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3 GÊNERO E O DIREITO: INSTITUCIONALIZAÇÃO DA LGBTIFOBIA

4.9 Incluindo a representação

Já no texto Social Justice in the Age of Identity Politics: Redistribution, Recognition, and Participation, de 1996, Fraser identificou os limites para o adequado tratamento das

questões de justiça dentro do Estado westfaliano. O problema da desigualdade já era apontado por Fraser como uma questão que somente poderia ser enfrentada se tratada em escala global. O tratamento local no campo econômico poderia, na verdade, contribuir para criar maiores disparidades entre os países.

Em 2003, no livro Redistribution or Recognition? A Political-Philosophical Exchange, Fraser defende um modelo dualista de justiça, com as exigências do reconhecimento e da redistribuição, mas já admitindo a possibilidade de que outras modalidades adicionais pudessem ser acrescentadas:

The most plausible candidate for a third dimension is "the political." "Political" obstacles to participatory parity would include decision-making procedures that systematically marginalize some people even in the absence of maldistribution and misrecognition - for example, single-member district winner-take-all electoral rules that deny voice to quasi-permanent minorities (FRASER, 2003, p. 68).

No texto Reframing Justice in a Globalizing World, publicado em 2005, a pesquisadora desenvolve finalmente o que tinha deixado em aberto nos seus textos anteriores, sobre a possibilidade de incluir a política como uma terceira dimensão da justiça. A inclusão da representação política como dimensão da justiça atende à nova realidade do contexto social atual.

A globalização financeira colocou a questão política no centro da discussão. Se antes o debate sobre a redistribuição estava centrado no controle e regras emanadas dos Estados nacionais, com a internacionalização do capital financeiro, os limites territoriais políticos dos Estados são justamente os obstáculos para as lutas políticas por meios materiais (FRASER, 2009). Nesse sentido, os despossuídos e desempregados não conseguem fazer o devido enfrentamento das injustiças por eles sofridas.

Fraser (2009) identifica, no momento atual da globalização, uma alteração na forma de pensar a justiça32. Se no auge da social democracia as disputas acerca da justiça se limitavam aos espaços territoriais dos Estados, o que Fraser chama de “enquadramento keynesiano- westfaliano”, no atual contexto esse enquadramento não mais se mostra adequado. Tanto as demandas por redistribuição quanto por reconhecimento eram tratadas dentro dos limites

32 Fraser coloca o desafio de desenvolver uma teoria da esfera pública transnacional que busque legitimar o

processo de formação da opinião pública internacional. Por isso será legítima a esfera pública capaz de garantir a “todos os sujeitos” a possibilidade de participar como pares no processo de formação do consenso de interesse comum (FRASER, 2008b). Ainda de acordo com a autora, as teorias tradicionais sobre a esfera pública não dão conta mais de tratar da esfera pública no contexto em que os limites do debate público não podem ser definidos pelos Estados nacionais.

territoriais dos Estados. Por vezes alguns assuntos ganhavam relevância para além das fronteiras nacionais, mas não era a regra. Para Fraser, o enquadramento keynesiano- westfaliano foi sendo alterado a partir de 1970.

Nesse sentido, o quem da justiça não era objeto de grandes discussões, uma vez que já estava pressuposto e correspondia aos cidadãos nacionais (FRASER, 2009). Essa realidade se altera no contexto pós-Guerra Fria, quando se questionou sobre as implicações das decisões de alguns Estados para outras nações e as consequências No mercado financeiro internacional especulativo. Ao lado dessas alterações, há o fortalecimento do fluxo de informações transnacionais e de imigrações, o aquecimento global, o terrorismo internacional, o que fortaleceu a ideia de que as condições de vida de todos dependem de fatores muitas vezes internacionais (FRASER, 2009).

Isso tudo faz alterar profundamente a forma de se perceber a justiça. A opinião pública internacional passa a ser cada vez mais relevante nos debates públicos. Os sujeitos da justiça passam a demandar questões que não podem ser devidamente articuladas considerando os limites dos Estados. Altera-se tanto os destinatários da justificação pública das demandas quanto aqueles que legitimamente têm o direito de exigir direitos.

Fraser distingue dois níveis que as discussões públicas passaram a ter. As questões de primeira ordem, as quais dizem respeito à própria substância da justiça, o que até então foi discutido em torno do reconhecimento e da redistribuição. Nesse nível, a discussão estava centrada na determinação do meio justo de distribuição dos recursos materiais e quais as demandas por reconhecimento mereciam consideração. Já as questões de segunda ordem dizem respeito ao enquadramento da discussão das questões de primeira ordem, seriam questões metapolíticas. Para o enfrentamento dessas questões, as teorias tradicionais não oferecem instrumentos conceituais (FRASER, 2009).

A partir desse novo contexto social, Fraser sustenta que as teorias tradicionais (incluindo a sua proposta teórica) não mais dariam conta de resolver adequadamente as questões de segunda ordem. Para articular uma proposta teórica que se adeque ao novo contexto, a filósofa retorna ao princípio liberal de igual valor e busca dar a ele um sentido forte de concretude. O princípio da paridade de participação, sob o qual Fraser sustenta sua teoria, impõe que os arranjos institucionais devem permitir que todos participem em pé de igualdade na vida social. Esse princípio foi articulado em torno das exigências de redistribuição e de reconhecimento. Negar a paridade de participação significa privar o sujeito do acesso a bens materiais capazes de garantir igualdade de condições nas relações sociais e,

ao mesmo tempo, garantir igual status moral dos sujeitos em suas interações sociais (FRASER, 2009). Até então era o que Fraser tinha desenvolvido. Agora, a proposta é enfrentar outra dimensão por ela negligenciada nos escritos anteriores: a política.

A dimensão política tem um sentido específico para Fraser. Trata-se das regras sobre as quais as decisões públicas são tomadas. Essa dimensão determina quem conta e quem está excluído das decisões políticas, os procedimentos para a tomada de decisão, os palcos nos quais as discussões sobre reconhecimento e redistribuição são feitas. Essa dimensão está ligada à representação, que é uma questão de pertencimento social (FRASER, 2009).

A autora nomeia dois pontos fundamentais em relação à representação. O primeiro está relacionado aos sujeitos e grupos que podem legitimamente apresentar suas demandas. Ou seja, quais sujeitos ou grupos estão incluídos e quais estão excluídos. O segundo ponto sobre a representação está ligado ao procedimento, às regras para a tomada de decisão.

Para Fraser, a dimensão política não pode ser reduzida à dimensão econômica, tampouco à cultural. Isso significa que pode haver obstáculos políticos para alcançar a paridade de participação que não serão devidamente corrigidos em termos econômicos nem em termos culturais. O que a autora está propondo é uma justiça tridimensional.

Fraser distingue duas formas de falsa representação. Um primeiro tipo de falsa representação seria a política-comum. Esse tipo está já presente dentro das discussões tradicionais sobre os problemas de representação e corresponde à situação na qual, embora incluídos, alguns têm as condições para a paridade de participação negadas. Diz respeito ao melhor modo de tomada de decisão (FRASER, 2009). No segundo nível da falsa representação, entretanto, as fronteiras políticas implicam a exclusão de alguns do debate político, o que Fraser chama de “mau enquadramento” (FRASER, 2009, p. 22). Os problemas de enquadramento são mais profundos e impedem que as pessoas apresentem as suas demandas sobre as questões de justiça de primeira ordem.

Fraser sustenta que as três dimensões da justiça são mutuamente dependentes. Não se pode resolver uma dimensão da justiça sem que igualmente outra seja enfrentada. Se a capacidade de demandar melhores condições materiais de vida e novas representações de status depende das questões relativas ao político, a capacidade de expressar politicamente as demandas depende dos recursos materiais e do reconhecimento dos indivíduos que formulam suas pretensões (FRASER, 2009). Não propõe Fraser uma preponderância da esfera do político sobre as demais dimensões.

enquadramento, Fraser ainda identifica os problemas que seriam de terceira ordem, presentes na discussão sobre as questões relativas ao quem da justiça. No momento em que não se garante a paridade de participação nas discussões sobre as questões de representação tem-se um problema de terceira ordem.

Fraser sugeriu, no texto Reframing Justice in a Globalizing World (2005), em relação ao quem da justiça, usar o princípio de todos os afetados. Por esse princípio, seriam sujeitos da justiça todos os afetados por uma estrutura social ou instituição. No contexto atual, o que determinaria os sujeitos seriam exclusivamente os limites políticos dos Estados (FRASER, 2008a). Na perspectiva dos Estados colonizadores, no Estado westfaliano alguns defendiam que o princípio de todos os afetados significava os próprios limites políticos dos Estados, embora isso possa ser contestado sob a perspectiva dos países periféricos colonizados (FRASER, 2008a). Na atual conjuntura, entretanto, não há mais espaço para sustentar os limites territoriais dos Estados como correspondente ao princípio de todos os afetados. O princípio de todos os afetados comporta diferentes interpretações e permaneceria em aberto. O alcance do princípio deveria ser determinado de forma dialógica em fóruns de debates democráticos.

Posteriormente, Fraser muda de posição, no texto Abnormal Justice, publicado em 2008, e sugere que o princípio de todos os afetados não atende ao contexto pós-westfaliano. Para ela, o princípio que se adequa à determinação do “quem” da justiça seria o princípio de todos os sujeitos. Por esse princípio o que inclui as pessoas para tomar parte das deliberações não é a nacionalidade compartilhada, nem a ligação em relação causal, mas a sujeição comum à estrutura de governo (interno ou externo), que determina as regras fundamentais de interação. Assim, se a estrutura extrapola os limites territoriais dos Estados, não pode ser determinada a partir da nacionalidade.

Fraser (2008a) deixa em aberto a possibilidade de que outras dimensões possam surgir. As dimensões de justiça se revelariam historicamente por meio de lutas sociais. Até o momento, entretanto, permanecem as três dimensões da justiça.