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6. O DIREITO PENAL E A PROTEÇÃO DE GRUPOS VULNERÁVEIS

6.3 A violência LGBTIfóbica e o reconhecimento

A violência LGBTIfóbica fere gravemente a ideia de reconhecimento em Nancy Fraser e a criminalização dessas condutas é uma medida adequada para o problema, dentro de um quadro geral de legislação antidiscriminatória. A criminalização da LGBTIfobia, sob a dimensão do reconhecimento, desafia duas análises distintas: uma que pode se referir aos aspectos institucionais e outra às práticas sociais cotidianas. No primeiro caso, a criminalização da LGBTIfobia deve ser avaliada a partir da posição relativa dos indivíduos (status), levando em conta o conjunto de normas penais, especialmente em matéria antidiscriminatória. Nesse ponto, pretende-se demonstrar que a ausência de normas penais antidiscriminatórias em relação à LGBTIfobia no país corresponde à institucionalização do valor moral inferiorizado de pessoas LGBTI pelo ordenamento jurídico. Em relação ao status de ação nas práticas sociais cotidianas, espera-se demonstrar que a criminalização da LGBTIfobia é necessária e adequada à proteção da liberdade sexual, um direito fundamental.

Fraser (2000) trata o reconhecimento como uma questão de status social. Assim, o que merece reconhecimento é o status de membro de grupos como plenos participantes de interação social. A falta ou reconhecimento errôneo implica em subordinação social, ou seja, a impossibilidade de participar como igual na vida social. Os mecanismos de valor cultural dos sujeitos podem estar presentes nas práticas sociais cotidianas ou estarem presentes no valor cultural institucionalizado:

la igualdad se institucionalizan en entornos institucionales diversos y en modos cualitativamente diferentes. En algunos casos, la falta de reconocimiento ha adquirido forma jurídica, está expresamente codificada en normas de rango legal; en otros casos, se ha institucionalizado a través de políticas gubernamentales, códigos administrativos o prácticas profesionales (FRASER, 2000, p. 62).

A ausência de criminalização da LGBTIfobia corresponde à institucionalização do status inferiorizado conferidos às pessoas LGBTI. Os mecanismos penais de tutela dos grupos vulneráveis são justificados a partir da particularidade da violência e da gravidade do modo de discriminação (violenta ou não). Nesse sentido, diversos grupos vulneráveis recebem consideração penal, com a tipificação de condutas atentatórias à sua dignidade.

Há, como se demonstrou, um conjunto de normas penais que busca reprimir a violência contra as mulheres. O sistema jurídico também confere ao racismo, em sua acepção mais tradicional, especial repúdio em âmbito penal. Igualmente, outros grupos vulneráveis têm tratamento jurídico penal protetivo no Direito brasileiro, como minorias regionais e imigrantes, pessoas com deficiência, minorias religiosas, pessoas idosas etc. Portanto, o Direito Penal brasileiro considera a vulnerabilidade como elemento justificador de tutela. Como se demonstrou em capítulo anterior, a vulnerabilidade da população LGBTI se expressa tanto pela violência cotidiana quanto pelo modo particular que sustenta essa violência. A não criminalização da LGBTIfobia significa conferir aos LGBTI o lugar subalterno de subcidadãos e não sujeitos de direitos. Nesse sentido, o status inferiorizado de sujeito decorre pelo desapreço da ordem jurídica aos LGBTI.

Ao não considerar crime a LGBTIfobia, descumpre-se, em última análise, a promessa da igualdade, fundada pela ordem jurídica, cujo ápice é a Constituição da República:

Se, pois, o Direito Penal não serve como forma de eliminação das condutas homofóbicas e transfóbicas, de outro lado, a invisibilidade e o bloqueio de instrumentos de reivindicação e reclamos de direitos fundamentais perante os organismos oficiais têm servido como forma de perpetuação e naturalização das condutas criminosas: uma parcela muito menor das violências que efetivamente acontecem são denunciadas e, quando isso ocorre, dificilmente a motivação homotransfóbica é relatada pela polícia; ainda, quando isso ocorre, pouquíssimos são os casos de condenação nos quais a homotransfobia é posta em evidência. (OLIVEIRA; SILVA; BAHIA, 2019).

Nesse ponto específico de análise, portanto, é dispensável discutir a eventual eficácia da lei penal para prevenir a discriminação e a sua correlação com os bens jurídicos tutelados. Isso porque a noção de igualdade de valor moral (status) é incompatível com um sistema que confere apenas a alguns a cidadania plena. Enquanto houver disparidade de tratamento jurídico, inclusive na esfera penal, o direito à igualdade ainda estará por se realizar.

A noção de igualdade jurídica, conforme defende Jessé Souza (2003), decorre do reconhecimento do compartilhamento da “dignidade” comum: “Para que haja eficácia legal da regra de igualdade, é necessário que a percepção da igualdade na dimensão da vida cotidiana esteja efetivamente internalizada” (SOUZA, 2003, p. 63). A ideia de igualdade está ligada às predisposições afetivas e emocionais que determinam um pacto subjacente de reconhecimento recíproco, o qual sustentaria, por sua vez, a disposição jurídica de respeito mútuo. A igualdade jurídica somente pode ser efetivada se houver esse consenso básico consolidado nas relações sociais:

É que na dimensão infra e ultra-jurídica do respeito social objetivo compartilhado socialmente, o valor do brasileiro pobre não-europeizado – ou seja, que não compartilha da economia emocional do self pontual, que é criação cultural contingente da Europa e América do Norte – é comparável ao que se confere a um animal doméstico, o que caracteriza objetivamente seu status subhumano (SOUZA, 2003, p. 70).

A igualdade, como elemento de tratamento jurídico, pode estar mais ou menos consolidada nas instituições sociais e seu arranjo concreto funciona a partir de um conjunto de elementos que indica o índice de tratamento responsável por colocar cada grupo em diferentes posições. Como se demonstrou, a orientação sexual e a identidade de gênero significam marcadores sociais de diferença fortemente impregnados nas práticas sociais, que implicam depreciação moral. A ausência de normas penais que dê tratamento adequado a essa violência significa a subcidadania institucionalmente reconhecida.

Por outro lado, pretende-se demonstrar, em seguida, que a criminalização da LGBTIfobia, além de indicar a consequência necessária da igualdade de status institucional, decorre igualmente de forma necessária da tutela de liberdade sexual, como valor fundamental decorrente da igualdade de status com aplicação nas relações cotidianas. Nesse ponto, a tutela penal se dirige à liberdade sexual, enquanto garantia de igualdade de status de ação. A ausência de criminalização da LGBTIfobia corresponde à negação da liberdade de pessoas LGBTI em uma esfera fundamental de suas vidas.

As violências e discriminações, como apontado, estão associadas às manifestações de orientação sexual e identidade de gênero não heterossexual quando expressadas publicamente. Como elemento essencial à identidade, a livre manifestação da orientação sexual e da identidade de gênero são pressupostos imprescindíveis à garantia das condições de ação em paridade de participação. Isso significa que a violência contra as mesmas solapa as condições objetivas de ação.

A população LGBTI convive com o medo constante da violência quando manifesta publicamente a sua orientação sexual ou sua identidade de gênero. A LGBTIfobia se encontra de tal modo enraizada nas práticas cotidianas que o simples abraço entre duas pessoas do mesmo sexo pode ser associado à homossexualidade e desencadear os atos mais violentos de aversão. Insultos verbais e ameaças de violências motivadas por LGBTIfobia são realidade constante na vida das pessoas LGBTI.

O direito à liberdade tem seu fundamento na ideia de autonomia individual, que reconhece ao indivíduo a autoridade de fazer suas escolhas pessoais em conformidade com a sua própria noção de bem. A liberdade sexual é uma expressão do núcleo mais essencial da liberdade. Nesse sentido, “a liberdade de exercício da sexualidade deve ser interpretada exatamente nesse sentido: a orientação sexual é um aspecto central da identidade dos seres humanos e a liberdade pessoal deve garantir seu exercício” (MOREIRA, 2016, p. 21).

A liberdade de orientação sexual é expressão da primeira geração de direitos fundamentais, cujo núcleo determina um dever de abstenção por parte do Estado e do cidadão de interferir na manifestação do desejo e nas expressões da sexualidade: “Pode-se afirmar com segurança que a liberdade de orientação sexual é a concretização do direito de liberdade geral, reconhecido tanto no direito internacional dos direitos humanos como no direito constitucional vigente de vários países” (RIOS, 2017, p. 44). Interessa, neste ponto, especialmente o dever do Estado de evitar que terceiros interfiram de forma indevida sobre a liberdade de orientação sexual e de identidade sexual alheias.

Adilson Moreira (2016) destaca que a liberdade, condição para o exercício da cidadania sexual, tem dois sentidos: um deles se aplica às relações públicas e se adota como ordem de status institucionalizado, perspectiva empregada neste trabalho, e o outro, aplicado às relações privadas, o qual se relaciona às práticas cotidianas. A situação de poder manifestar as sexualidades não hegemônicas somente em espaços privados restringe a ideia de liberdade, impondo às minorias restrições dos espaços de circulação. “Além disso, a referida identificação dificulta a mobilização de minorias sexuais porque transforma a expressão pública da sexualidade em ato que traz um alto risco pessoal” (MOREIRA, 2016, p. 24).

Um relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos retratou o grau de violência vivida pela população LGBTI na região:

Relatórios recebidos pela CIDH de fontes independentes indicam que as pessoas lésbicas, gays bissexuais e trans frequentemente sofrem uma grande variedade de ataques, desde empurrões até pauladas, lançamento de garrafas, pedras ou outros objetos contundentes. Estes atos de violência são tão comuns em algumas partes da região que podem nem ser denunciados, pois são considerados parte da “vida

cotidiana” das pessoas LGBT (CIDH, 2015, p. 84).

As demonstrações públicas de afeto entre pessoas LGBTI são especialmente hostilizadas:

A Comissão Interamericana recebeu informações sobre casos de casais do mesmo sexo atacados por demonstrar seu afeto em público, como andar de mãos dadas, fazer carinho, abraçar ou beijar. Também há informação sobre guardas de segurança privada em centros comerciais que expulsam casais do mesmo sexo em função de demonstrações públicas de afeto. Em São Paulo, um casal de homens foi atacado e violentamente expulso de um vagão do metrô por um grupo de 15 homens, depois que o grupo proferiu ofensas e mandaram os dois pararem de se beijar (CIDH, 2015, p. 89).

E ainda:

Pessoas do mesmo sexo que demonstram afeto em público também são frequentemente vítimas de abuso policial e detenções arbitrárias por agentes estatais – geralmente através do uso excessivo da força ou abuso verbal – em função do que estes consideram “comportamento imoral” em espaços públicos (CIDH, 2015, p. 90).

Nesse sentido, a violência cotidiana sofrida por pessoas LGBTI expressa uma grave situação de violação à liberdade sexual enquanto livre manifestação do desejo e da identidade. No mesmo relatório, a Comissão destaca que uma noção adequada de liberdade deve proteger as expressões do desejo e de identidade sexual:

Também nesse sentido, a Corte Interamericana estabeleceu que a orientação sexual de uma pessoa está vinculada ao conceito de liberdade e à possibilidade de toda pessoa para a autodeterminação e de escolher livremente as circunstâncias que dão sentido à sua existência, conforme suas próprias opções e convicções (CIDH, 2015, p. 31-32).

A garantia do status moral de ação dos LGBTI significa a tutela adequada da liberdade sexual, enquanto condição necessária à paridade de participação. Assim, a criminalização da LGBTIfobia se dirige à garantia de condições concretas para o exercício da liberdade, especialmente nas manifestações públicas.