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UMA PERSPECTIVA MARXISTA: A IDEIA DE APARELHOS IDEOLÓGICOS DE ESTADO, DE LOUIS ALTHUSSER, PARA REPRODUÇÃO DA LÓGICA DE

4 O ESTADO ENQUANTO PERPETUADOR DA CULTURA DE ESTUPRO NO CONTEXTO DE OPRESSÃO DE MENINAS ABUSADAS SEXUALMENTE

4.1 UMA PERSPECTIVA MARXISTA: A IDEIA DE APARELHOS IDEOLÓGICOS DE ESTADO, DE LOUIS ALTHUSSER, PARA REPRODUÇÃO DA LÓGICA DE

DOMINAÇÃO OPRESSORA

Para tratar dos Aparelhos Ideológicos de Estado, faz-se necessário, inicialmente, inserir esta ideia no contexto do marxismo estruturalista, corrente seguida por Althusser, idealizador dos referidos aparelhos ideológicos.

O marxismo estruturalista surgiu na década de 1960 como forma de produzir o renascimento do materialismo histórico, tendo formulado o retorno às ideias de Marx, de modo a revelar como descobertas fundamentais deste algumas categorias até então completamente desconhecidas. Assim, os marxistas estruturalistas não aceitavam que Marx tivesse pensado no

nível econômico como o constante fundamento dos níveis político e ideológico, levando-os a definir uma relativa autonomia destes dois últimos níveis em relação à economia, para evitar reduzir vulgarmente o marxismo ao nível econômico102.

As obras de Karl Marx denotam que ele concebeu a estrutura de qualquer sociedade a partir da articulação de dois níveis ou instâncias, quais sejam a infraestrutura ou base econômica (compreendendo as forças produtivas e as relações de produção) e a superestrutura (comportando o jurídico-político e a ideologia)103. Assim, a estrutura econômica da sociedade consistiria na base sobre a qual se ergue a superestrutura, sendo o Estado determinado pela estrutura econômica, constituída a partir das relações de produção104.

Contudo, Althusser105 afirmou a necessidade de repensar essa tese do marxismo clássico a partir da ideia de reprodução dos meios, possibilitando entender o essencial da existência e da natureza da superestrutura.

O conceito althusseriano de modo de produção envolve a articulação entre instâncias diversas, não sendo mais a superestrutura apenas um reflexo da infraestrutura, mas como aquela sendo parte do modo de produção, juntamente à instância econômica106.

Para o marxismo estruturalista de Althusser, o capitalismo se baseia em uma estrutura social cuja totalidade orgânica é articulada em níveis ou instâncias, de modo que o marxismo teria como objetivo desvendar a estrutura que alicerça, produz e reproduz os fenômenos sociais observáveis107.

Assim, essa vertente do marxismo entende que a economia nunca age fora de uma estrutura maior das relações sociais na qual ela se insere, de modo que a formação social é estruturada em uma totalidade complexa, se dando através da interação de diversas instâncias. Além da economia, a política, o direito e a ideologia interagem entre si e se influenciam reciprocamente, segundo a interpretação de Althusser para as teorias de Marx108.

102 BOUCHER, Geoff. Marxismo. Tradução: Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes, 2015 (Série Pensamento Moderno). p. 195-196.

103 ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado: notas para uma investigação. Tradução: Joaquim José de Moura Ramos. Lisboa: Editora Presença, 1980. p. 25-26.

104 GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel: as concepções de Estado em Marx, Engels, Lênin e Gramsci. Tradução: Dario Canali. Porto Alegre: L&PM, 2001. p. 32.

105 ALTHUSSER, Louis. op. cit., p. 28-29.

106 SAES, Décio. Marxismo e história. Crítica Marxista, Campinas, n. 1, 1994. Disponível em: <http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/2011/sociologia/artigos/maxismo_hi storia.pdf>. Acesso em: 04 mai. 2017. p. 44.

107 MINAYO, Maria Cecília de Souza. Estrutura e sujeito, determinismo e protagonismo histórico: uma reflexão sobre a práxis da saúde coletiva. Ciência e saúde coletiva, v. 6, n. 1, 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/%0D/csc/v6n1/7022>. Acesso em: 04 mai. 2017. p. 9-10.

Nada obstante, uma das referidas instâncias é definida como dominante na formação social, de acordo com o momento histórico vivido, em função de ser assimétrica a relação entre estas instâncias. Logo, no capitalismo, certamente a economia figura como nível estrutural dominante sobre as demais, mas isto ocorre como uma peculiaridade histórica109.

A complexidade do todo formado pelos níveis estruturais é construída pelo fornecimento das condições materiais de existência por parte das estruturas subordinadas à manutenção da dominante nesta condição110.

Valendo-se dos ensinamentos de Marx sobre as relações de produção, Louis Althusser aduz que, nesse meio, também se faz necessária a reprodução da força de trabalho competente, qual seja aquela apta a funcionar diante do complexo sistema do processo de produção111. Assim, a reprodução da força de trabalho exigida envolve a reprodução da submissão às regras da ordem estabelecida, indicando que se reproduza a submissão à ideologia dominante para os operários, ao mesmo tempo que é reproduzida a capacidade para manejar bem tal ideologia por parte dos agentes da exploração112.

Abordando especificamente a ideologia, afirma-se que esta consiste em uma “representação” da relação imaginária dos indivíduos com suas reais condições de existência. A ideologia é sustentada por uma relação de natureza imaginária, onde as pessoas representam a forma como elas se relacionam com suas condições reais de existência ao invés de representarem seu mundo real, sendo toda representação ideológica uma relação imaginária do mundo real113. Logo, a ideologia se forma como resultado de um “processo de conformidade com as rotinas institucionais e as práticas habituais”114.

A ideologia tem o efeito característico de impor as evidências como tais, de modo que não podemos deixar de reconhecê-las e, consequentemente, tomá-las como verdadeiras. Assim, se dá o reconhecimento ideológico, trazido como uma das funções da própria ideologia115.

109 BOUCHER, Geoff. Marxismo. Tradução: Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes, 2015 (Série Pensamento Moderno). p. 201-202.

110 BOUCHER, Geoff. ibidem, p. 204.

111 ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado: notas para uma investigação. Tradução: Joaquim José de Moura Ramos. Lisboa: Editora Presença, 1980. p. 19.

112 ALTHUSSER, Louis. ibidem, p. 21-22.

113 ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado. Tradução: Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. p. 87.

114 BOUCHER, Geoff. op. cit., p. 223.

115 ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado. Tradução: Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. p. 94-95.

Dessa maneira, a ideologia é concebida para recrutar agentes, os quais se reconhecem como sujeitos através do mencionado uso das evidências, para que estes adotem uma determinada visão de mundo, que não corresponde à sua própria realidade116. Não é tão compatível assim com a ideologia a função de explicar cientificamente o mundo.

Althusser, então, assevera que a ideologia age nos níveis mais básicos da formação da personalidade, gerando sujeitos sociais, de modo a enquadrá-los em determinados papeis funcionais. Contudo, isso se dá de forma profundamente inconsciente, ou seja, por meio de uma naturalização inconsciente do que o indivíduo aprende como percepção do seu mundo117.

Tomando por base os apontamentos acerca da ideologia, trata-se da reprodução das relações de produção, questão crucial da teoria marxista do modo de produção.

Nesse sentido, é exposta como, em grande parte, asseguradora da reprodução das relações de produção a superestrutura (jurídico-política e ideológica). No entanto, Althusser, indo além da linguagem tópica descritiva proposta por Marx, entende que a referida reprodução resta assegurada pelo exercício do poder de Estado presente nos Aparelhos de Estado118.

A teoria marxista-leninista do Estado define este como o próprio Aparelho de Estado, o qual é entendido como força de execução e de repressão, estando, na luta de classes travada pela burguesia e seus aliados contra o proletariado, ao serviço das classes dominantes119.

Partindo desse pressuposto, Althusser propõe a tese de que o retro mencionado Aparelho de Estado, na verdade, é formado pelos Aparelhos Repressivos de Estado (ARE), ao lado dos quais estão situados os Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE). Diferenciam-se esses dois tipos de aparelhos de Estado, apesar de ambos empregarem a ideologia e a repressão ao mesmo tempo, pela proporção com que são estas utilizadas em cada um120. Portanto, enquanto prevalece o funcionamento pela repressão nos ARE, a prevalência nos AIE é de um funcionamento pela ideologia121.

116 ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado. Tradução: Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. p. 96.

117 BOUCHER, Geoff. Marxismo. Tradução: Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes, 2015 (Série Pensamento Moderno). p. 219.

118 ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado: notas para uma investigação. Tradução: Joaquim José de Moura Ramos. Lisboa: Editora Presença, 1980. p. 54.

119 ALTHUSSER, Louis. ibidem, p. 32. 120 BOUCHER, Geoff. op. cit., p. 224.

121 ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado: notas para uma investigação. Tradução: Joaquim José de Moura Ramos. Lisboa: Editora Presença, 1980. p. 47.

Dessa forma, os Aparelhos Ideológicos de Estado podem ser entendidos como realidades que se apresentam “sob a forma de instituições distintas e especializadas”122,

servindo para perpetuar ideologias que beneficiam a classe dominante sem se valer, em regra, da repressão. Por seu caráter de multiplicidade123, os AIE se apresentam como unificados pela ideologia dominante124.

Assim, resta definida a forma de atuação de uma das instâncias estruturais, que se articula às demais pelo modo de produção, cujas relações são reproduzidas a partir dos AIE, visando à formação social em conformidade com os padrões hegemônicos, definidos pela classe dominante.

Ao propor uma lista empírica das realidades que se apresentam como Aparelhos Ideológicos de Estado, Louis Althusser elenca o Aparelho Ideológico de Estado jurídico, fazendo a ressalva de que o Direito se enquadra, simultaneamente, como ARE e como AIE125.

É de se visualizar que o Aparelho Ideológico de Estado jurídico assim o é pela existência de uma ideologia jurídica, a qual se observa pela criação da categoria “sujeito de direito”. Tal categoria é apresentada por Althusser como uma noção ideológica pelo fato de ela propor que o ser humano é naturalmente um sujeito. Pela tese de que “só há ideologia pelo sujeito e para o sujeito”126, aquela proposição cria a condição necessária ao desenvolvimento de uma ideologia,

tendo em vista que provoca o reconhecimento de cada indivíduo enquanto sujeito ideológico. A ideologia dominante que unifica os Aparelhos Ideológicos de Estado se baseia em diversos tipos de opressão, as quais envolvem relações de exploração, aptas a fortalecerem a dominação de um segmento social específico sobre outros. É nesse sentido que se insere o patriarcado como colaborador da ordem social hegemônica, dentro de um contexto onde as relações sociais se desenvolvem em torno da questão do poder e em função de outras determinantes além da classe, inclusive a de sexo.

4.2 O PATRIARCADO INTEGRANDO A IDEOLOGIA DOMINANTE

122 ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado: notas para uma investigação. Tradução: Joaquim José de Moura Ramos. Lisboa: Editora Presença, 1980. p. 43.

123 Althusser afirma que os AIE são múltiplos, distintos e relativamente autônomos e exprimem as contradições que se mostram como efeitos dos choques entre a luta de classes capitalista e a luta de classes proletária. Por outro lado, os ARE constituem membros de um todo organizado, os quais estão subordinados a uma “unidade de comando, a da política da luta de classes aplicada pelos representantes políticos das classes dominantes que detêm o poder de Estado” (ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado: notas para uma investigação. Tradução: Joaquim José de Moura Ramos. Lisboa: Editora Presença, 1980. p. 54-55).

124 BOUCHER, Geoff. Marxismo. Tradução: Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes, 2015 (Série Pensamento Moderno). p. 224.

125 ALTHUSSER, Louis. op. cit., p. 44. 126 ALTHUSSER, Louis. op. cit., p. 93.