedade civil. Logo, tais valores findam por impregnar também o Estado, tendo em vista a imersão da nossa sociedade atual em um sistema capitalista, baseado na economia e para o qual os Aparelhos de Estado prestam reverência.

Cabe destacar que as relações de gênero e o capitalismo, nada obstante suas constituições independentes entre si, devem ser considerados conjuntamente pelo fato de que não há como entender as particularidades da formação do ser homem e do ser mulher em apartado do contexto de exploração a que estes e estas são submetidos e submetidas. Isso se explica por uma espécie de “oportunismo sistemático” o qual permite ao capitalismo se aproveitar das chamadas desigualdades que permeiam o terreno econômico129.

Apesar de o patriarcado ser anterior ao capitalismo, este se apropriou da estrutura de poder daquele, consistindo a supremacia masculina e o capitalismo nas “principais determinações na constituição da opressão da mulher”130. Dessa forma, com o advento do

127 SILVA, Marlise Vinagre. Violência contra a mulher: quem mete a colher? São Paulo: Cortez, 1992. p. 26. 128 SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. São Paulo: Editora Moderna, 1987. (Coleção Polêmica). p. 50- 51.

129 OLIVEIRA, Leidiane Souza de. Relações sociais de gênero no capitalismo contemporâneo: crítica à configuração do atendimento às mulheres no Rio Grande do Norte. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2011. Disponível em: <https://repositorio.ufrn.br/jspui/bitstream/123456789/17912/1/LeidianeSO_DISSERT.pdf>. Acesso em: 11 mai. 2017. p. 42.

130 SOUZA, Terezinha Martins dos Santos. Patriarcado e capitalismo: uma relação simbiótica. Temporalis, Brasília, v. 15, n. 30, jan. 2016. Disponível em: <http://periodicos.ufes.br/temporalis/article/view/10969/8406>. Acesso em: 01 mai. 2017. p. 487.

capitalismo, o patriarcado ganhou novos contornos a partir da entrada em massa das mulheres no meio produtivo, gerando a construção de novas características do gênero feminino e, consequentemente, novas facetas as quais atuam repondo e escondendo a opressão131.

Isso se dá tomando por base a ideia de que as sociedades de classes acabaram por se utilizar da conservação do sistema de valores patriarcal para aplicarem de modo diverso a força de trabalho feminina. Ora, à mulher seria destinada uma parcela de liberdade, porém somente na medida em que esta liberdade constituía a condição necessária para a mercantilização da força de trabalho feminina132. No mais, ao sexo feminino continuavam e continuam sendo impostos os padrões de submissão à dominação masculina, que favorecem o sistema capitalista por melhor condicionarem uma grande parcela da mão-de-obra operária.

A partir dessa lógica, o presente trabalho adota a perspectiva, sistematizada por Saffioti, de que as relações de dominação-exploração encontram-se simbiotizadas, de modo a formarem um todo unitário, complexo e multifacetado, resultando no que a referida socióloga denomina de patriarcado-racismo-capitalismo.

Aduz Marlise Silva133 que, considerando serem as relações sociais estruturadas também

em função de determinantes de raça e sexo, além das de classe, a questão do poder presente em tais relações é apresentada como um fenômeno intrincado e com várias facetas. Por essa razão, as determinações mencionadas estão presentes na realidade como resultado do cruzamento destas contradições, gerando um único sistema de dominação-exploração134, o paradigma da simbiose patriarcado-racismo-capitalismo, potencializando a capacidade de oprimir que cada sistema integrante teria isoladamente.

Para justificar o uso da categoria analítica dessa simbiose, Saffioti parte do pressuposto de que a produção dos meios de subsistência e a reprodução social de seres humanos são faces de um mesmo sistema produtivo, uma vez que a primeira necessita da segunda. Ademais, orientando-se pelo materialismo histórico, a autora alia àquele pressuposto os conceitos de Marx e Engels sobre o antagonismo das relações entre classes sociais e o antagonismo das relações entre os sexos. É a partir desses dois apontamentos que se justifica a especulação acerca

131 SOUZA, Terezinha Martins dos Santos. Patriarcado e capitalismo: uma relação simbiótica. Temporalis, Brasília, v. 15, n. 30, jan. 2016. Disponível em: <http://periodicos.ufes.br/temporalis/article/view/10969/8406>. Acesso em: 01 mai. 2017. p. 487.

132 SAFFIOTI, Heleieth I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 2 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1979 (Coleção Sociologia Brasileira – vol. 4). p. 67.

133 SILVA, Marlise Vinagre. Violência contra a mulher: quem mete a colher? São Paulo: Cortez, 1992. p. 56. 134 Em razão dessa realidade de unicidade do sistema de dominação-exploração, os setores de contradições envolvidos na simbiose tratada são inseparáveis, podendo ser tratados separadamente somente com a finalidade de tornar mais fácil a compreensão deste fenômeno (SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. São Paulo: Editora Moderna, 1987. (Coleção Polêmica). p. 60).

da existência de uma totalidade contraditória, seja na dimensão produtiva ou na dimensão reprodutiva, a qual envolve a reprodução social e, consequentemente, as relações de gênero135. Nessa toada, a socióloga infere que, sendo o antagonismo o que ela determina como princípio ativo dos referidos conceitos elaborados por Marx e Engels, não é possível promover a priorização de um em detrimento do outro136. Logo, se explica a interpenetração de ambas as contradições tratadas no contexto fático real.

Caminhando nessa mesma lógica, é válido acrescentar o que afirma Terezinha Souza137 no tocante ao estudo do gênero do ponto de vista das estruturas sociais. Partindo da afirmativa de que as sociedades de classes se estruturam pela contradição entre o gênero que produz e reproduz a vida humana (o feminino) e o gênero responsável pela produção e administração da riqueza, mediante a utilização de força vital dos seres humanos (o masculino), aquele está, logicamente subordinado a este. Isso porque, já que a produção de mercadorias é colocada como atividade detentora da hegemonia, as demais atividades – até mesmo a de produção da vida humana – se encontram em posição de subordinação diante do setor que produz e faz circular a riqueza.

Diante dessas estruturas de poder, de bases econômica, política e ideológica, envolvidas na perspectiva simbiótica, temos uma estrutura maior a qual sustenta e reproduz formas de perpetuação do status quo a partir dos sistemas de dominação-exploração atuando conjuntamente.

Analisando-se especificamente o patriarcado, é notável que ele serve aos interesses dos grupos/classes dominantes, visto que, aliando-se estruturalmente ao capital, ele prejudica e oprime mais ainda a classe trabalhadora. Assim, é de se observar que o sexismo configura, muito além de um preconceito, o poder de agir de acordo com ele138.

Tomando por base a afirmação de Saffioti ao registrar a análise de Pateman, temos que o contrato social não se contrapõe ao patriarcado, sendo ele a base do patriarcado moderno139. Sendo assim, a classe em ascensão a ser privilegiada pelo contrato social só teve reforçado o seu privilégio pelo patriarcado, adotado pelo próprio Estado enquanto ferramenta de manutenção do poder do grupo hegemônico.

135 SILVA, Marlise Vinagre. Violência contra a mulher: quem mete a colher? São Paulo: Cortez, 1992. p. 27. 136 SILVA, Marlise Vinagre. idem.

137 SOUZA, Terezinha Martins dos Santos. Patriarcado e capitalismo: uma relação simbiótica. Temporalis, Brasília, v. 15, n. 30, jan. 2016. Disponível em: <http://periodicos.ufes.br/temporalis/article/view/10969/8406>. Acesso em: 01 mai. 2017. p. 488.

138 SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero patriarcado violência. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular: Fundação Perseu Abramo, 2015. p. 131.

Inclusive, a ideia de que o contrato social seria distinto do contrato sexual, onde predomina o patriarcado, integra a própria ideologia de gênero ao restringir este último à esfera privada. Isso é explicado quando se percebe que, a partir deste raciocínio, infere-se que o patriarcado não diz respeito à esfera pública ou para esta não tem relevância140, o que significa subjugar o papel de tal instituição na construção do ser social através das funções estatais.

Afirma Scott141 que o gênero também é construído através da economia e da organização política, atuando, na nossa sociedade, de forma amplamente independente do âmbito privado envolvido no simples parentesco.

Portanto, os diversos sistemas de dominação-exploração são bastante úteis aos interesses do capital no que se refere a delimitar cada vez mais um seleto grupo social privilegiado, de modo a sempre haver formas de explorar cada vez mais pessoas com o fim de alcançar seu objetivo lucrativo com maior êxito. É justamente nesse sentido que Saffioti142 define a simbiose patriarcado-racismo-capitalismo como consolidadora do poder do macho branco e adulto, este enquanto integrante da classe dominante.

Vale ressaltar que a relação de dominação-exploração do masculino sobre o feminino, partindo da análise simbiótica adotada, é potencializada quando se trata da relação entre homem adulto e menina criança ou adolescente. Além de respaldarem esta última relação os padrões de gênero, incidem sobre ela os padrões adultocêntricos, ambos envolvidos no contexto do capitalismo, havendo uma interpenetração também entre esses sistemas.

Diante disso, a ideologia das classes dominantes impõe seus valores às pessoas ainda durante a infância destas, como uma expressão de supremacia do mundo adulto. Na mesma medida, são reproduzidos os valores patriarcais à população infanto-juvenil, que finda por sofrer com as determinações e a violência de gênero no momento da vida dela que é marcado pela sua formação social.

Barret, utilizando a ideia de Althusser do funcionamento da ideologia através de rituais institucionalizados com o efeito de gerar formas de subjetividade social, sustenta que a família é a primeira responsável pela disseminação da ideologia de gênero143. A autora entende que, de

140 SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero patriarcado violência. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular: Fundação Perseu Abramo, 2015. p. 135.

141 SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical analyses. Tradução: Christine Rufino Debat e Maria Betània Ávila. Gender and the politics of history. New York. Columbia University Press. 1989. Disponível em: <http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/185058/mod_resource/content/2/G%C3%AAnero-

Joan%20Scott.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2017. p. 22.

142 SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. São Paulo: Editora Moderna, 1987. (Coleção Polêmica). p. 64. 143 BARRET, 1980, p. 249, apud BOUCHER, Geoff. Marxismo. Tradução: Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes, 2015 (Série Pensamento Moderno). p. 229.

modo profundamente inconsciente, ocorre a naturalização ideológica dos papeis culturalmente destinados a homens e a mulheres144.

A referida disseminação no meio familiar se dá quando a menina tende a repetir o papel da mãe e o menino toma o pai como modelo, penetrando a ideologia dominante nas cabeças dos membros das classes dominadas. Dessa maneira se segue a lógica evidenciada por Marlise Silva145 de que os grupos dominantes, visando ampliar e garantir sua supremacia sobre os dominados, fazem uso de diversas estratégias, sejam elas as mais sutis ou mesmo as mais explícitas e, até mesmo, brutais.

Além da família, o Direito também funciona como um aparelho a serviço do Estado, este implementado em consonância com a ideologia dominante, conforme discutido acerca das formulações althusserianas e do marxismo estruturalista. Com esta consideração e uma vez entendido que a referida ideologia se utiliza de vários sistemas de dominação-exploração para impor a dominação das classes dominadoras sobre as dominadas, cabe questionar qual o papel do Direito diante desses aspectos, o que será feito a seguir.

4.3 O APARATO JURÍDICO ESTATAL COMO INSTRUMENTO PARA A REPRODUÇÃO