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6. O DIREITO PENAL E A PROTEÇÃO DE GRUPOS VULNERÁVEIS

6.6 A LGBTIfobia e a neutralidade liberal

Com sustentação no pensamento de Nancy Fraser, apoia-se na ideia de que o dever de criminalizar a LGBTIfobia está fundado em um ideal de autonomia individual, que tem como pressuposto a dignidade humana e o domínio da razão pelo sujeito, em seu núcleo mais

original, de tradição kantiana (KANT, 2007). O reconhecimento da autonomia individual confere ao sujeito um núcleo de matérias cujo arbítrio pertence exclusivamente ao indivíduo. Com Fraser, a noção de liberdade terá um sentido menos abstrato e, portanto, mais enraizado, que poderia ser traduzido na garantia de um conjunto de condições (morais, materiais e políticas) que conferem possibilidades iguais de ação aos sujeitos. Assim, as condições externas de ação vão influenciar aquilo que se poderia chamar de autonomia. Entretanto, as medidas que visam corrigir as condições sociais injustas estão fundamentadas no dever moral de tratamento igualitário (paridade de participação), cujo fundamento é a autonomia do sujeito.

Para Fraser, a necessidade de reconhecimento pode ser extraída de uma noção de justiça. Para isso, a filósofa afasta o reconhecimento da identidade para se apoiar na noção de status moral. O falso reconhecimento não significa depreciação da identidade, mas a ausência de status social que possibilita o tratamento como parceiro nas relações sociais (FRASER, 2007). Ou seja, a ausência de reconhecimento “significa subordinação social no sentido de ser privado de participar como um igual na vida social” (FRASER, 2007, p. 107). Fica claro que Fraser confere à liberdade individual profundo enraizamento no contexto social.

Por outro lado, é possível afirmar que Fraser tem em mente que na sociedade atual há um pluralismo de concepções de vida boa e que o reconhecimento e a redistribuição não podem ter o seu fundamento no interior dessas concepções. No texto Reconhecimento sem ética, Fraser (2007) busca dar uma saída teórica a esse problema. O pluralismo é uma espécie de constatação empírica, algo que John Rawls (2000) encara como “resultado normal do exercício, pelos cidadãos, de sua razão, no seio de um regime democrático liberal” (RAWLS, 2000, p. 9).

Essas ideias, de um lado o reconhecimento da autonomia individual enraizada e, de outro, o pluralismo, foram valores consagrados na Constituição da República de 1988. O princípio da dignidade humana (art. 1°, III, CR/88) e a noção de Direito Fundamentais conferem ao sujeito uma esfera jurídica de liberdade exclusiva. A própria afirmação da Constituição e dos Direitos Fundamentais historicamente é fruto da “elaboração” da figura do “indivíduo autônomo”:

Além disso, essa Constituição precisa assegurar a vivência prática, já em curso, da autonomia privada e autonomia pública dos sujeitos que integram a sociedade. Ela o faz por de um conjunto de direitos que, por um lado, garantem que os indivíduos eles mesmos desenvolvam-se e organizem-se livremente em suas vidas privadas e que, por outro lado, garantem a esses indivíduos, na condição de cidadãos, a participação na formulação das decisões normativas que lhes dizem respeito

(GOMES, 2018, p. 136).

Importante ressaltar que a ordem jurídica reconhece o pluralismo das diversas concepções de bem razoáveis. Entre os fundamentos da República está o pluralismo político (art. 1°, V, CR/88) – o Estado e os cidadãos devem respeitar as concepções particulares de vida boa e reconhecer a livre circulação das ideias, modos de vida e concepções de bem-viver. Por exemplo, a Constituição de 1988 reconhece o modo de vida dos povos indígenas, conforme art. 231: “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (BRASIL, 1988). A Constituição ainda protege as comunidades remanescentes de quilombolas, conforme o art. 216, § 5º e o art. 68 da ADCT (BRASIL, 1988). Prescreve o art. 216 da CR/88 que fazem parte do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser preservados, os diversos grupos formadores da sociedade brasileira, “os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (BRASIL, 1988).

A Constituição de 1988, portanto, não impõe uma forma específica de vida ou, de qualquer modo, privilegia um modo particular de vida boa. Assim, as comunidades indígenas, quilombolas, as minorias culturais, as formas de vida não hegemônicas, todos devem ter igual respeito e consideração no ordenamento jurídico. Somente as visões incompatíveis com a convivência respeitosa entre diferentes visões não têm lugar no regime democrático: “A constituição democrática de uma sociedade complexa não pode ser resumida a uma única doutrina abrangente, mas antes reconhece a disputa entre doutrinas distintas, estimulando a sua convivência” (ROCHA, 2009, p. 309).

A criminalização da LGBTIfobia, pode-se dizer, está assentada na autonomia do sujeito, associada à ideia de liberdade ou, mais especificamente, de liberdade sexual, e, de outro lado, no respeito à pluralidade dos modos de vida, expressões do sexo e identidade. Além disso, tem-se que tal criminalização é medida que atende à exigência de proteção à liberdade sexual e essa tutela se dirige às perturbações indevidas de grupos que visam restringir o livre exercício da autonomia da população LGBTI. A violência física e a exclusão dessa população subtraem as condições de exercício da autonomia individual e corrompem as condições que garantem o status moral igualitário. Como parâmetro de justificação moral das demandas sociais, a criminalização da LGBTIfobia atende ao requisito da paridade de participação, uma vez que busca tutelar o livre exercício da liberdade sexual.

A criminalização da LGBTIfobia também atende à exigência da neutralidade do Estado em relação às diversas concepções de vida boa. Discursos/ações que mostram aversão aos LGBTI e que, de algum modo, pregam ou fomentam o desrespeito à dignidade das pessoas, a partir da sua orientação sexual e de sua identidade de gênero, são incompatíveis com o regime democrático. Assim como o sistema jurídico brasileiro se mostra avesso, no plano normativo, às manifestações e ações discriminatórios contra as concepções de vida boa de fundo religioso, igualmente o será em relação aos modos de vida e expressões do sexo não hegemônicas. Neste ponto, a tutela estatal da diversidade atende à exigência da igualdade de status moral do sujeito no plano institucional. A presença ou ausência de mecanismo de tutela jurídica, voltado a determinado grupo, corresponde à institucionalização ou não do status moral por meio das normas legais. Aqui, portanto, está em questão o arranjo institucional por meio de suas normas jurídicas.

Como já dito anteriormente, a criminalização da LGBTIfobia atende ao parâmetro da paridade de participação, manifestado na tutela da liberdade sexual, tanto sob a perspectiva das formas de depreciação moral que circulam livremente nos espaços sociais quanto em relação aos mecanismos de valoração moral relativa dos sujeitos, quando busca tutelar a diversidade de formas e concepções de boa vida.