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3 GÊNERO E O DIREITO: INSTITUCIONALIZAÇÃO DA LGBTIFOBIA

4.4 Redistribuição para Nancy Fraser

4.4.1 Capitalismo: entre Fraser e Honneth

Nas teorias de Honneth e Fraser há uma noção subjacente ao capitalismo. Quando tematizam o modo de reprodução material e as demandas por melhores condições materiais de vida, esses teóricos se sustentam em bases distintas. Honneth apoia sua proposta teórica em apenas um paradigma analítico, enquanto Fraser entende que para dar conta das demandas sociais deve haver, no mínimo, dois modos de análises e justificação de demanda.

Para Honneth, no sistema capitalista, a forma de divisão material também está regulada pelo esquema cultural de valoração. O paradigma do trabalho está superado diante das normas de regulação do mercado. A crítica teórica poderia ser feita considerando a função de integração social do capitalismo e pressupõe daí normas morais subjacentes. Segundo Honneth (2008), a força moral, para que cada um ponha à disposição de todos os seus dons, estaria vinculada à obrigação de garantir a todos as condições de vida em padrão adequado. Cada membro poderia legitimamente esperar a sua parcela de bens, retribuição do próprio trabalho dotado de valor, como reconhecimento do seu esforço. A expectativa moral em torno das exigências da distribuição justa dos bens poderia, assim, ser articulada a partir do reconhecimento.

Fraser tece críticas a essa posição. Para ela, Honneth desconsidera o aspecto sistêmico do capitalismo e, por isso, sua teoria não seria capaz de explicar e dar resposta aos problemas materiais. Na economia capitalista, para Fraser (2003), há relativa autonomia do mercado em relação a outros sistemas. Embora os efeitos simbólicos de hierarquização de sujeitos tenham efeitos sobre a forma de distribuição dos bens materiais, isso não explica a totalidade das

formas de exclusão no contexto atual. Por isso o monismo honnethiano é incapaz de compreender os processos que geram injustiças distributivas em sociedades capitalistas (FRASER, 2003).

No texto Por trás do laboratório secreto de Marx Por uma concepção expandida do Capitalismo (2015), Fraser propõe analisar o capitalismo para além dos efeitos materialmente mais imediatos. Numa visão ortodoxa, o capitalismo é conceituado em relação ao modo de produção, o que implica divisão de classes entre proprietários dos meios de produção e trabalhadores, o surgimento do trabalho livre e a forma de acumulação de capital. Menos comum, entretanto, é a análise do capitalismo como modo de reprodução social, que produz e mantém os laços sociais (FRASER, 2015).

O capitalismo, portanto, para além de seus efeitos materiais, produz uma nova forma de relações sociais: “O central aqui é o trabalho de socialização da juventude, a construção das comunidades, a produção e a reprodução dos significados compartilhados, as disposições afetivas e os horizontes de valor que estruturam a cooperação social” (FRASER, 2015, p. 213). O trabalho preponderantemente feminino doméstico não remunerado, a reprodução e o cuidado dos filhos são essenciais ao funcionamento do capitalismo, “tal como a ‘acumulação original’, portanto, a reprodução social é uma condição de possibilidade de fundo indispensável da produção capitalista” (FRASER, 2015, p. 213).

O capitalismo também impôs uma nova forma de se relacionar com a natureza. “A natureza é aqui transformada em um recurso para o capital, cujo valor é ao mesmo tempo pressuposto e negado” (FRASER, 2015, p. 715). O capitalismo assume a natureza como recurso a ser explorado como matéria-prima infinita. A natureza, portanto, é mercantilizada. Com o avanço do capitalismo neoliberal atual, o capital mercantiliza o próprio ambientalismo, transformando a preservação da natureza em mercadoria a ser livremente comercializada (FRASER, 2015, p. 716).

E, por último, o capitalismo impõe forte distinção entre a política e a economia: “Com essa divisão vem a diferenciação institucional entre poder público e privado, entre coerção política e econômica” (FRASER, 2015, p. 716). Assim, o poder político que dá sustentação às relações comerciais privadas se encontra separado, tendo suas próprias formas de operar.

Por isso tudo, Fraser sustenta que o capitalismo é algo além da economia. Há zonas nas quais as relações não se dão de forma econômica, mas são indispensáveis ao funcionamento do sistema: “Social, ecológica e política, essas zonas não-comodificadas não espelham simplesmente a lógica da mercadoria, mas corporificam distintas gramáticas

normativas e ontológicas próprias” (FRASER, 2015, p. 720). Fraser sustenta que o capitalismo é uma ordem social institucionalizada que funciona num conjunto de lógica econômicas e não econômicas:

Portanto, falar de capitalismo como uma ordem social institucionalizada, dependente destas separações, é sugerir a sua imbricação estrutural não-acidental com a opressão de gênero, com a dominação política - tanto a nacional quanto a transnacional, colonial e pós-colonial - e com a degradação ecológica; articulada evidentemente com a sua dinâmica de exploração do trabalho igualmente estrutural e não-acidental em primeiro plano (FRASER, 2015, p. 722).

O enfrentamento do capitalismo pressupõe o seu enfrentamento sob múltiplas frentes, naquilo que lhe é material e mais essencial, bem como no que lhe é impróprio, mas complementar:

Igualmente, a crítica à dominação abarca não apenas as relações de dominação de classe analisadas por Marx, mas também aquelas de dominação de gênero e de dominação da natureza. Finalmente, a crítica política abarca uma multiplicidade de conjuntos de atores - classes, gêneros, grupos sociais, nações, demoi, possivelmente até espécies - e de vetores de luta: não apenas lutas de classe, mas também lutas sobre limites das separações entre sociedade, organização política, natureza e economia (FRASER, 2015, p. 727).

A concepção fraseana do capitalismo não se restringe à forma de reprodução material, mas a um sistema que implica formas de subordinação simbólica. Ao analisar a sua proposta teórica de justiça, Fraser divide as duas formas de exigências da justiça apenas no plano analítico. Fraser não faz uma divisão ontológica entre a reprodução material e simbólica ao diferenciar as exigências da redistribuição e o reconhecimento. Fraser reconhece uma profunda relação entre a reprodução material e simbólica na sociedade capitalista atual. O enfrentamento da subordinação material pressupõe o enfrentamento da subordinação por status e o contrário também é verdadeiro.