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6. O DIREITO PENAL E A PROTEÇÃO DE GRUPOS VULNERÁVEIS

6.4 A violência LGBTIfóbica e a representação

A esfera da representação corresponde ao que Nancy Fraser denomina como dimensão política da justiça, entretanto, não significa que as demais dimensões não tenham também, em alguma medida, sentido político. A dimensão da representação é incluída pela filósofa a partir da constatação da necessidade de articular uma teoria capaz de criar mecanismos para que o

debate político seja devidamente articulado e as demandas por reconhecimento e redistribuição sejam adequadamente enfrentadas. Assim, pretende-se enfrentar aqui a relação entre a violência LGBTIfóbica e a sua criminalização, além da dimensão da representação política. Isso seria o mesmo que indagar: de que modo a LGBTIfobia implica em negação da cidadania política de LGBTI? De que modo as normas que estabelecem os mecanismos de representação política se relacionam com a LGBTIfobia? É possível identificar uma dimensão política na criminalização da LGBTIfobia?

A dimensão política, para Fraser (2009), deve ser analisada a partir de duas questões: a primeira diz respeito aos mecanismos que determinam quem legitimamente participa do debate político (inclusão/exclusão) e a segunda se relaciona ao procedimento para a tomada de decisão. A autora ainda identifica que a falsa representação pode se dar dentro da política- comum quando, embora determinados indivíduos ou grupos estejam incluídos nos debates públicos, não lhes são garantidas as condições de paridade de participação, ou por meio do mau enquadramento, implicando em exclusão do debate e impedindo que as pessoas possam apresentar suas demandas.

A dimensão política está associada à possibilidade efetiva de influenciar no debate público, apresentar demandas, justificá-las pública e democraticamente e tomar parte do processo de decisão. Para isso, é necessário que aqueles que estejam sujeitos à influência das medidas deliberadas sejam incluídos no processo de discussão e deliberação. É necessário ainda que as regras de formação da vontade possibilitem a veiculação das demandas e justificações daqueles que tomaram parte da deliberação.

A LGBTIfobia frequentemente é analisada a partir dos seus efeitos simbólicos e materiais de exclusão, isso não significa que sejam as únicas formas de marginalização. A LGBTIfobia impõe aos LGBTI limites na dimensão política, ora excluindo-os do processo de tomada de decisão, ora negando-lhes as condições de igualdade na ação política, embora participando do processo de deliberação. A dificuldade do Poder Legislativo brasileiro em colocar em debate temas que interessam à população LGBTI decorre dos limites da representação política dessa minoria. No caso brasileiro, as questões que dizem respeito à cidadania de gay/trans não são deliberadas pelo parlamento. No Brasil, “os partidos não tomam partido” (BAHIA, 2015, p. 187), quando se trata do tema.

Na dimensão da representação política, a LGBTIfobia se expressa pelo discurso que circula nos fóruns de discussões política e ainda pela sua institucionalização nos modos deficientes de representação, especialmente pela pouca presença de LGBTI nos espaços de

poder. A criminalização da LGBTIfobia, portanto, é medida adequada que fornece elementos para higienizar o debate político dos discursos de ódio e ainda fornece elementos adicionais para o rearranjo estrutural na representação política das minorias LGBTI.

Nos últimos anos a LGBTIfobia tem se tornado uma espécie de arma política, por exemplo, na colocação da defesa das pautas excludentes de gays e trans como plataforma eleitoral53. Discursos odiosos contra a população LGBTI ganham espaço nos debates políticos, o preconceito parece ter se transformado em instrumento político. Em 2014, nas eleições presidenciais, em debate televisionado, um dos candidatos à Presidente de República, em resposta a outra candidata ao mesmo cargo, a respeito da possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo, chegou a afirmar que “aparelho excretor não reproduz” e que a “maioria” deveria “enfrentar essa minoria” (UOL, 2014). A possibilidade de casamento igualitário (uma noção efetiva de igualdade) é apresentada como afronta à maioria heterossexual. Supõe o presidenciável que a maioria deveria “enfrentar” a minoria, em um discurso carregado de intolerância diante da diferença. O ódio aos LGBTI tem se tornado espécie de arma política para conquistar espaço em setores mais reacionários da sociedade. O candidato eleito à presidência da República em 2018, Jair Bolsonaro, ao longo de sua carreira política, protagonizou inúmeros discursos que veicularam indissimulável ódio LGBTIfóbico (MARÉS; BECKER; AFONSO, 2018). Até pouco tempo, o então deputado Jair Bolsonaro era um parlamentar com baixíssima representatividade e atuação parlamentar pouco expressiva, mas foi se tornando figura de destaque nacional graças a seu discurso marcadamente homofóbico. “Sem discurso, de inteligência e nível intelectual bastante limitado, eles descobriram no passionalismo homofóbico – no Brasil miscigenado, um aparente substituto para o racismo passional – promissor filão eleitoral” (SIRKIS, 2013).

Discursos excludentes contra minorias ganham espaços em setores ressentidos pelos avanços de conquistas de direitos, os quais passam a apoiar candidatos claramente LGBTIfóbicos, racistas e misóginos.

A LGBTIfobia circula no debate político brasileiro como plataforma eleitoral. Os políticos conservadores perceberam que a LGBTIfobia tem potencial de angariar votos nos processos eleitorais. Esse discurso, portanto, corrompe as condições de ação política em condições de igualdade. Gays e trans sofrem um tipo de injustiça que está associada à

53 Na eleição presidencial de 2010, no Brasil, os dois candidatos do segundo turno, Dilma Rousseff e José Serra,

cederam às pressões de grupos conservadores e se comprometeram publicamente que seriam contrários à criminalização da LGBTIfobia. No ano seguinte, congressistas conservadores conseguiram fazer com que o Governo suspendesse o programa Escola sem Homofobia, que buscava capacitar professores para lidar com a diversidade sexual nas escolas (SANTOS, 2016).

representação nos fóruns de debate público, diante do uso instrumental da sua sexualidade. A criminalização da LGBTIfobia, nesse particular, portanto, busca impedir que discursos e atos LGBTIfóbicos sejam transformados em instrumento de atuação política.

Por outro lado, a dimensão da representação pressupõe condições estruturais para a participação política com garantia de igualdade (paridade de participação). Os arranjos institucionais devem ser capazes de dar condições a todos de expor as suas razões e tomar parte do processo de decisão. Nesse ponto, pretende-se demonstrar que a criminalização da LGBTIfobia é também uma medida que contribui para criar parâmetros interpretativos que busquem dar condições de paridade de participação para LGBTI. Importa aqui demonstrar que a existência de tutela penal da liberdade sexual de gays/trans implica melhoria das condições de disputa política nos aparatos institucionais do Estado.

A noção de cidadania política deve levar em conta que as minorias têm direitos de serem escutadas e que seus interesses sejam levados em conta (KYMLICKA, 1996). A representação política adequada nos fóruns de discussão é parte importante da participação política. Young (2000) destaca a importância da representação dos grupos minoritários nos espaços de deliberação. Para a autora, a necessidade de representação das minorias estaria fundamentada na particularidade dos interesses, opiniões e nas perspectivas sociais de cada grupo. Por isso a veiculação das demandas sociais feitas pelos membros do grupo corresponderia a uma exigência da democracia. Mecanismos institucionais que promovem exclusão de grupos dos espaços de representação política deslegitimam as instituições democráticas.

Quase não há estudos qualitativos e quantitativos sobre a participação de LGBTI nos órgãos de representação política. Em relação à participação das mulheres, ao contrário, vários são os estudos que apontam as possíveis causas do déficit da representação feminina na política. Esses estudos podem, de algum modo, contribuir para entender as razões da baixa representatividade de gays e trans nos espaços políticos.

A partir de um estudo realizado por Richard Fox e Jennifer Lawless (2012), nos EUA, em relação à participação das mulheres nos cargos eletivos de representação política, constatou-se que a diferença de gênero não é determinante em relação à probabilidade de vencerem as disputas eleitorais. A disparidade de gênero, materializada no resultado desigual de representação política, está colocada no momento anterior ao processo eleitoral propriamente dito: “Empiricamente, nossos resultados fornecem a primeira evidência – em âmbito nacional – de que as elites femininas têm probabilidades significativamente menores

do que seus equivalentes masculinos de ser candidatas” (FOX; LAWLESS, 2012, p. 140). As pesquisadoras destacam alguns fatores que reduzem a probabilidade das mulheres se lançarem candidatas, entre eles estão a cultura política (mais ou menos progressista em termos de gênero), a responsabilidade familiar, as qualificações autopercebidas (a suposta inaptidão da mulher para a atividade política) e motivações ideológicas.

De forma geral, a decisão de se lançar candidato/a é influenciada por regras de gênero que estão antes do processo eleitoral propriamente tido, de modo que o espaço da política está culturalmente associado ao homem. Desse modo, dois são os elementos centrais que determinam que as mulheres tenham menor representação na política institucional: 1) as mulheres geralmente recebem menos estímulos externos para se lançarem candidatas em relação ao homem com as mesmas qualificações (FOX; LAWLESS, 2012) e 2) tendem a exigir de si mesmas um nível de qualificação maior do que os homens para se lançarem candidatas (FOX; LAWLESS, 2012). Portanto, “as evidências encontradas em nosso estudo revelam que as diferenças de gênero fundamentais estão situadas na fase do processo eleitoral em que ocorre o surgimento dos candidatos” (FOX; LAWLESS, 2012, p. 151).

Conforme pesquisa produzida por Gustavo Santos (2016), as candidaturas de LGBTI aos cargos públicos são, em sua ampla maioria (96%), para cargos proporcionais, demonstrando a resistência dos partidos em investir em candidaturas para os cargos considerados mais importantes. Por sua vez, as candidaturas a vereador/a somam 89% do total. Em relação ao nível de instrução, os candidatos LGBTI geralmente têm um nível de escolaridade significativamente mais elevado que a média dos candidatos, isso reforça a ideia de que o elemento de socialização impacta na decisão de se tornar candidato, tendência também encontrada no caso das mulheres (SANTOS, 2016). Um dado que difere as candidaturas LGBTI das candidaturas das mulheres é a performance eleitoral. Enquanto as mulheres tendem a ter um desempenho eleitoral próximo a dos homens, os candidatos LGBTI têm resultado eleitoral significativamente menor aos demais (SANTOS, 2016). Santos (2016) destaca ainda que a primeira travesti a ser eleita para um cargo público no Brasil, em 1992, foi a vereadora Kátia Tapety, no município de Colônia do Piauí.

Os problemas apresentados para a representatividade feminina na política podem ser aplicados aos LGBTI em alguma medida. A socialização dos LGBTI impõe um tipo de subordinação que tem impacto na esfera política, impedindo a paridade de participação na dimensão da representação. O exercício das atividades políticas é associado à virilidade masculina heterossexual e, portanto, ao domínio público. As questões públicas estão

associadas ao homem cisgênero e heterossexual, muitas vezes apresentado dentro de um núcleo familiar tradicional, enquanto as expressões da sexualidade dos LGBTI seriam de ordem privada. Os LGBTI são, assim, tolerados em alguns espaços e atividades, geralmente considerados menos nobres. “Entendendo esse cenário, não fica difícil de compreender a exclusão de LGBT na arena política e o estrangulamento da ambição política desse público” (PEREIRA, 2017, p. 127).

Há na LGBTIfobia uma dimensão de exclusão nos espaços de representação institucional. A representação simbólica de LGBTI os exclui de uma dimensão fundamental de direito: o exercício da cidadania política. A criminalização da LGBTIfobia não resolve o problema, mas pode contribuir juridicamente para que as barreiras aos LGBTI nas disputas institucionais sejam afastadas. Ao tornar crime condutas que manifestem desrespeito às manifestações sexuais não hegemônicas, a institucionalidade é movida contra a própria ordem institucional LGBTIfóbica.

A criminalização da LGBTIfobia pode ainda dar condições para que LGBTI tenham melhor ambiente político para promover a disputa em condições de igualdade e não serem vítimas de hostilizações em razão da sua orientação sexual ou da sua identidade de gênero no processo eleitoral. Há exemplo de candidato LGBTI que teve sua casa pichada com referência LGBTIfóbica54. Desse modo, a criminalização da LGBTIfobia guarda também uma relação com a dimensão política.

6.5 A necessidade de criminalização da LGBTIfobia

A criminalização da LGBTIfobia decorre de uma exigência normativa do próprio sistema jurídico vigente. Até aqui se analisou de forma mais profunda as bases jurídico- políticas da necessidade de criminalizar a LGBTIfobia, a partir da ideia de justiça, que podem ser apontadas como pilares sobre as quais é assegurada a legitimidade do sistema jurídico. A seguir, buscou-se aprofundar a análise das questões específicas e mais propriamente jurídicas do tema abordado. Em alguns momentos se retornará a pontos já mencionados, mas buscando gerar novas consequências que suportem uma fundamentação no próprio sistema jurídico.

6.5.1 O que significa juridicamente criminalizar a LGBTIfobia?

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O candidato a prefeito na cidade de Itapecerica-MG, na eleição de 2016, teve sua casa pichada com dizeres homofóbicos.