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política I. Florianópolis: UFSC/EAD/FILOSOFIA, 2008, p 24.

4.2. Édipo como protótipo do trágico.

"Acaba sendo-me revelado que sou filho de quem não devia nascer, o esposo de quem não devia sê-lo, o assassino de quem não deveria ter matado. [...] Ó tálamo funesto que me geraste, e que recebeste minha semente, por que aceitaste um dia um pai irmão de seus filhos, filhos irmãos de seu pai, e uma esposa, mãe de seu marido?"

Sófocles (496/495-c. 405 a.C)

Édipo Rei (430 a.C.)

Sófocles (em grego, Σοφοκλ ς) viveu durante a época do apogeu de Atenas. Assistiu a construção da Acrópole, o engrandecimento da pólis, apesar de também sofrer, ao final da vida (morreu em 405 a.C., com cerca de 90 anos), os dissabores decorrentes da Guerra do Peloponeso (de 431 a 404 a.C.). Sua última peça, Édipo em Colono (encenada após sua

486 BRANDÃO, J. S. Ibid, 2007, p.35. 487 VERNANT, J. P. Ibid, 2005, p. 121. 488 LESKY, A. Ibid, 2003, p. 139.

morte), revela bem seu entusiasmo pela grandeza do império ateniense. Dos três grandes trágicos, Sófocles foi o único que nunca deixou Atenas. Nascido numa família abastada, participou da vida política de sua cidade natal: por duas vezes foi eleito como estrategista na junta de generais que administrava negócios civis e militares e dirigiu o departamento do Tesouro, que administrava os fundos da Confederação de Delos. Desempenhou funções religiosas e foi “coroado” pela primeira vez num Concurso de Tragédias em 468 a.C., com menos de trinta anos. Nos anos seguintes foi agraciado com prêmios semelhantes; o último deles, aos 87 anos, com a peça Filoctetes.

Sófocles valorizou a fé na dimensão individual. Se o teatro de Ésquilo - comenta Brandão - “é uma catástrofe inevitável, gerada pela ‘hybris’, pela démesure” voltado ao julgamento dos fatos, “no teatro de Sófocles, ao contrário, desde o momento em que se entronizou o ‘Lógos’, a razão, a vontade humana, só se podem julgar os atos”. Ou seja, para o poeta da Oréstia, importa o fazer, enquanto que, para o poeta da Antígona e do Édipo Rei, o

mais importante é o agir. Enquanto Ésquilo elabora suas personagens em função da fábula (mito), Sófocles elabora a fábula em função das personagens, em especial do protagonistés, o personagem central. Se na tragédia esquiliana, a Moira, e não o homem, a medida de todas as coisas, a característica “antropocêntrica e teosférica” presente em Sófocles projeta o herói dotado de uma vontade livre para agir, pouco importando quais as conseqüências, enquanto a importância dos deuses é minimizada e sua atuação ocorre à distância, por meio de adivinhos e oráculos, a exemplo de Tirésias e do Oráculo de Delfos. Segundo Brandão, as personagens no teatro de Sófocles “agem livremente, para que seu destino inelutável se cumpra plena e integralmente” 489, tanto é que, em Édipo Rei, o papel do destino termina no exato momento em

que a peça se inicia.

Em sua genialidade, Aristóteles julgava Sófocles como o príncipe dos poetas dramáticos da civilização helênica, e Édipo Rei, como a mais perfeita das tragédias gregas. Não

é por acaso que uma das mais conhecidas tragédias gregas é Édipo Rei, de Sófocles. Nela, os deuses desaparecem de cena e o herói representa a antítese entre a vontade do homem e as disposições do destino. Desde o século IX a.C., a figura de Édipo já era concebida por Ulisses (c. 850 a.C.), em sua Odisséia, quando aparece em uma passagem. Nessa obra antológica, a figura de Dirceu rompe um acordo tácito com o destino (Hybris), gerando a Nêmesis 490 (vingança divina).

489 BRANDÃO, J. S. Teatro grego: tragédia e comédia. 10 ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 2007, p. 43. 490 Nêmesis, deusa grega da ética, segundo Hesíodo, era uma das filhas da deusa Nix (a Noite). Nascida

Sófocles, no início do século V a.C. narra a história desse herói em três obras:

Édipo Rei; Édipo em Colona e Antígona 491. Um herói que transgride o destino anunciado por

um oráculo e representa a essência do pensamento trágico de sua época. O personagem de Sófocles não perde sua atualidade, na medida em que, cerca de 25 séculos após, Sigmund Freud, (1856-1939), o fundador da psicanálise, "substitui a teoria da Sedução Generalizada pelo Complexo de Édipo" (onde o objeto maior é o desejo relacionado com o pai ou com a mãe) e transforma esse herói da tragédia grega "num cânone da civilização ocidental, onde vigora a proibição de incesto” 492.

Na interpretação de Peter Szondi "o trágico perpassa a tessitura de Édipo Rei como em nenhuma outra peça". Nele, o embate entre salvação e aniquilamento surge como um traço marcante. Szondi ressalta que "desde o início está presente a dialética trágica de salvação e aniquilamento” 493, manifesta nas três intervenções dos oráculos.

Na primeira intervenção, Laio, rei de Tebas, na ânsia de saber se uma maldição lançada pelo rei Pélope494 ocorrerá, busca ajuda junto ao oráculo de Apolo que prediz: se Laio e

Jocasta tiverem um filho, este mataria o pai e desposaria a mãe. Apesar de evitar a concepção, Jocasta gera um filho, um ano após o (primeiro) vaticínio do Oráculo de Delfos. Para evitar a primeira profecia do oráculo, Laio decide mandar um servo matá-lo. O servo abandona-o em um bosque, com os tornozelos amarrados por uma corda. Um pastor recolhe-o e leva-o para

Terra) e Urano (o Céu) - foi criada e educada, juntamente com Thêmis, pelas Moiras (deusas do destino) Cloto, Láquesis e Átropo. Essas três deusas moiras eram as filhas mais velhas de Nix.

491 Entre a primeira e a última peça dessa trilogia de Sófocles sobre o encadeamento do mito de Édipo,

transcorreram 41 anos: entre 442 a.C. (Antígona) e 401 a.C. (Édipo em Colono). A tragédia Édipo Rei foi encenada vinte e dois anos após Antígona, ou seja, em 420 a.C (ROMILLY, J. A tragédia grega. 2. ed. Lisboa: Edições 70, 2008). Na expressão de Junito Brandão, “o mito é intemporal”.

492 RAFFAELLI, R. Anotações de aula na disciplina Inconsciente, Cultura e História.

UFSC/CFH/DICH, março a julho 2005.

493 SZONDI, P. Ensaio sobre o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 91.

494 A maldição que incidiu sobre a família dos Labdácidas (atingindo as gerações descendentes do rei

Lábdaco, rei de Tebas) teve início a partir de um ato libidinoso de Laio, filho do rei Lábdaco. Ao se hospedar na corte de Pélops (rei da Elida), Laio violou a sacralidade da hospitalidade que lhe fora concedida, ao raptar Crisipo, filho do rei Pélops, “inaugurando, destarte, na Grécia, a célebre pederastia” (BRANDÃO, J. S. Ibid, 2007, p.39). Hera, a protetora dos “amores normais” amaldiçoou, pela boca de Pélops, a Laio e a todos os seus descendentes. Assim é que, ao se casar posteriormente com Jocasta, Laio, já como rei de Tebas, dirigiu-se ao Oráculo de Delfos e inquiriu se seu casamento seria fecundo, obtendo como resposta: “Se de Laio e Jocasta nascer um filho, ele matará o próprio pai e casar-se-á com a própria mãe”. A maldição se realizou, atingindo Laio, Jocasta, Édipo e seus quatro filhos: os homens Etéocles e Polinice (que se matam em batalha) e as filhas Antígona (morta a mando de Creonte, na peça Antígona) e Ismene.

Corinto, onde será criado na corte do rei Pólibo. Os soberanos de Corinto (Pólibo e Mérope) criaram e educaram o menino como se fora seu filho (eles não haviam concebido nenhuma criança), dando-lhe o nome de Édipo, que significa “pés inchados”, em conseqüência da inflamação provocada pelas cordas que o prendiam à árvore. Quando, já adulto, Édipo toma conhecimento, através de um bêbado, de que não é filho natural de Pólibo, parte para Delfos, onde um segundo oráculo lhe revelaria que ele próprio, Édipo, viria a ser o assassino de seu pai e esposo de sua mãe (um duplo crime de parricídio e incesto). Para contornar o destino anunciado, Édipo decide não retornar a Corinto numa ação pretensamente capaz de evitar o (segundo) vaticínio do oráculo. Toma então o caminho de Tebas e, sem o saber, ao encontro de seu verdadeiro pai. No ato da fuga, encontra-se com Laio na encruzilhada dos três caminhos, onde acontece um embate (por motivos religiosos) e Édipo mata Laio e sua comitiva, cumprindo assim o presságio dos dois primeiros oráculos: "o que era salvação no terreno da aparência mostra-se, na prática, aniquilamento" 495.

Nesse ínterim, Tebas estava assolada por uma peste: uma Esfinge, postada à entrada da cidade, devorava todos aqueles que não lhe respondiam a um “enigma” por ela proposto. Com a morte de Laio e a conseqüente vacância do trono de Tebas, é este oferecido – juntamente com a mão da rainha Jocasta – a quem livrasse a cidade da Esfinge. Como Édipo nada mais tem a perder, resolve enfrentar a Esfinge e tentar decifrar seu enigma.

Ao decifrar o enigma proposto pela Esfinge 496, Édipo liberta Tebas do

encantamento por ela imposta e, na condição de salvador, é aclamado rei. Casa-se com a rainha Jocasta (sem saber que era sua mãe). Dessa união incestuosa nascem dois filhos (Etéocles e Polinice) e duas filhas (Antígona e Ismênia). A cidade prospera sob o reinado de Édipo até que uma nova peste misteriosa se abate sobre Tebas: as sementes não mais germinam no seio da terra, dizimando pessoas e animais. A população de Tebas suplica novamente a Édipo que a salve dessa nova peste. Nesse exato momento, com a angústia de Édipo frente ao novo desafio, tem início a peça Édipo Rei, de Sófocles.

495 SZONDI, P. Ibid, 2004, p. 92.

496 A Esfinge (metade mulher, metade leão), sentada sobre uma rocha, propõe enigmas aos passantes.

Como ninguém consegue decifrá-los, a todos ela devora. Creonte, governante de Tebas, propõe um duplo prêmio àquele que conseguir livrar a cidade da Esfinge: o trono e a mão da rainha viúva, Jocasta. O enigma é proposto a Édipo: "Qual o animal que de manhã tem quatro pés, ao meio dia tem dois e ao entardecer três?" Édipo decifra e responde: "o homem que na infância engatinha sobre pés e mãos, quando adulto anda e na velhice recorre ao auxílio de um bastão". O monstro perde sua razão de ser e joga-se do alto da rocha despedaçando-se.

Para saber a causa da peste, Édipo envia seu cunhado Creonte ao oráculo de Apolo, em Delfos. Ao regressar de Delfos, Creonte revela ao rei e à multidão que o cerca a resposta do oráculo: a cidade abriga impunemente um criminoso; o assassino de Laio. Édipo se dispõe a descobrir tal assassino. Tem início, de forma tensa e crescente, a investigação, fazendo de Édipo Rei, a primeira novela policial.

Como dizia Ésquilo, "o destino faz da vida do homem um brinquedo!" Ao final da tragédia, Édipo recorre ao terceiro oráculo - o adivinho cego Tirésias – que, sabedor de tudo, se recusa inicialmente a falar. Mas, pela insistência do rei, desvela o segredo: "És tu o assassino que procuras!" O cego Tirésias faz com que Édipo conheça a verdade, auxiliado pela narrativa de Jocasta, sobre a predição do primeiro oráculo a Laio.

Um mensageiro vindo de Corinto anuncia a morte de Políbo e, crendo tranqüilizar o rei de todo o mistério, declara ter sido ele próprio que entregara a Políbo o recém-nascido enjeitado pelo então soberano de Tebas. O círculo trágico se fecha, de forma inelutável. Jocasta é a primeira a compreender e põe fim à própria vida. Édipo vaza os olhos e pede que Creonte receba e cuide de suas filhas. Parte como andarilho para as montanhas do Citéron. De um rei clarividente, amado e poderoso, Édipo, ao final, assume sua condição trágica, tornando-se cego e banido por si mesmo.

Vagabundo, miserável e cego, expulso de Tebas por Creonte, na condição de parricida e incestuoso, humilhado e desprezado até mesmo pelos filhos Etéocles e Polinice, encontramos Édipo em Colono (bairro de Atenas e local de nascimento de Sófocles) contando tão somente com a ternura de sua filha Antígona, símbolo eterno do amor universal. É o início da terceira peça da trilogia: Édipo em Colono. No bosque sagrado das Eumênides, Édipo parece descobrir a verdade, o conhecimento de si mesmo e, por todo seu sofrimento, redimir-se de seus crimes. Esse cenário representa apenas uma possibilidade, até porque, em face da ambigüidade, essa reabilitação moral (ou mutação heróica) de Édipo pode ser sempre questionada. Vidal- Naquet chama atenção para essa incerteza ao lembrar que “não é fácil dizer o que se torna Édipo em Atenas”, além da impossibilidade em “conter uma personagem trágica numa única rede de significados” 497.

Já quase ao final de Édipo em Colono, Sófocles torna visível o sublime paradoxo que envolve o herói Édipo: Primeiro na manifestação do coro e, logo após no relato do

497 VIDAL-NAQUET, P. Édipo entre duas cidades. In: VERNANT, J. P.; VIDAL-NAQUET, P. Mito e

mensageiro, a mais alta poesia de Sófocles expressa, na noite da mais profunda dor e no murmúrio de uma prece, as desilusões, temores, recordações e reflexões que invadem o velho sofredor, tendo a seu lado apenas o rei Teseu:

“Quem deseja protrair o curso da vida, não se contentando com a de curta duração, este, em meu pensar, é manifestamente um louco. Porque a idade muito dilatada traz também muitas aflições; e o prazer não se descobre em parte alguma quando se atinge a desejada longevidade. A libertadora de males, porém, é igual para todos: é a morte, que, por fim, sobrevêm, desacompanhada de cantos nupciais, de sons de lira e de danças. [...] Depois que o homem nasceu, o segundo é partir o mais depressa possível para o lugar de onde veio. Pois, enquanto dura a juventude com suas loucas leviandades, quem está livre de penas? Quem vive isento de trabalhos? Morticínios, revoltas, contendas, combates e invejas... Por último vem a velhice triste e sem forças, rabugenta e sem amigos com o cortejo dos maiores males. [...]

Quanto à morte de que Édipo foi vítima, nenhum mortal o poderá dizer, a não ser Teseu. Ele não morreu fulminado pelo raio ígneo de Zeus, nem o fez perecer a tempestade, que, durante esse tempo, do mar surgiu; mas arrebatou-o algum enviado dos deuses ou, abrindo- se, benévolo, o seio escuro da terra, foi acolhido no Hades. Porquanto desapareceu sem um gemido e sem dores originadas por alguma doença, mas de modo maravilhoso, como a nenhum dos mortais “498. Este relato de Sófocles (através primeiramente do coro e depois, do mensageiro) ao final do Édipo em Colono evidencia que a tragédia pode também comportar um “final feliz”. Ou seja, o efeito trágico pode estar no corpo (conteúdo), mas não necessariamente no fecho da tragédia.

Um dos traços marcantes da obra de Sófocles, além da celebração da beleza e da pujança da Ática, é sua admiração e crença na criatura humana e na própria vida. No limiar de sua morte (aos 90 anos) Sófocles conclui Édipo em Colono – cujo herói também se encontra no anelo da morte – e comenta sobre a necessidade de repouso e quietude, após as experiências e as tormentas da vida, valendo-se da força e da beleza de sua poesia trágica:

Quem quer demais e em sua vida não observa a justa medida, É desastrado ou assim se me revela.

Porque muito se acumula nos longos dias, e está mais perto da dor. Mas a sede de alegria, mal a vês, tão logo se caia no excesso. E no fim, quando Hades aparece,

Sem canto nupcial, sem lira, sem nada,

Nos vem um auxiliar para todos igual, a morte 499.

498 SÓFOCLES. Édipo em Colono. São Paulo: Martin Claret, 2005, p.92-93. Tradução de Padre Dias

Palmeira; SÓFOCLES.

A admiração de Sófocles pelo ser humano fica evidenciada na já citada manifestação do coro em Antígona: “Das incontáveis maravilhas da natureza, de todas a maior é o homem!500” No entanto, na mesma passagem, o coro emite a seguinte advertência, numa

demonstração evidente da ambigüidade que perpassa o pensamento trágico: “Com inteligência e habilidade ele pode se inclinar, ora para o bem, ora para o mal. Quando no governo, freqüentemente se torna indigno, abjura as leis da natureza e as leis divinas a que jurou obedecer, e pratica o mal audaciosamente! Oh! Que nunca adentre meu lar nem repouse junto a meu fogo, aquele que não pense como eu e proceda de modo tão infame” 501.