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3 GÊNERO E O DIREITO: INSTITUCIONALIZAÇÃO DA LGBTIFOBIA

4.5 Reconhecimento para Nancy Fraser

4.5.1 É possível o reconhecimento sem ética

Tanto Fraser quanto Honneth concordam que para uma teoria crítica é necessário unir imanência e transcendência. A crítica deve articular o potencial emancipador já presente, em algum sentido, no próprio contexto social sob análise. Por outro lado, os dois teóricos entendem que a construção de respostas aos problemas sociais não pode se dar de forma exclusivamente intuitiva e individualista.

Honneth se apoia em uma psicologia moral do sofrimento. A normatividade que o autor busca sustentar na sua teoria está ancorada na psicologia subjetiva, nas motivações e expectativas dos sujeitos sociais. Para Fraser (2003), essa fundamentação de Honneth corre o risco de tirar da sua teoria a normatividade desejada, já que ele teria se afastado das experiências presentes de lutas sociais e se amparado nas experiências psicológicas da formação do sujeito.

Para Fraser, Honneth teria incorretamente identificado apenas uma motivação dos conflitos sociais e, a partir disso, fundamentado a normatividade da sua teoria nessa única motivação. Várias são as razões dos conflitos sociais, de acordo com Fraser (2003). Ao lado do reconhecimento, as lutas poderiam estar associadas aos mais variados sentimentos, inclusive o ódio. Ao fundamentar a normatividade de sua teoria nas motivações para os conflitos sociais, Honneth teria atraído para sua teoria diversos problemas.

condições materiais de vida no paradigma do reconhecimento cujo motivador seria o sentimento de desrespeito. Para ela, no entanto, a luta por melhores condições materiais de vida não pode estar atrelada ao sentimento de respeito à identidade. Diversas são as dificuldades resultantes dessa fundamentação teórica. Em primeiro lugar, empiricamente não seria possível aferir a presença do sofrimento psíquico justificador de demandas sociais. Por outro lado, ao sustentar a experiência de sofrimento como sustentação normativa das demandas sociais, a teoria de Honneth reduz o espaço para a discussão pública, enfraquecendo o potencial político da sua teoria.

Fraser busca responder se o reconhecimento seria uma forma de realização pessoal ou uma questão de justiça. Como forma de realização pessoal, o reconhecimento seria imprescindível à formação do sujeito. Nessa posição, os horizontes concretos dos sujeitos vão predominar sobre as condições abstratas de onde se extrai a ideia de justiça. Os valores éticos da “vida boa” são tratados como inerentes ao sujeito. Essa é a posição de Charles Taylor (1998) e Axel Honneth (2003). Acontece que, para a realização do sujeito, deve-se considerar um horizonte ético comum, o que traz para a questão analisada neste trabalho alguns problemas de difícil solução. Como seria resolvido o possível conflito, por exemplo, entre a tutela penal da liberdade sexual e a liberdade dos que pregam a discriminação dos LGBTI? Em outras palavras, é possível supor que determinas doutrinas ou concepções éticas podem colidir com a forma de vida e expressão da sexualidade LGBTI e, desse modo, rogar o direito de discriminar com base na orientação sexual ou na identidade de gênero. Esse é o argumento daqueles que, de algum modo, enxergam na criminalização da LGBTIfobia uma redução da sua liberdade, especialmente a liberdade de expressão.

Uma saída para esse problema deve ponderar incialmente que a proposta teórica, cujo elemento ético é tido como fundamento normativo para o reconhecimento, não oferece uma possibilidade razoável para os conflitos de interesses nesses casos. Desse modo, o caminho teórico adotado por Honneth e Taylor não fornecem uma saída adequada. Ao contrário disso, em uma sociedade plural e democrática, qualquer pretensão normativa deve ser neutra em relação às concepções de vida boa.

Nesse ponto a proposta teórica de Fraser fornece uma saída mais adequada ao problema. A autora sustenta a sua teoria no liberalismo moderno, cuja centralidade é a ideia de autonomia e igual valor moral dos seres humanos. Tem-se, pois, dois elementos centrais: a autonomia e a igualdade. A prevalência da autonomia implica que cada indivíduo tem o direito de eleger a própria noção de autorrealização. Fraser (2003) assume como princípio que

na sociedade atual há um desacordo ético de concepções de vida das quais muitas são igualmente razoáveis. As concepções de vida boa que compartilham o respeito à igualdade de autonomia de todos têm lugar na sociedade. A explicação moral para a discriminação, cuja justificativa é um valor ético LGBTIfóbico, nunca poderia gerar uma norma a todos imposta. E mais, ainda entre aqueles que compartilham o mesmo horizonte ético, determinadas práticas podem ser proibidas com base na ofensiva ao valor igual de todos, se isso implicar em negar a paridade de participação entre os membros do grupo (FRASER, 2003).

Para Fraser, ao contrário, o reconhecimento deve ser tratado como uma questão de justiça. A obrigação de reconhecer não se justifica pelos seus efeitos sobre a personalidade dos indivíduos, mas na situação de injustiça em negar a alguns grupos status de interlocutores plenos de interação social, em decorrência de padrões institucionalizados de valor cultural que menosprezam suas características (FRASER, 2003). De acordo com a filósofa, o reconhecimento deve ser justificado a partir da moralidade. Trata-se de um direito.

Colocar o reconhecimento como uma questão de justiça é tratá-lo como uma questão de status social. Isso implica examinar os padrões institucionalizados de valor cultural por seus efeitos sobre o prestígio relativo dos atores sociais. O reconhecimento seria a consideração social que cada grupo deve ter de seu valor como parceiro social capaz de interagir em paridade de participação com outros indivíduos e grupos. O não reconhecimento não é qualquer deformação física ou psíquica que impeça a autorrealização ética (FRASER, 2003).

Fraser aponta ao menos quatro vantagens do modelo de status em comparação ao modelo de identidade. Uma primeira vantagem é a de que o modelo de status permite estabelecer as condições de justificação das reivindicações por reconhecimento como moralmente vinculantes em meio ao pluralismo moderno de valores. Qualquer enfoque que busque justificar reivindicações baseando-se em concepção particular de via boa não tem o poder de ser normativamente vinculante. A noção de vida boa deve ser definida pelos próprios indivíduos, no sentido de conferir igual liberdade para todos. Assim, embora os diversos grupos possam divergir em relação à noção de vida boa, as reivindicações do reconhecimento poderão ser aceitas por todos, como base comum de uma sociedade plural e democrática (FRASER, 2003). O que se garante são as condições para a paridade de participação com todos os outros na interação social.

Uma segunda vantagem no que diz respeito ao reconhecimento como uma questão de status, segundo a autora, está no afastamento do psiquismo individualista que pode determinar

o reconhecimento como identidade. Esse tipo de enfoque pode levar à vitimização dos grupos oprimidos, levando adiante algum questionamento sobre um suposto déficit psíquico para justificar os danos psíquicos. Isso pode contribuir para o reforço do estigma do grupo que já sofre com a depreciação moral. O modelo de status, ao contrário, trata o reconhecimento como algo externo às relações dos grupos. Uma vez que o modelo de status se afasta do psiquismo individualista e se apoia na posição relativa do sujeito perante os seus parceiros sociais, há um ganho de normatividade (FRASER, 2003). Isso significa que uma sociedade onde as normas institucionalizadas não garantam a paridade de participação é moralmente indefensável.

Fraser ainda aponta uma terceira vantagem do seu modelo de reconhecimento quando comparado ao da identidade. Para ela, o modelo de reconhecimento baseado na identidade pressupõe que todos têm igual direito à estima social. No entanto, é preciso fazer uma distinção entre respeito e estima social. Respeito se deve universalmente a todas as pessoas em razão da qualidade humana comum; enquanto que estima se refere aos traços específicos de cada pessoa. Para Fraser (2003), o direito à estima social não é absoluto. Ao contrário, a justiça exige que todos tenham o mesmo direito de alcançar a estima social em justas condições e em igualdade de oportunidades.

Finalmente, como última vantagem, o modelo de status, por tratar o reconhecimento como uma questão de justiça, facilita conciliá-lo com a redistribuição. Assim, reconhecimento e redistribuição são tratados em um único paradigma normativo. Ao tratar o reconhecimento como uma questão ética, o modelo de identidade torna inconciliável o reconhecimento com a redistribuição.