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6. O DIREITO PENAL E A PROTEÇÃO DE GRUPOS VULNERÁVEIS

6.2 A violência LGBTIfóbica e a redistribuição

Pretende-se neste momento demonstrar que a criminalização da LGBTIfobia é uma demanda que se justifica nas três dimensões da justiça: reconhecimento, redistribuição e representação. Desse modo, a criminalização da LGBTIfobia não promove uma cisão negativa nas pautas dos movimentos sociais, mas, ao contrário, adequa-se ao modelo de justiça que

pretende somar lutas sociais legítimas.

Inicialmente, é importante demonstrar em que medida a criminalização da LGBTIfobia se justifica a partir da dimensão da redistribuição de bens materiais. A distinção promovida por Fraser entre reconhecimento, redistribuição e representação é apenas analítica, não decorre de modos diferentes de práticas sociais (FRASER, 2003). Portanto, a questão a ser enfrentada é como, analiticamente, a criminalização da LGBTIfobia se justifica sob a dimensão distributiva?

Retoma-se aqui a discussão entre Nancy Fraser e Judith Butler em relação à concepção do capitalismo e a partir disso recolocar a discussão em outro sentido. Butler (2016) sustenta que a divisão que Fraser promove entre redistribuição e reconhecimento não é apropriada, ainda que feita somente no plano analítico. Butler afirma ser impossível cindir a reprodução da economia política e as práticas simbólicas. Fraser responde as críticas alegando que a separação por ela promovida não está nas práticas sociais, mas na análise dos efeitos e na normatividade subjacente às relações e conflitos sociais. Ocorre que Fraser confere à LGBTIfobia um caráter monovalente, ou seja, são geradas apenas formas de subordinação por reconhecimento, o que não corresponde a uma compreensão adequada da LGBTIfobia. Nesse ponto, a proposta teórica de Fraser se equivoca quando pretende analisar a LGBTIfobia.

Fraser sustenta que a categoria do gênero (masculino e feminino) seria bivalente, de forma a determinar ao mesmo tempo subordinação material e simbólica, ambas de forma originária. Desse modo, exige-se tanto reconhecimento quanto redistribuição (neste momento Fraser ainda não tinha desenvolvido a dimensão da representação). Para ela, a categoria gênero faria parte da economia política e também da ordem do status. Entretanto, quando Fraser (2003) analisa as normas heterossexistas que excluem LGBTI, ela interpreta essas normas como monovalentes. A exclusão material à qual essa população está sujeita decorreria tão somente de um efeito secundário da ordem do status. Ou seja, para corrigir a privação material dessa população bastaria corrigir as normas que lhes privam de acesso ao valor moral igualitário. Ao contrário do que aponta Fraser, não há justificativa para sustentar um distanciamento de tratamento entre as categorias gênero (masculino e feminino) das categorias orientação sexual e identidade de gênero. Trata-se de categorias ambivalentes e ambas determinam originariamente exclusão material e simbólica, por isso, as medidas devem ser analisadas em seus dois efeitos. Esses marcadores se associam como mecanismos estruturantes de práticas sociais, de modo que a LGBTIfobia e a misoginia quase sempre andam juntas.

A criminalização da LGBTIfobia tem efeitos materiais na vida de pessoas homossexuais e trans em dois sentidos: ela contribuirá para alterar o modo como as instituições estatais encaram as manifestações LGBTIfóbicas e para impor nova correlação de força nas opressões cotidianas nas relações diretamente materiais. Na primeira dimensão, a criminalização de determinada conduta significa também que o bem jurídico tutelado deve ser considerado como valor jurídico na ordem jurídica, de modo que qualquer ação que viole esse bem deverá ser considerada contrária ao direito (ilícita)52. Portanto, ao criminalizar a LGBTIfobia, automaticamente a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero se tornará ilegítima expressamente, inclusive nas relações de trabalho. O aparato normativo institucional passa a contribuir na luta contra as formas de exclusão no trabalho. As normas e instituições estatais com efeito distributivo (programas governamentais assistenciais e políticas públicas em geral) podem ser confrontadas a partir de uma justificativa de posicionamento normativo em âmbito penal. Os questionamentos políticos e jurídicos de políticas materiais assistenciais e de distribuição não podem ignorar a posição institucional expressa por meio da tipificação de conduta e manifestação LGBTIfóbica.

Numa segunda dimensão, a criminalização da LGBTIfobia pode impor novas relações de poder nas relações privadas, especialmente na manifestação do trabalho. Nesse sentido, Henrique Caetano Nardi (2007) destaca que na modernidade ocidental dois mecanismos de relação de poder podem ser identificados: o trabalho e a sexualidade. O trabalho, atualmente, é o único meio de alcançar as condições materiais que podem garantir uma vida digna. Excluir o trabalho de determinado grupo é subtrair-lhe a própria dignidade. Nadir (2007) afirma ainda que a LGBTIfobia impõe, nas relações de trabalho, uma forma especial de sujeição a partir de três elementos: a sujeição da força de trabalho e do corpo, o reconhecimento social pelo trabalho (o status social fruto do trabalho e a cidadania) e o trabalho como prática reflexiva da liberdade. No primeiro sentido, a forma de organização do trabalho capitalista opera a partir da dominação da força de trabalho e do corpo, marcadamente LGBTIfóbico (NADIR, 2007). O trabalho como mecanismo de reconhecimento social foi associado à família enquanto núcleo monogâmico. Nesse ponto, a figura do trabalhador-cidadão, por meio da carteira de trabalho, tem sua cidadania assegurada pelo Estado (NADIR, 2007). Assim, o trabalho perde a sua potência libertadora: “o trabalho, estruturado a partir de um código moral binário e heterossexista não suporta a diversidade,

52 Importante destacar que não há norma, no Direito do Trabalho, que faça referência expressa à discriminação

por orientação sexual ou identidade de gênero. A proibição desse tipo de discriminação tem se fundamentado a partir da interpretação do termo sexo, constante em vários textos normativos (COSTA, 2007, p. 95-96).

quanto mais violenta for a performance imposta para o masculino e o feminino, mais violenta será a reação homofóbica, como afirmamos” (NADIR, 2007, p. 75).

A criminalização da LGBTIfobia, nesse sentido, pode contribuir para fundamentar mecanismos antidiscriminatórios no trabalho. A antijuridicidade decorrente da figura típica (conduta criminosa) reforçará os argumentos jurídicos e políticos no sentido de superar a discriminação no trabalho em favor da diversidade. A lei penal não gera efeitos apenas na esfera tipicamente criminal, mas se irradia na esfera pública e nas dimensões privadas. Isso significa, por exemplo, que a conduta discriminatória na contratação, na prestação do serviço e na motivação da dispensa terá especial reprovação, quando motivada por LGBTIfobia. A criminalização da LGBTIfobia cumpre, portanto, um papel de reforçar os mecanismos de punição da discriminação no trabalho.