• Nenhum resultado encontrado

6. O DIREITO PENAL E A PROTEÇÃO DE GRUPOS VULNERÁVEIS

6.8 Onde debater a criminalização da LGBTIfobia? Um problema de enquadramento

Até aqui desenvolvemos a tese de que a criminalização da LGBTIfobia corresponde a uma exigência normativa que pode ser relacionada ao status (moral, material e político) da população LGBTI, o qual circula nas práticas sociais e também nas relações que se estabelecem nos aparelhos institucionais. A primeira forma de manifestação do status foi aproximada do exercício das liberdades individuais, interessando-nos aqui, especialmente, a liberdade sexual; ao passo que essa segunda dimensão do status passa por uma análise do direito à igualdade. A paridade de participação, como parâmetro de justificação de demandas sociais, deve corresponder à expansão das liberdades e, ao mesmo tempo, à ideia de igualdade.

Ocorre que, tal como propõe Nancy Fraser, as realidades concretas em que as demandas sociais são colocadas remetem à discussão do enquadramento da proposta apresentada. O enquadramento corresponde ao âmbito de discussão a ser adotado, os atores legitimados a tomar parte dela, aos órgãos e instituições legitimados a deliberar sobre as questões coladas e ao âmbito de validade das decisões. Isso tem relevância porque em âmbito internacional espaços de debate estão sendo formados, a fim de que os Estados nacionais criem mecanismos para a proteção da liberdade sexual da população LGBTI.

A discussão sobre o problema da LGBTIfobia e violência dela decorrente levanta esta indagação: em quais fóruns podem ser debatidos os mecanismos de enfrentamento do problema? Demandas de ordem jurídico-penal devem estar circunscritas aos territórios nacionais? Trata-se de um problema local ou extrapolam os limites territoriais dos Estados? De que modo os organismos internacionais devem ser espaços de deliberaração desses problemas?

Fraser (2009) faz o diagnóstico de que a globalização alterou o modo como a justiça tem sido debatida. A globalização, para ela, teria demonstrado a insuficiência da limitação até

então do debate nos territoriais dos Estados nacionais. Nesse contexto, as demandas por reconhecimento e redistribuição eram articuladas no interior do próprio Estado, de modo que o enquadramento keynesiano-westfaliano não era questionado nos debates sobre justiça. Essa realidade, entretanto, alterou-se profundamente a partir das novas formas de funcionamento do mercado financeiro internacional, dos problemas do aquecimento global, dos problemas de saúde pública, como a AIDS, do terrorismo internacional, entre outros. Esse processo fez alterar o modo de se pensar a justiça e as novas questões não poderiam mais ser adequadamente enfrentadas apenas nos fóruns internos dos Estados. Isso implica na alteração das relações dos autores, dos destinatários e dos fóruns de discussão.

Fraser (2008a), quanto ao critério definidor de quem tem legitimidade para participar do processo de deliberação democrática, chegou a defender o critério cujo parâmetro é o de “todos os afetados”, de modo que os legitimados a discutir e deliberar as questões de justiça seriam os sujeitos afetados pelas medidas propostas. Posteriormente, a filósofa passou a defender que o melhor critério deveria ser de todos os sujeitos, de modo que devem tomar parte da discussão e deliberação democrática aqueles que estão sujeitos à estrutura de governo e deliberação.

Em relação à criminalização da LGBTIfobia, é importante destacar que as medidas jurídico-penais, em grande medida, ainda se enquadram formalmente dentro dos limites territoriais dos Estados nacionais. Os atores legitimados a apresentar demandas no campo criminal ainda estão fortemente atrelados à cidadania nacional. Igualmente, o Estado-nacional continua sendo a entidade destinatária das demandas das políticas criminais que ingressam por meio das instâncias internas, especialmente o Poder Legislativo. Entretanto, essa realidade tem se alterado nos últimos anos61. Fatos que antes tinham repercussão apenas internamente têm ganhado relevo internacional e organismos internacionais têm pressionado os Estados a tomarem medidas em âmbito criminal. Tem-se formado uma opinião pública internacional preocupada, cada vez mais, em questões que têm repercussão global. Os Estados Nacionais passam a ser pressionados a adotarem medidas muitas vezes penais para responder a essas demandas. Isso implica, portanto, que o enquadramento adequado do problema, com

61 O Tribunal de Nuremberg, destinado a julgar os crimes resultantes do Holocausto, no final da Segunda Guerra

Mundial, pelo Acordo de Londres (1945/1946), pode ser apontado como um marco na direção da expansão dos limites territoriais em matéria penal. Outros tribunais internacionais de caráter temporários foram criados mais recentemente, por deliberação do Conselho de Segurança das Nações Unidas, um para julgar os crimes cometidos no território da antiga Iugoslávia desde 1991 e outro para julgar as violações de Direitos Humanos em Ruanda (MAZZUOLI, 2004). Em 1998, foi aprovado o Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional, com jurisdição permanente, de caráter complementar das jurisdições penais nacionais, com competência para julgar crime de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão (MAZZUOLI, 2004).

repercussões criminais, pode legitimar o tratamento da questão fora dos limites dos Estados, como que é caso da LGBTIfobia.

A violência LGBTIfóbica é um problema que extrapola as fronteiras dos Estados. Há relatos de violências contra LGBTI em todos os continentes, em maior ou menor grau. A OEA, por exemplo, destacou em seu relatório que, entre os países que compõem a entidade, foi constatado um grau de violência generalizado contra os LGBTI (CIDH, 2015).

A lógica que fundamenta a LGBTIfobia é a ideia de que a sexualidade se destina exclusivamente à reprodução, perspectiva essa muito influenciada, no ocidente, pela tradição judaico-cristã. Conforme Luiz Mott (2015), as diferentes civilizações de matriz cultural ocidental rotularam a homossexualidade “[...] por diversos nomes atrozes que refletem o alto grau de reprovação associado a essa performance erótica: abominação, crime contra a natureza, pecado nefando, vício dos bugres, abominável pecado de sodomia, velhacaria, descaração, desvio, doença, viadagem, frescura etc.” (MOTT, 2015, p. 17). Em maior ou menor grau, todos os países de tradição ocidental têm traços LGBTIfóbicos.

Assim, as medidas que visam enfrentar a violência LGBTIfóbica devem também ser discutidas e estar fundamentadas em escala internacional. Sendo um problema que afeta a comunidade LGBTI em todo o mundo, os organismos internacionais são palcos legítimos para as discussões dos mecanismos de combate ao problema. Por outro lado, a LGBTIfobia somente poderá ser superada se for devidamente considerada sua natureza estrutural da sociedade.