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TRATAMENTO LEGAL DISPENSADO A CRIANÇAS E ADOLESCENTES ANTES E DEPOIS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO

3 O TRATAMENTO SÓCIO-JURÍDICO DISPENSADO A CRIANÇAS E ADOLESCENTES

3.1 TRATAMENTO LEGAL DISPENSADO A CRIANÇAS E ADOLESCENTES ANTES E DEPOIS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO

ADOLESCENTE (LEI N° 8.069/1990)

Por muito tempo, a questão da infância e adolescência no Brasil refletiu um processo histórico de negação de direitos a crianças e adolescentes, em virtude de uma visão adultocêntrica, através da qual a intervenção de adultos dominava o mundo daqueles sujeitos45. Nessa fase, nem mesmo a legislação se preocupava com a condição de seres em

45 FERREIRA, Adeilza Clímaco. “Eu quero ver se a justiça vai funcionar mesmo”: a resolubilidade dos casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes no município de Natal/RN. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2014. p. 42.

desenvolvimento das crianças e dos adolescentes, de modo que ela não lhes assegurava qualquer proteção especial.

À época colonial do Brasil, o pai detinha o direito de castigar seus filhos e suas filhas como forma de educá-los, o que era garantido para o resguardo da autoridade parental, especificamente da figura adulta masculina. Somente na fase imperial houve alguma preocupação estatal com os considerados menores de idade, contudo tal preocupação não se dava no sentido de protegê-los, mas de punir os infratores, fossem eles adultos ou não, por meio de uma política repressiva fundada no temor ante a crueldade das penas aplicadas. Portanto, a preocupação do Direito com crianças e adolescentes se limitava às punições pela prática de infrações penais, enquanto que a atuação estatal fora do campo infracional se dava através das atividades da Igreja.46

Entre algumas pequenas mudanças trazidas pelos Códigos Penais no sentido de tratar da idade em que se consideraria a pessoa como inimputável, apenas com a edição dos dois primeiros Códigos de Menores do Brasil, em 1927 e 1979, se observou uma consciência geral de que o Estado teria o dever de proteger a infância e a adolescência. No entanto, essa “proteção” ainda se dava através da supressão das garantias de crianças e adolescentes, visto que ela findava por criminalizar a infância pobre pela aplicação de doutrina fundada no binômio carência/delinquência.

Amin47 assevera que, a partir desse momento, já se delineava a Doutrina da Situação Irregular, quando se tratava dos cuidados aos infantes expostos e abandonados. Após, com o Código de 1927 (mais conhecido como Código Mello de Mattos), firmou-se que a família, independentemente da situação econômica, seria a responsável por suprir as necessidades básicas das crianças e dos adolescentes, em consonância como o modelo idealizado pelo Estado. Além disso, ficou a encargo do Juiz de Menores a decisão acerca do destino dos infantes encontrados sob a denominada situação irregular e medidas assistenciais e preventivas foram previstas para minimizar a infância na rua, objetivando a promoção de uma higienização social. De acordo com Faleiros48, o Código de Menores de 1927 incorporou, além da visão de proteção do meio e do indivíduo dos higienistas, a visão repressiva e moralista de juristas, tendo tais agentes encaminhado estratégias de controle da raça e da ordem.

46 AMIN, Andréa Rodrigues. Evolução Histórica do Direito da Criança e do Adolescente. In: MACIEL, Kátia Regina F. L. A. (Coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente: Aspectos Teóricos e Práticos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010. p. 05.

47 AMIN, Andréa Rodrigues. op. cit, p. 06.

48 FALEIROS, Vicente de Paula. Infância e processo político no Brasil. In: RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco. A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. 3 ed. São Paulo: Cortez Editora, 2011. p. 42.

Em 1979, foi promulgado o Novo Código de Menores, adotando expressamente a Doutrina da Situação Irregular – que já vinha sendo aplicada na prática pelos Códigos anteriores –, segundo a qual os menores são alvo de atuação legal e jurídica quando se encontrarem em estado de patologia social, definida legalmente49. Sob a incidência desta doutrina, a atuação do poder estatal sobre a infância e a juventude pela aplicação do Código de Menores de 1979, segundo Leite50, se dava basicamente de duas formas. Assim, uma vez constatada a “situação irregular”, passava o “menor” a ser objeto de tutela do Estado. Por outro lado, praticamente toda e qualquer criança ou adolescente pobre era considerada “menor em situação irregular”, de modo a legitimar a intervenção do Estado por meio da ação direta do Juiz de Menores.

A definição de situação irregular dada pelo Código de 1979, segundo Faleiros51, se baseava na privação de condições essenciais à subsistência, saúde e instrução do menor de idade, por ação, omissão ou irresponsabilidade dos pais ou responsáveis. Além disso, também era considerada na referida situação o infante vítima de maus-tratos ou que estivesse em perigo moral, fosse em virtude de exploração, fosse por privação de representação legal ou mesmo por encontrar-se em atividades contrárias aos bons costumes, caracterizadas como desvio de conduta ou como autoria de infração penal. Dessa forma, o autor indica que as condições sociais findavam se reduzindo à ação dos pais ou do próprio menor, sendo dado ao juiz o poder de decidir o que seria melhor para aquele, seja assistência, proteção ou vigilância.52

Cabe destacar que o referido Novo Código de Menores foi editado sob a égide de uma ditadura militar instaurada no país, quando o Estado se alinhava à perspectiva de um modelo autoritário, estando a atuação estatal direcionada para a violação e restrição dos direitos humanos.

Segundo Custodio53, esse modelo autoritário gerava a reprodução das condições planificadas de exclusão social, econômica e política, baseada em critérios que acentuavam as práticas de discriminação racial e de gênero, bem como em um marco referencial o qual servia

49 CAVALLIERI, Alyrio. Direito do menor. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 85.

50 LEITE, Carla Carvalho. Da doutrina da situação irregular à doutrina da proteção integral: aspectos históricos e mudanças paradigmáticas. Juizado da Infância e da Juventude, Porto Alegre, n. 5, mar. 2005. p. 14. 51 FALEIROS, Vicente de Paula. op. cit., p. 70.

52 Nesse mesmo sentido, Custodio dispõe que a situação de irregularidade sempre recaía sobre a criança pela própria previsão jurídica ou pela condição de fragilidade que a submetia às imposições adultas. Dessa forma, era produzido o “paradoxo da reprodução da exclusão integral pela via da inclusão na condição de objeto de repressão”, capaz de responsabilizar o menino e a menina pobres pela sua própria condição de irregularidade. (CUSTODIO, André Viana. Teoria da proteção integral: pressuposto para compreensão do direito da criança e do adolescente. Revista do Direito, Santa Cruz do Sul, jan. 2008. Disponível em: <https://online.unisc.br/seer/index.php/direito/article/view/657/454>. Acesso em: 10 abr. 2017. p. 25).

53 CUSTODIO, André Viana. Teoria da proteção integral: pressuposto para compreensão do direito da criança e do adolescente. Revista do Direito, Santa Cruz do Sul, jan. 2008. Disponível em: <https://online.unisc.br/seer/index.php/direito/article/view/657/454>. Acesso em: 10 abr. 2017. p. 24-25.

para a construção de uma imagem da infância a partir daquilo que ela não tinha capacidade para ser. Logo, esta teoria jurídica das incapacidades, através da reafirmação de uma concepção negativa e redutora do ser humano embasada no adultocentrismo, serviu de instrumento operacional naquela conjuntura onde era imposta a ideologia da segurança nacional.

Na década de 1980, com o processo de redemocratização do Brasil e a consequente discussão em torno da regularização dos direitos sociais e da participação e controle social, houve uma grande articulação da sociedade em busca da garantia de avanços na legislação e nas políticas públicas.

Nesse contexto de afirmação de direitos, se deram os debates sobre a reestruturação da política de atendimento dos direitos das crianças e dos adolescentes, embasados nas discussões internacionais já existentes sobre o tema e visando a eliminação das antigas formas de autoritarismo e a ruptura com a legislação em vigor na época. Destacaram-se nesses debates os movimentos sociais e as organizações não-governamentais recém surgidos no cenário nacional, os quais deram início a uma ampla mobilização para que fossem introduzidos na nova Constituição Federal os direitos da criança e do adolescente54.

Ressaltando a importância do papel dos movimentos sociais na defesa dos direitos da infância e da adolescência, Custodio55 afirma terem sido aqueles, juntamente com a reflexão produzida em diversos campos do conhecimento, que proporcionaram a definição do Direito da Criança e do Adolescente a partir de uma perspectiva diferenciada, possibilitando mudanças na realidade concreta. Logo, a teoria então adotada incorporou à sua essência a valiosa contribuição da sociedade civil, deixando de ser formada apenas como criação de juristas especializados ou decorrente de uma declaração de princípios propostos pela Organização das Nações Unidas.

Por resultado dessas mobilizações, a Constituição Federal de 198856 estabeleceu como dever absolutamente prioritário da família, da sociedade e do Estado a garantia à criança e ao adolescente do “direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”. Ainda foi elencada a proteção destes sujeitos de “toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” como dever primordial, consagrando o princípio

54 MILITÃO, Raquel Maíra dos Santos Alves. O sistema de garantia dos direitos da criança e do adolescente: análise da trajetória e do processo de resolubilidade dos casos de violência doméstica sexual em Recife – PE (2007- 2011). Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2013. p. 20.

55 CUSTODIO, André Viana. op. cit., p. 27. 56 Art. 227, caput, da Constituição Federal de 1988.

do melhor interesse da criança, previsto na Convenção dos Direitos da Criança e do Adolescente, de 198957. Assim, configurou-se a Carta Magna como diploma legal que inaugurou as disposições da doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente no país58. Seguindo esse mesmo caminho, foi promulgada a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), objetivando regulamentar e implementar o novo sistema adotado pela Constituição em consonância com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 1989, ratificada pelo Brasil no ano de 1990. Assim, tais disposições legais e constitucionais brasileiras as quais promulgaram os direitos da criança e do adolescente se tornaram vinculadas ao sistema mundial e nacional de proteção de direitos humanos, sendo afastada a criação de um sistema de proteção autônomo e isolado59.

A Doutrina da Proteção Integral se funda na necessidade de serem implementados os instrumentos jurídicos como via de garantirem todos os direitos fundamentais e sociais de crianças e adolescentes. Desse modo, a proteção integral é justificada pelo fato de naturalmente esses sujeitos se encontrarem em situação especial, visto que estão em fase de peculiar desenvolvimento, além de serem frequentemente observadas como vítimas frágeis e vulneráveis da omissão da família, da sociedade e do Estado60.

Com caráter de política pública, a Doutrina da Proteção Integral passa a substituir a Doutrina da Situação Irregular, de modo que crianças e adolescentes deixam de ser objetos de proteção assistencial e se tornam sujeitos de direitos. Para assegurá-los, estabelece-se um sistema de garantia de direitos, o qual compete ao Estado materializá-lo através de uma política de atendimento a ser posta em prática numa cogestão com a sociedade civil. Logo, trata-se de um modelo em que família, sociedade e poder estatal atuam conjuntamente em prol de um sistema de garantias o qual não mais se restringe à infância e juventude pobres, mas a todas as

57 “Artigo 3. Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança.” (BRASIL. Decreto n° 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990- 1994/d99710.htm>. Acesso em: 18 abr. 2017.)

58 CORADINI, Bruna Vieira; SILVEIRA, Anarita Araújo da. (Des)judicialização das demandas de crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social: em busca da concretização de direitos infanto-juvenis. In: PES, João H. F. (Coord.). Direitos Humanos: crianças e adolescentes. Curitiba: Juruá Editora, 2012. p. 239.

59 MILITÃO, Raquel Maíra dos Santos Alves. O sistema de garantia dos direitos da criança e do adolescente: análise da trajetória e do processo de resolubilidade dos casos de violência doméstica sexual em Recife – PE (2007- 2011). Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2013. p. 19.

60 JÚNIOR, Hermes S. da C.; PES, João H. F.. Os direitos das crianças e adolescentes no contexto histórico dos direitos humanos. In: PES, João H. F. (Coord.). Direitos Humanos: crianças e adolescentes. Curitiba: Juruá Editora, 2012. p. 36

crianças e adolescentes61, compreendendo tanto medidas de prevenção, quanto medidas de proteção ou reparação (quando o direito já se encontra ameaçado ou violado)62.

Ademais, é de se destacar que, em 12 de outubro de 1991, foi promulgada a Lei n° 8.242, criando o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), objetivando impulsionar a implantação do ECA e, consequentemente, das medidas de proteção integral de crianças e adolescentes63.

O CONANDA foi instaurado para atuar como responsável por deliberar resoluções normativas que consistem em mecanismos jurídicos para delinear as diretrizes político- administrativas as quais visem a consolidação dos direitos de crianças e adolescentes no país64.

Portanto, observa-se que o ordenamento jurídico, em âmbitos nacional e internacional, prezam pela proteção da infância e adolescência, inclusive diante da violência sexual. Contudo, conforme se observará adiante, não é o que se percebe sempre na realidade prática.

3.2 A REALIDADE DO ABUSO SEXUAL COMO VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA