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5.4 INTERFERÊNCIAS PÓS-MODERNAS

5.4.5 À flor da pele

Conforme Maffesoli (in SCHULER, SILVA, 2006), na pós-modernidade, então, o emocional se sobressai e a sociedade (que era intimamente racional na modernidade) passa a guiar-se pelas emoções. O sociólogo crê em uma ética do afeto, na construção de uma moral com base em laços existentes entre os indivíduos, na paixão e emoção como constituintes da cultura.

Uma nova socialidade, vinculada aos afetos e às emoções, está em voga. O homo estheticos utiliza a comunicação aliada à tecnologia para promover a existência. Não somente no dia a dia, mas também nas artes plásticas o todo orgânico se manifesta: as preocupações, desejos e ilusões coletivas são retratas através de telas, esculturas, performances.

A notícia do Digestivo Cultural intitulada Galeria Roberta Brito recebe a série de pinturas Explosões – 15 de julho –, por exemplo, elucida uma exposição da artista Aline Pascholati criada com foco nas características emotivas do ser humano.

[...] A série Explosões explora as nuances da psique humana, as emoções enclausuradas no inconsciente e reprimidas pelo homem contemporâneo, através de telas coloridas nas quais a tinta é lançada diretamente dos tubos. Em algumas vezes o suporte é esfaqueado. Quando recosturado representa a reconciliação com o eu interior e o sentimento presente no momento da criação. Assim, os espectadores podem liberar suas emoções através da contemplação dessas obras. [...] (OUTRO, 2015).

O fato é que, na pós-modernidade de Maffesoli, a globalização conduz a uma miscigenação de culturas e de modos de ser que resultam em diversas formas de conceber, viver a realidade. Frente a essa possibilidade, a arte é expandida: as criações utilizam o emocional para conectar, permitir a identificação dos indivíduos com as obras artísticas.

Da mesma forma, os textos jornalísticos utilizam-se dos sentimentos que despertam para cativar e, no jornalismo cultural, para aproximar o leitor de artistas, vidas, obras de arte. De certa forma, a ideia parece ser conectar o indivíduo à história contada para que exista uma comunhão, uma partilha de emoção.

Tal peculiaridade foi identificada nas quatro colunas especializadas encontradas nos veículos analisados: duas no Digestivo Cultural e duas no Ilustríssima. Em A margem negra – Digestivo Cultural, 4 de setembro – Gian Danton conta a história de um projeto artístico que começou a ser desenvolvido no passado (1989) e pode vir a realizar-se no presente. Como o autor relata, é um sonho a ser concretizado:

[...] Todo mundo estava falando de quadrinhos, mas precisávamos de algo diferente para a apresentação. Foi quando alguém me disse que no bloco de Artes, ao lado do nosso, havia um rapaz, Bené Nascimento, que trabalhava profissionalmente como desenhista, publicando em editoras de São Paulo. Um paraense fazendo quadrinhos era a novidade das novidades na época e fiz questão de entrevistá-lo. A entrevista, que deveria durar meia-hora, durou a tarde inteira (e os dois perdendo aula, claro) e, no final, um convite de Bené: que tal fazer um fanzine de quadrinhos? Assim surgiu ‘Crash!’, o primeiro fanzine paraense dedicado exclusivamente aos quadrinhos. [...] A partir dali surgiu uma parceria que se estenderia por vários anos e mexeria com o jeito como se fazia quadrinhos de terror no Brasil. O quadrinho de terror ganhou grande força no Brasil na década de 1960, quando os gibis da editora EC Comics foram proibidos nos EUA. As revistas que publicavam essas histórias tinham grande público aqui e não havia mais material inédito. A solução foi recorrer aos quadrinistas brasileiros e assim surgiu a era de ouro do terror nacional.

[...] A maioria das revistas nas quais publicávamos eram vendidas ensacadas, o que nos criava um problema. Não havia o costume atual de indicar na capa as histórias e os autores, de modo que nunca sabíamos se a revista tinha história nossa ou não. Assim, tivemos a ideia de colocar uma margem negra nas páginas. Isso permitia pudéssemos perceber se havia histórias nossas sem nem mesmo abrir o volume. Inadvertidamente isso se tornou uma estratégia de marketing: os fãs da dupla passaram a também procurar as margens negras nas revistas.

E Margem Negra é o título de um velho sonho nosso: um volume que republica todas as nossas histórias de terror, feitas no final dos anos 1980 e início dos 1990. O projeto foi colocado para financiamento coletivo no Catarse e pode ser acessado aqui. Se conseguirmos financiamento, talvez ouça mais algo que sempre me agradou: leitores dizendo que passaram noites sem dormir por minha causa. (DANTON, 2015, grifo do autor).

O sentimento do autor, da batalha e da conquista, narrado em primeira pessoa, carrega o leitor pelas linhas do texto e promove uma dimensão emocional, tornando-o capaz de sentir-se feliz pela realização do outro. A coluna se torna válida quando nutri o lado místico do ser humano, quando impele a percepção subjetiva.

Já em Camadas de Esquecimento – Ilustríssima, 27 de setembro – o estímulo resulta em um misto de desolação e nostalgia:

[...] O cenógrafo plantou divisórias referentes a várias áreas específicas da história. Eram biombos de madeira, de 5 metros x 2 metros, e autorizou-me a convidar para pintá-los artistas brasileiros: Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Arnaldo Pedroso D'Horta, Clóvis Graciano, o ceramista Rossi e um retratista, Eugenio Resende. Foi montada uma equipe de 50 operários – nela tivemos a chance de acomodar exilados clandestinos da Espanha. No porão executamos um laboratório de fotografia autossuficiente, para realizar fotomontagens. Ele foi chefiado por João Macedo, que trouxemos de Paris, onde estudava cinema.

Fez-se também uma cozinha, e o cuidado de seu abastecimento ficou com J. Matos, um ex-boxeador então à deriva.

Coube-me o privilégio de pintar na entrada da Oca um painel de 15 metros x 5 metros, sobre a cidade que nascera selvagem e, com formas abstratas, ia evoluindo para tornar-se civilizada. A capital paulista contava então com apenas 3 milhões de habitantes.

Ali ficou o painel por 20 anos, sobrevivendo à retirada geral. Teve a companhia ilustre de uma extraordinária mostra sobre o barroco italiano. Até que, por ordem de Ciccillo Matarazzo, o painel foi destruído sem que ninguém me avisasse. O Ministério da Aeronáutica havia solicitado o espaço para instalar ali o seu museu. Recentemente, a imprensa paulista redescobriu os murais escondidos em sua casa no Ibirapuera.

Faço aqui lembrar que, com esforço, salvam-se as assinaturas importantes dos artistas; não da mesma forma as obras em si, feitas com materiais que eram os normalmente empregados nessas mostras efêmeras, de pouca durabilidade, caros de reanimar.

De tudo tenho saudades. Será que é tarde para esquecer ou cedo para rememorar- nos? (LEMOS, 2015, n.31.588, p. 7).

Mais uma vez, o sentimental circunda o texto, produzido por Fernando Lemos, que expõe dois sentimentos tão comuns aos seres humanos: a saudade e a tristeza. Justamente por ser capaz de compreender tais instâncias emocionais, o leitor é contagiado, se sente solidário a dor do autor que sofreu ao ver um trabalho próprio destruído. A partilha sensitiva de Maffesoli, que conecta os sujeitos, se torna evidente.

Em Viajando pelas estátuas ao redor do mundo – Digestivo Cultural, 24 de agosto – e em Um Jantar, um pintor, um gato – Ilustríssima, 5 de julho – a sinestesia também acontece, mesmo que ambas relatem fatos corriqueiros (na primeira, visitas à famosas esculturas; na segunda, peculiaridades da convivência com um artista). A memória tem papel fundamental nesses dois casos: as lembranças são o vínculo afetivo que se estabelece.

As colunas especializadas, no jornalismo cultural, parecem, sendo assim, conter uma disposição ao apelo emocional. O relato pessoal ganha força pois afeta, faz o leitor sentir, se colocar no lugar do outro. Como Maffesoli defende, o sensível tem relevância na pós- modernidade e é uma categoria possível de conviver harmoniozamente com a razão.

Tal aspecto emocional é sublinhado, para o autor (2012), também através da importância que corpo recebe no tempo atual. O cuidar, vestir, construir faz com que haja uma harmonia entre o indivíduo e o os ritmos da existência, contribuindo para um pensamento corporal – corporeísmo – que assinala o caráter mítico da vida.

Na arte, refletir sobre tal proposição é interessante quando consideramos as performances efetuadas por artistas – com maior veemência a partir da pós-modernidade. Em Paralelas no Infinito – Ilustríssima, 14 de junho – Márcia Fortes realiza uma retrospectiva sobre a vida artística de Chris Burden (norte-americano) e Ivens Machado (brasileiro), que se destacaram na década de 1970 através do uso do corpo como próprio objeto de arte.

[...] Burden e Machado foram agentes ativos da arte enquanto performance, tendo o corpo humano como assunto e veículo da obra. A genealogia de ambos desenvolve- se sobre a história da escultura, mas primeiro tomaram o comportamento do corpo como material, em tempo real ou em vídeo.

No âmbito histórico, formaram-se em meio ao conturbado quadro social e político dos anos 60 e 70: nos EUA, movimentos de massa pediam a liberdade sexual e a igualdade racial, enquanto no Brasil lutava-se pela liberdade sob a censura da ditadura militar. Entre 1970 e 75, Burden e Machado emergiram no circuito com uma intensa produção na qual se sentia, latente, o denominador comum do questionamento das formas de autoridade e do desafio aos limites.

Burden tomou um tiro em nome da arte em 1971 (‘Shoot’), colocando-se na frente do atirador que atingiu seu braço esquerdo. Munido de provocação e vulnerabilidade desconcertantes, ele relegava poder absoluto ao outro. Uma referência à Guerra do Vietnã que assombrava o imaginário masculino dos EUA? A obra durou centésimos de segundos, mas reverbera através das decadas numa corrente de associações livres. Em ‘Through the Night Softly’ (1973), Burden rolou sobre um chão de cacos de vidro. O título lírico ‘através da noite, suavemente’, é pervertido em precisos sete segundos de dor e sangue numa ação filmada e depois veiculada como um anúncio de TV.

No mesmo ano, correspondendo (em frequência mais baixa) ao autoflagelo de Burden, Machado apresentou performance com o corpo inteiramente contido em bandagem cirúrgica, testando com a gaze outras conotações de privação e dor. No vídeo ‘Escravizador/Escravo’ (1974), Machado – seu corpo ariano branco – atua como um ator negro, encenando tortura e dominação e arremessando referências críticas ao mal velado vernáculo racista nacional.

Antagônico e complementar, ainda nesse ano apresenta o vídeo ‘Versus’, no qual o corpo branco aproxima-se do preto, sugerindo a fusão de dois. ‘Versus’ chegou a ser censurado por (talvez) iludir a um beijo homossexual.

Em ‘Trans-fixed’ (outra obra de 1974) Burden concebe sua própria crucificação com pregos prendendo suas palmas ao teto de um fusca. O motor do carro foi acelerado a toda a velocidade por dois minutos – ‘gritando por mim’, na definição do artista. Machado gritou de forma menos hiberbólica mas não menos assombrosa.

Apresentou no Museu de Arte Moderna do Rio a ‘Cerimônia em Três Tempos’ (1973) – três mesas capengas de azulejos brancos desmoronando sob o simulacro de uma grande coxa de carne que pendia de um gancho no teto –, narrativa violenta enunciando, entre outras leituras possíveis, o páthos da ditadura. [...] (FORTES, 2015, n.31.483, p. 3, grifo do autor).

A construção orgânica das performances de Burden e Machado atribui espaço às sensações compartilhadas. Ao viver as situações de forma real, os artistas interagem com o público e promovem uma atmosfera emocional. A ação de receber um tiro, de deitar o corpo sobre cacos de vidro ou de tê-lo contido em bandagens que funcionam como uma espécie de camisa de força, por exemplo, só fazem sentido quando provocam dor não somente no que sofre, mas também no que vê. A razão perde espaço frente a atuações que unem essencialmente porque causam emoção, pois tornam o estar-junto indispensável.