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A CULPABILIZAÇÃO DA MENINA VÍTIMA DE ABUSO SEXUAL POR SUA CONDIÇÃO DE VULNERABILIDADE E DE GÊNERO

3 O TRATAMENTO SÓCIO-JURÍDICO DISPENSADO A CRIANÇAS E ADOLESCENTES

3.3 A CULPABILIZAÇÃO DA MENINA VÍTIMA DE ABUSO SEXUAL POR SUA CONDIÇÃO DE VULNERABILIDADE E DE GÊNERO

79 SCHMICKLER, Catarina Maria. O Protagonista do Abuso Sexual: Sua lógica e estratégias. Chapecó: Argos, 2006. p. 36.

80 SCHREINER, Marilei Teresinha. O abuso sexual numa perspectiva de gênero: o processo de responsabilização da menina. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008. p. 42.

Quando se revela a ocorrência do abuso sexual, a menina violada passa a sofrer com a culpa que recai sobre ela em decorrência do ideário do adulto como referencial de confiança, além da cultura do estupro.

No momento em que decidem romper o silêncio acerca da violência sexual sofrida, crianças e adolescentes, conforme Moreira82, deparam-se com uma atitude não muito acolhedora por parte da pessoa em quem elas depositam confiança para fazerem a revelação. Acaba sendo comum, nestas situações, o silenciamento dos infantes ou o aconselhamento para que se mantenha distância do agressor, passando a ideia de que nada pode ser feito e, consequentemente, a responsabilidade pela agressão é da própria vítima, quem deve suportar o a dor à qual teria dado causa.

A autora ainda menciona como ponto negativo nessa situação a questão do descrédito na palavra da criança em razão do preconceito incutido no imaginário social de que esta não consegue distinguir a realidade da fantasia. Assim, é atribuído à vítima o sofrimento com algum grave transtorno psicopatológico, o que pode acontecer em alguns casos, mas, em verdade, são observados como exceções à regra83.

Revelando o fato de que a maioria dos casos de abuso sexual contra meninas ocorrem em âmbito intrafamiliar, Schreiner84 afirma, com base em sua pesquisa através de entrevistas com profissionais da área, que as mães das vítimas, inicialmente, negam a violência. Elas justificam as denúncias feitas pelas filhas como se fossem subterfúgio para estas escaparem da disciplina do pai/padrasto e, assim, poderem sair e namorar (nos casos de adolescentes) ou para não estudarem (quando se tratam de crianças).

Sobre essa negação, por parte de familiares, dos fatos abusivos, a mesma autora explica que ela caracteriza o abuso praticado como algo que não possa ser dito, ampliando ainda mais a culpabilização da menina, uma vez que a ela é imputada uma responsabilidade por algo que nem mesmo os adultos são capazes de se responsabilizarem85.

Por outro lado, a culpabilização das meninas agredidas também se manifesta a partir do momento que elas, além de serem acusadas como passivas, são percebidas como sedutoras e

82 MOREIRA, Maria I. C.; SOUSA, Sônia M. G.; SILVA, Maria A. A. da. A violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes: análise da situação e recomendações para o enfrentamento e prevenção. In: SOUSA, Sônia M. G.; MOREIRA, Maria I. C. (Orgs.). Quebrando o silêncio - disque 100: estudo sobre a denúncia de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil. Goiânia: Cânone Editorial, 2013. p. 41.

83 MOREIRA, Maria I. C.; SOUSA, Sônia M. G.; SILVA, Maria A. A. da. ibidem, p. 41-42.

84 SCHREINER, Marilei Teresinha. O abuso sexual numa perspectiva de gênero: o processo de responsabilização da menina. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008. p. 83.

85 SCHREINER, Marilei Teresinha. O abuso sexual numa perspectiva de gênero: o processo de responsabilização da menina. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008. p. 44.

provocadoras da sexualidade masculina, figurando como culpadas pela violência por elas sofrida. Assim, mãe e filha são postas em posições de rivais nas situações de incesto86.

Alimentando a dúvida sobre o discurso das crianças e adolescentes vítimas de abuso, bem como o discurso de que são estas as sedutoras do abusador, muitas pessoas se valem da teoria de Freud de que os relatos das suas pacientes sobre abusos sexuais contra elas perpetrados por seus pais eram fantasias. Fazendo uso de distorção dessa teoria, afirmou-se que as referidas fantasias derivariam do desejo dessas mulheres, quando mais jovens, de serem possuídas pelos pais, destronando, assim, suas mães.

No entanto, Gallop87 e Masson88, em suas pesquisas, demonstraram que se tratavam de relatos de abusos sexuais reais o que Freud entendeu como fantasias de sedução de suas pacientes.

Ademais, pesquisa destacada por Saffioti89, realizada entre 1988 e 1992, constatou que não foi encontrado qualquer caso de fantasia dentre as investigadas. Ressalta-se que a infante pode até enfeitar o ocorrido, mas o fato de que ela foi molestada por seu próprio pai se mostrava evidente.

Nada obstante, a referida teoria elaborada por Freud permanece surtindo efeitos negativos quanto à responsabilização de meninas abusadas sexualmente. Inclusive, reflexo desse pensamento é a tentativa da mãe, nas situações de abuso intrafamiliar, de culpabilizar a filha agredida, uma vez que, do seu ponto de vista, a menina seduziu seu pai, o qual resta aliviado da responsabilidade90.

Corroborando o pensamento derivado da teoria de Freud, a educação formal e a informal expõem crianças e adolescentes, principalmente as meninas, a estímulos eróticos muito

86 NARVAZ, Martha; KOLLER, Sílvia Helena. O feminino, o incesto e a sedução: problematizando os discursos de culpabilização das mulheres e das meninas diante da violação sexual. Revista Ártemis, João Pessoa, Vol. 6, junho/2007. Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/artemis/article/view/2127>. Acesso em: 17 abr. 2017. p. 79.

87 GALLOP, 1982, apud NARVAZ, Martha; KOLLER, Sílvia Helena. O feminino, o incesto e a sedução: problematizando os discursos de culpabilização das mulheres e das meninas diante da violação sexual. Revista Ártemis, João Pessoa, Vol. 6, junho/2007. Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/artemis/article/view/2127>. Acesso em: 17 abr. 2017. p. 80

88 MASSON, 1984, apud NARVAZ, Martha; KOLLER, Sílvia Helena. O feminino, o incesto e a sedução: problematizando os discursos de culpabilização das mulheres e das meninas diante da violação sexual. Revista Ártemis, João Pessoa, Vol. 6, junho/2007. Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/artemis/article/view/2127>. Acesso em: 17 abr. 2017. p. 80.

89 SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero patriarcado violência. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular: Fundação Perseu Abramo, 2015. p. 20.

90 SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero patriarcado violência. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular: Fundação Perseu Abramo, 2015. p. 24.

precocemente, exposição essa que se adequa aos padrões patriarcais, os quais impõem à mulher o papel de objeto sexual e a preparam para este exercício desde cedo91.

Nesse sentido, diante da construção da imagem da menina sedutora, esta, enquanto vitimada pelo abuso sexual, desenvolve o sentimento de culpa, se sentindo responsável pelo ocorrido.

Schmickler92 assevera que, geralmente, o abuso sexual não está necessariamente associado a ameaças claras baseadas em violência física, sendo caracterizado por um processo de sedução, em que os gestos abusivos se misturam aos afetivos e confundem a vítima. Dessa maneira, realiza-se o convencimento da menina no sentido de que ela tem capacidade para determinadas iniciativas de uma mulher adulta, tornando-a responsável pela situação, “autorizando” o abusador a afirmar que a menor não é vítima.

Mais uma vez, a pesquisa de Schreiner93 confirma o exposto por meio dos depoimentos colhidos, os quais demonstram que as próprias mães das vítimas afirmam que estas se insinuaram ou provocaram a situação de abuso sexual intrafamiliar.

Importante ressaltar que as atitudes das mães retratadas diante dos abusos cometidos contra suas filhas não podem ser interpretadas de imediato como negligência ou conivência, visto que elas precisam ser observadas diante do contexto histórico de subordinação feminina. Narvaz94 lembra que “não se pode atribuir igual responsabilidade a pessoas que têm diferentes percentuais de poder em uma relação”. Assim, a proteção do marido abusador por parte da mãe da vítima em detrimento da culpabilização desta é notada como mais um reflexo do patriarcado sobre as mulheres.

Deixando a questão da culpabilização da menina vitimada por parte da mãe, observa-se que a mesma responsabilização se dá partindo de diversos profissionais em contato com essas situações, inclusive os que atuam nos sistemas de garantias de direitos da infância e da adolescência. Isso acaba ocorrendo em virtude do despreparo técnico de tais profissionais, os quais se influenciam pela crença de que as crianças fantasiam sobre o abuso, bem como tendem a desacreditar a revelação da violência sexual e, consequentemente, dificultar o acolhimento

91 SCHREINER, Marilei Teresinha. O abuso sexual numa perspectiva de gênero: o processo de responsabilização da menina. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008. p. 94.

92 SCHMICKLER, Catarina Maria. O Protagonista do Abuso Sexual: Sua lógica e estratégias. Chapecó: Argos, 2006. p. 42. 15. p. 42.

93 SCHREINER, Marilei Teresinha. op. cit., p. 92.

94 NARVAZ, Martha; KOLLER, Sílvia Helena. O feminino, o incesto e a sedução: problematizando os discursos de culpabilização das mulheres e das meninas diante da violação sexual. Revista Ártemis, João Pessoa, Vol. 6, junho/2007. Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/artemis/article/view/2127>. Acesso em: 17 abr. 2017. p. 79-80.

desta revelação. Logo, é caracterizada uma forma de revitimização da criança e da adolescente abusada. 95

De acordo com Schreiner96, o processo de responsabilização da menina violentada desenvolvido no âmbito institucional se inicia quando ela é encaminhada ao Programa de Proteção ou mesmo é afastada da família e direcionada ao que chamamos hoje de Unidade de Acolhimento Institucional. Entretanto, o abusador permanece, na maioria das vezes, no conforto do lar sob o benefício da dúvida. Portanto, somente a vítima fica privada do convívio familiar, o que pode ser deveras impactante para ela, tendo em vista sua condição de ser em desenvolvimento peculiar.

A nível de atuação do Sistema Judiciário em si, Roque97 considera que, apesar de ser respeitado o inteiro teor da lei, tal atuação reproduz internamente as relações de poder e os valores da sociedade, gerando mais uma violência contra as crianças e adolescentes. Isso é explicado pela autora no sentido de que a instituição jurídica abordada faz parte do exercício do poder e a prática da violência, por seu turno, integra qualquer poder institucionalizado. Ou seja, se é poder, tem violência e, por conseguinte, o Poder Judiciário acaba por revitimizar as meninas vítimas de abuso sexual.

Nesse sentido, os julgamentos dos casos de abuso sexual de crianças e adolescentes também estão envolvidos pelo machismo e pelo adultocentrismo, enquanto valores sociais. Dessa forma, são as meninas atingidas mais gravemente pela culpabilização delas enquanto vítimas por parte da própria atuação estatal, inclusive no que é denominado como vitimização secundária.

A vitimização secundária consiste na violência institucional do sistema processual penal a partir do momento que o processo investigatório violenta novamente as vítimas dos abusos sexuais, seja por meio de locais impróprios para a oitiva ou pela atuação de profissionais

95 NARVAZ, Martha; KOLLER, Sílvia Helena. O feminino, o incesto e a sedução: problematizando os discursos de culpabilização das mulheres e das meninas diante da violação sexual. Revista Ártemis, João Pessoa, Vol. 6, junho/2007. Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/artemis/article/view/2127>. Acesso em: 17 abr. 2017. p. 80.

96 SCHREINER, Marilei Teresinha. O abuso sexual numa perspectiva de gênero: o processo de responsabilização da menina. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008. p. 91.

97 ROQUE, Eliana M. de S. T. et al. Sistemas de justiça e a vitimização secundária de crianças e ou adolescentes acometidas de violência sexual intrafamiliar. Saúde Soc., São Paulo, v. 23, n° 3, jul./set. 2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902014000300801&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 abr. 2017. p. 808-809.

desqualificados, dentre outras causas98. Assim, Bitencourt99 entende que se evidencia o poder sobre a vítima, tendo em vista que a autoridade judicial, em função da representação institucional que lhe cabe, detém o poder sobre a vítima inquirida, a qual possui a pretensa verdade e acaba julgada e punida por aquela.

Como consequência da inquirição inadequada da criança ou adolescente com a finalidade de produzir provas, esta é levada a reviver o ocorrido, sendo associados os sentimentos de ofensa à sua capacidade de percepção, à sua credibilidade e à sua integridade100. É de se destacar que, no percurso processual, o drama vivido pela vítima em razão da sua inquirição pode perdurar um longo período, tempo em que a história do abuso sexual será repetida e revivida pela criança ou adolescente várias vezes, gerando danos psicológicos até mesmo irreversíveis. Observa-se, então, mais uma vez, o caráter de revitimização da vítima, que pode se sentir intimidada ao ponto de não depor ou de não contar detalhadamente os fatos, por se sentir constrangida, desacreditada e, em muitos casos, culpada.101

Dessa forma, resta claro que os abalos causados a crianças e adolescentes, especialmente as do sexo feminino, em instância institucional evidenciam uma caminhada na contramão da doutrina da Proteção Integral e dos princípios dela resultantes e constantes da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e do Adolescente, bem como da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente.

98 LIMA, Fernanda da Silva; FREITAS, Maria Serafim de. Vitimização secundária de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual: estudo sobre a rota crítica do atendimento pelo sistema de garantia de direitos. In: Seminário Internacional de Demandas Sociais e Políticas Públicas na Sociedade Contemporânea, XIII, 2016, Santa Cruz do Sul. Anais do XIII Seminário Internacional... Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2016. Disponível em: <http://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/sidspp/article/view/15784/3683>. Acesso em: 19 abr. 2017. (paginação irregular).

99 BITENCOURT, L. P. A vitimização secundária de crianças e adolescentes e a violência sexual intrafamiliar. 2007. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) - Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007. p. 19.

100 FERREIRA, Maria H. M.; AZAMBUJA, Maria R. F. de. Aspectos jurídicos e psíquicos da inquirição da criança vítima. In: FERREIRA, Maria H. M.; AZAMBUJA, Maria R. F. de. (Orgs.). Violência sexual contra crianças e adolescentes. Porto Alegre: Artmed, 2011. p. 55.

101 KÜHL, Franciele Letícia; SCHIRMER, Candisse. A necessidade de efetivação de políticas públicas no combate a revitimização das crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual. In: Seminário Internacional de Demandas Sociais e Políticas Públicas na Sociedade Contemporânea, XIII, 2016, Santa Cruz do Sul. Anais do XIII Seminário Internacional... Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2016. Disponível em: <http://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/sidspp/article/view/15875/3772>. Acesso em: 19 abr. 2017. (Paginação irregular).

4 O ESTADO ENQUANTO PERPETUADOR DA CULTURA DE ESTUPRO NO