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7. Civilização Ocidental: tragédia, modernidade e condição humana

7.1 Uma longa Idade Média

A Idade Média é um bom exemplo do método de enquadramento num determinado período histórico. Muitos historiadores, adeptos do método de periodização, a situam como um período (mil anos) intermediário entre a Antiguidade e os Tempos Modernos 203, estabelecendo

como seu início a queda institucional do Império Romano do Ocidente no ano de 476 e como seu fim a tomada de Constantinopla em 1453 pelos turcos otomanos 204. Já Le Goff – e ele não é

o único - se insurge contra as “famosas querelas de datas, 1453 ou 1492, que valem talvez para a história evenemencial 205 ou estritamente política” 206. Entende que a cultura medieval vai bem

além do período de mil anos apresentado nos manuais de história. Para ele, o conjunto de valores que caracterizam a Idade Média só “se desfaz entre 1750 e 1850, para acabar ao longo dos anos 1950”. Na perspectiva de uma “história profunda”, observa que a própria idéia de Renascimento e a lógica dos séculos XV e XVI devem se limitar ao domínio da arte e da estética, por chocarem-se com uma das instâncias fundamentais da cultura medieval, para a qual fazer de novo consiste sempre em voltar para trás, a ter como referência as Autoridades antigas e a Antiguidade. Na perspectiva de Richard Tarnas (1950-), a exemplo do legado greco-

202 LE GOFF, J. Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 11.

203 Enquanto estudiosos medievais dividiam a história em dois períodos, antes e depois de Cristo,

historiadores renascentistas conceberam, pela primeira vez, uma perspectiva histórica a partir de uma estrutura tripartite: Antiga, Medieval e Moderna. A Antiguidade era o período considerado a partir do surgimento da escrita na Mesopotâmia, cerca de quatro milênios antes de Cristo, até 476 d.C., correspondente ao fim do Império Romano do Ocidente, invadido por povos bárbaros; Idade Média, de 476 até a tomada de Constantinopla pelos turcos, em 1453; e Modernidade quando o bloqueio, pelos turcos, das tradicionais rotas comerciais entre Europa e Ásia, leva os europeus a procurar novos caminhos pelo Oceano Atlântico, dando início a um novo salto epocal: a Era Moderna. (TARNAS, R. A epopéia do pensamento ocidental. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

204 Alguns autores antecipam o início da Idade Média para o ano de 395 quando ocorreu a divisão do

Império Romano (do Ocidente e do Oriente) e deslocam seu término para 1492, o ano do descobrimento da América.

205 Termo derivado do galicismo événementielle, designa a história que relata os acontecimentos em

ordem cronológica.

romano, também a visão (cristã) de mundo que o Ocidente medieval elaborou, transformou, criticou e negou, nunca foi totalmente abandonada 207.

Alguns historiadores entendem que das ruínas do Império Romano emergiram três novas civilizações baseadas em religiões: Bizâncio, o Islã e a Cristandade latina (abrangendo a Europa central e ocidental).

Embora o Império Romano do Ocidente tenha capitulado diante das tribos germânicas na segunda metade do século V, a civilização bizantina (com sede em Constantinopla) perdurou por mais 10 séculos, até a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, em 1453. Como já foi assinalado, para muitos historiadores (aqueles que seguem o método da periodização), este período de mil anos corresponde à Idade Média. Durante a Alta Idade Média (do século V ao século XI), a civilização bizantina encontrava-se, tanto na dimensão econômica como na cultural, bem mais avançada que o Ocidente latino. Apesar do cristianismo ser comum às duas civilizações, aprofundaram-se as divergências entre a Igreja bizantina e a Igreja romana, até seu rompimento final em 1504, com a formação da Católica Romana (no Ocidente) e a Ortodoxa Oriental (no Oriente). O Império Bizantino adotou a cultura e idioma gregos, enquanto o latim predominava na cristandade latina. Inspirado no aparato administrativo romano, o Império Bizantino, sob o governo do imperador Justiniano (que reinou de 527 a 565) ampliou seu domínio até a Grécia, Ásia Menor, Itália, sul da Espanha, partes do Oriente Próximo, África do Norte e Balcãs. Em sua história de mil anos, a civilização bizantina difundiu sua religião (cristianismo ortodoxo) e seus elementos culturais (direito romano, filosofia, matemática e literatura com raízes greco-romanas) aos povos eslavos do leste e sudeste da Europa, estendendo-se até a Rússia 208.

No século VII, após o declínio de Roma, emergiu uma segunda civilização no mundo árabe: o Islã. Estruturado numa teocracia (inseparabilidade entre governo e religião), o Islã teve Maomé (c. 570-632) como fundador, ao receber de Alá (o Deus islâmico) os fundamentos e as normas transcritas posteriormente para o Alcorão (a Bíblia dos muçulmanos).

Apesar de considerar os antigos profetas hebreus como mensageiros de Deus e reconhecerem Jesus como um grande profeta, os seguidores de Maomé (uma espécie de Moisés do povo árabe e considerado o último e o maior profeta do Deus de Abraão) assumiram uma

207 TARNAS, R. A epopéia do pensamento ocidental; para compreender as idéias que moldaram nossa

visão de mundo. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

nova religião monoteísta, a partir do aperfeiçoamento da tradição judaico-cristã, reconhecendo Alá como criador e soberano do céu e da terra. Após unificar as tribos árabes, Maomé dedicou- se à difusão da fé islâmica bem como à disciplina e organização necessárias às guerras de conquista. Em seu apogeu - nos séculos VIII a IX, sob o governo dos califas de Bagdá - a civilização islâmica (Damasco foi sua primeira capital, seguida por Bagdá, erguida perto das ruínas de Babilônia) estendeu-se desde o sul da Espanha até a Índia, unificada por uma língua, uma religião e uma cultura comuns (Figura 28). Por volta do século XI, os árabes começaram a perder seu domínio sobre o mundo islâmico. Primeiro foram os turcos que, após tomarem a Ásia Menor dos bizantinos, conquistaram os territórios árabes da Palestina, da Síria e grande parte da Pérsia. Nos séculos XI e XII os cavaleiros cristãos e os cruzados europeus conquistaram territórios árabes no Oriente Próximo. Nos séculos XIII e XIV grande parte do território muçulmano foi devastada pelas tropas de Gengis Kahn 209 (1162-1227) e Tamerlão (c. 1336-

1405), respectivamente, para ser definitivamente conquistado (em 1404) pelos turcos otomanos que, no século XVI, já haviam conquistado um imenso território incorporando o Egito, a África do Norte e o litoral da Arábia (Figura 28). No entanto, em séculos posteriores, os muçulmanos reconquistaram vários territórios na Ásia e na África, expandindo o Islã em dimensões planetárias. Hoje em dia os seguidores de Maomé são quase tão numerosos quanto os de Cristo.

Figura 28: Império Muçulmano (ano 750 d.C.)

209 Dominando táticas de guerra inovadoras (ágeis cavaleiros munidos de arcos e flechas) para batalhas

nas estepes, Gengis Kahn (Temudjin) mobilizou um eficiente e disciplinado exército e conquistou o mais extenso território de toda a história mundial: na primeira metade do século XIII o Império Mongol se estendia da Síria à Indochina, da Pérsia à Sibéria, da Hungria à China (Figura 29).

Figura 29: Extensão do domínio mongol, sob Genghis Kahn (sec. XIII d.C.)

Apesar dos séculos de grandeza cultural dos Impérios Bizantino e Islâmico, que influenciaram sobremaneira a civilização ocidental, os progressos na ciência, tecnologia, filosofia, economia e pensamento político que deram origem ao mundo moderno foram realizados, sobretudo, pela Cristandade latina a partir do século XII. A Idade Moderna foi gestada a partir dos remanescentes greco-romanos, das tradições germânicas e da perspectiva cristã que configuraram a Cristandade latina no continente europeu. Ao buscar no cristianismo os princípios integradores da Idade Média e eleger a Igreja como a instituição dominante de sua época, esta civilização gerou, no segundo milênio depois de Cristo, movimentos de grandes expressões tais como o Renascimento (entre o final do século XIII e meados do século XVII), a Reforma Protestante (século XVI), a Revolução Científica (século XVII), o Iluminismo (século XVIII), a Revolução Francesa (segunda metade do século XVIII: 1789 a 1799) e a Revolução Industrial (meados do século XVIII). Esses movimentos, apesar de buscarem uma ruptura contra a centralidade e autoridade da Igreja medieval, ainda mantinham, de forma paradoxal, algumas referências ligadas ao reino de sombras e de pecado estigmatizado pelo cristianismo medieval. Nada além do “vaivém entre a história do passado e história do presente” 210 e do vínculo indissociável entre mudança e

conservação, apontado pelo filósofo matemático Alfred North Whitehead (1861-1947) para

quem existem sempre dois princípios inerentes e interdependentes ao espírito de mudança e de conservação 211.

O cristianismo 212 foi o elemento central da política, da cultura e do pensamento

preponderante na Idade Média. Fundamentos cristãos derivados dos ensinamentos e pregações de Jesus de Nazaré e sistematizados por alguns de seus discípulos no Novo Testamento passaram a ordenar a vida humana e uma longa história de debates teológicos, de decisões, para se estabelecer uma doutrina e uma ética (via Concílios Ecumênicos, dogmas estabelecidos pelos papas...), em várias regiões da Europa. Essa luta pela consolidação da doutrina cristã permaneceu até o século IV, quando se rompe, em definitivo, a coexistência entre a patrologia oriental e a greco-romana 213. Após a fragmentação do Império Romano e da deterioração

(desde o período helenístico) da civilização greco-romana, a perspectiva cristã assumiu a categoria central da civilização ocidental medieval, sob a emulação do pensamento racional. No entanto, se pode dizer que há, na base da civilização ocidental, uma demorada convivência entre a racionalidade grega e o monoteísmo judaico-cristão, e que, inclusive, levou a que, nos primeiros séculos da era cristã, fosse subsumida, de forma gradual, a mentalidade dos teólogos de matriz oriental na vitoriosa visão dos teólogos marcados pela leitura mais racional da doutrina originária de Jesus Cristo. Em outras palavras, foi com este debate que se consolidou uma visão greco-romana do cristianismo. De certa forma, o apóstolo Paulo de Tarso (S. Paulo falava e pensava em grego), “trouxe Pedro para Roma”. A figura de S. Paulo foi essencial “para este casamento entre a racionalidade grega e a mensagem de salvação pregada por Jesus de Nazaré, para que se consolidasse o cristianismo” 214. Esta helenização do cristianismo

fortaleceu-se ainda mais com a escolástica, na qual já predominava uma concepção mais racional do cristianismo.

211 Na perspectiva de Alfred North Whitehead (1861-1947), nada pode ser real sem uma

interdependência entre mudança e conservação. Em suas palavras: “a mera mudança sem conservação é uma passagem do nada para o nada. A mera conservação sem mudança não pode conservar. Porque, afinal de contas, há um fluxo de circunstância e a frescura de ser se evapora sob a mera repetição. O caráter da realidade existente é composto de organismos perdurando através do fluxo das coisas” (WHITEHEAD, A. N. apud RAMOS, A. G. Aristóteles, Whitehead e a bifurcação da natureza. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 abr. 1981b. p. 3).

212 “O cristianismo estava no centro da civilização medieval; Roma era a capital espiritual, e o latim, a

língua da vida intelectual, enquanto os costumes germânicos impregnavam as relações sociais e jurídicas” (PERRY, M. Ibid, 1999, p.146).

213 Vale lembrar (como exemplo dessa diferenciação) que a morte, na tradição das religiões orientais, não

implicava na “separação” entre corpo e alma.

214 Cf. ASSMANN, S. J. O ser humano como problema: por um humanismo trágico e cristão. In:

Em sua análise sobre a crise da modernidade e suas raízes na Idade Média, Selvino Assmann faz a seguinte observação:

Podemos afirmar que não está em crise apenas um projeto moderno, mas sim um projeto ocidental. Este projeto foi fundado na racionalidade inventada pelos gregos, e depois se consolidou e continuou no casamento entre a razão grega e a tradição religiosa judaico-cristã, formando-se, na Idade Média e sobretudo na Moderna, uma crença no poder absoluto do ser humano de resolver tudo com suas forças (racionais) e de instaurar, ele mesmo, um mundo perfeito

215.

Desde a Idade Média a supremacia da razão 216 se faz presente nos domínios da

religião, da filosofia e da ciência. Trata-se de uma visão de mundo que, por conta de uma dialética positiva reforçada posteriormente na modernidade, exclui da percepção da realidade qualquer resquício do irracional (mística, romantismo, dor e morte) e passa a conduzir a humanidade ocidental “inevitavelmente para o deserto de sentido, para o niilismo”, muito embora exista a possibilidade do ser humano estar vivenciando, mais que no nascimento da tragédia, de uma “situação hiper-trágica, por se dar conta que foi ele que introduziu o risco na própria natureza, e não simplesmente sofre o risco que vinha da própria natureza” 217.

Em seu livro Mística e Sociedade, Carlos E. Sell (1971-) e Franz J. Brüseke (1954-) comentam a racionalização da teologia na Idade Média, que, na escolástica, atingiu sua plena supremacia no processo de helenização do cristianismo.

Na verdade, a valorização da experiência religiosa remete, no âmbito da subjetividade, a tradição mística combatida pela teologia cristã e sua vertente escolástica. [...] A partir de Tomás de Aquino (1225-1274), que integrava elementos da filosofia grega, principalmente de Aristóteles, redescoberto pela escola de Toledo, mostrando a afinidade do verbo com o lógos, a igreja romana conseguiu, depois de séculos de

215 ASSMANN, S. J. O ser humano como problema: por um humanismo trágico e cristão. In: ROCHA,

M. I. (org.). Humanismo e Direitos. Passo Fundo (RS): Berthier, 2007, p. 209.

216 Francis Wolff retrocede à Grécia antiga para assinalar o surgimento de uma “nova ordem do saber,

qualificada de racional”. Antes mesmo dos primeiros grandes sistemas filosóficos, a “passagem do mito à razão” caracteriza a primeira ruptura na história dos sistemas de pensamento a partir da “demonstração matemática”, que se formaliza com Tales de Mileto por volta de 600 a.C.; da “investigação física e cosmológica” entre os físicos da antiga Jônia, que se afastam da visão mitológica da natureza; da “investigação histórica” que rompe com a lenda e adquire um caráter sistemático com Heródoto (485-420 a.C.); e de um “sistema de direito civil e penal” fundado na investigação e argumentação dos fatos e distante das práticas e rituais religiosos da época (WOLFF, F. Nascimento da razão, origem da crise. In: NOVAES, A (org.) A Crise da razão. São Paulo: Cia. das Letras; Brasília: Ministério da Cultura; Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1996, p.68).

perseguição bastante casuística, conter também teologicamente a onde mística. O preço da racionalização da teologia no fim da idade Média foi alto. Por um lado, a igreja romana abortou uma vertente teológica que mostrou extrema vitalidade porque conseguiu dar respostas às demandas contemporâneas referentes a experiência subjetiva da unidade e do sentido. Por outro lado, a racionalização da teologia na escolástica preparou o chão para o desenvolvimento do pensamento científico que deveria tornar-se logo um adversário maior e mais eficiente da dogmática romana do que os próprios místicos. O desencantamento do mundo começa dentro da teologia cristã, até voltar-se contra ela mesma 218.

Não menos relevante é a assertiva do historiador de filosofia François Châtelet (1925-1985) que, em seu questionamento dos fundamentos da racionalidade ocidental, recorre a Nietzsche para mostrar o conflito razão versus vida. Tendo em conta a crítica do pensador alemão à história ocidental como um todo, pode-se afirmar que a razão desta crítica reside precisamente nesta combinação entre o racionalismo socrático-platônico e a doutrina religiosa judaico-cristã 219. Nietzsche, diz Châtelet, parece concordar com a “hipótese das Idéias” de

Platão, ao admitir a existência de “um aquém-mundo inteligível” insinuando um desafio de a ele submeter-se sob pena de cair na infelicidade e na imoralidade. Nietzsche reconhece o desafio, mas noutro sentido, pois “escolhendo a hipótese das idéias, aceitando o primado desse discurso racional unitário, maciço e autoritário, perde-se simplesmente a vida em nome da segurança. [...] Segurança de ser aqui na terra um bom homem e, no além, se é que existe além, um eleito”. Châtelet afirma então que “para Nietzsche, o platonismo instaurou o reino do ressentimento” em decorrência de sua intenção (Platão) de “reduzir todas as suas invenções à medida dessa racionalidade filosófica” fazendo desaparecer o sentido da vida. “É a palavra ‘vida’ que se deve empregar aqui. Ganha-se segurança mas se perde a exultação do corpo, essa espécie de prazer- sofrimento que é a procura louca, aventureira” 220.

Historiadores e filósofos de várias vertentes e escolas concordam com a força e magnitude do pensamento cristão nesses primórdios da era medieval, submetidos à força do racionalismo socrático-platônico. Perry observa que “havia apenas uma verdade: a revelação de Deus à humanidade; havia apenas um caminho para o céu, e passava pela Igreja”, de tal forma que a dimensão cosmopolita e universal existente à época do Império Romano, foi subsumida

218 SELL, C. E.; BRÜSEKE, F. J. Mística e Sociedade. São Paulo: Paulinas; Itajaí (SC): Univali, 2006, p. 82. 219 Apesar desse “casamento” do racionalismo grego com a doutrina religiosa judaico-cristã, Selvino

Assmann chama atenção para conflitos e debates teológicos de diversas tendências emanadas de filósofos gregos e romanos (Platão, Aristóteles, estóicos...) evidenciados “na sucessiva fundação de ordens religiosas”, além do pensamento místico “que sinalizam de modo singular a beleza, a profundidade e a dramaticidade da experiência cristã” (Cf. ASSMANN, S. J. Op. Cit., p.220).

220 CHÂTELET, F. Uma história da razão: entrevistas com Émile Noel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

pela Igreja em toda a Europa, na gestação de uma nova sociedade centrada no cristianismo onde o universalismo romano fundia-se com o universalismo cristão, na construção dos alicerces dessa civilização. Até mesmo na distante Irlanda, por exemplo, São Patrício (386-493) iniciou, ainda no século V, sua pregação ao cristianismo a tal ponto que converteu o latim como o idioma da Igreja e dos eruditos, além de preservar o conhecimento sobre o grego. O historiador Marvin Perry ressalta o papel desempenhado pelos mosteiros para a difusão do cristianismo:

“Durante a Alta Idade Média, quando as cidades estavam em decadência, os mosteiros eram os principais centros culturais e continuaram a ser até o renascimento das cidades no auge da Idade Média. Os mosteiros eram também locais de socorro para os enfermos e indigentes e abrigo para os viajantes 221. Para o espírito medieval, a

dedicação altruísta dos monges e freiras a Deus, sua adesão à pobreza apostólica, seu devotamento à prece e à contemplação representavam a forma mais elevada do modo de vida cristão” 222.

Nascido no Oriente, com raízes no Velho Testamento, o cristianismo assimilou também bases jurídicas da cultura imperial romana. A Igreja Romana assumiu o caráter de “uma poderosa hierarquia central; uma complexa estrutura jurídica regendo a ética e a espiritualidade; uma exigência de obediência por parte de seus membros com rituais formalizados e sacramentos institucionalizados; uma rigorosa defesa contra qualquer divergência do dogma autorizado”. A Igreja era talvez a única instituição que mantinha alguma semelhança de ordem social e cultura civilizada no Ocidente 223 de tal forma que, enquanto o Império Romano se tornava cristão, a

cristandade tornava-se romana. O pensamento religioso era, portanto, predominante na visão de mundo e no modo de vida medieval. A Bíblia era a referência para explicar o universo e a sociedade e para regular as dimensões cultural, política e social. Até mesmo “o que chamamos de ‘economia’ 224 na Idade Média se reduz a princípios religiosos e morais, camuflando a

221 A expressiva influência dos mosteiros no processo de difusão e consolidação dos valores cristãos

ganhou mais expressão através das novas ordens dos dominicanos e franciscanos, fundadas respectivamente por São Domingos de Gusmão (1170-1221) e São Francisco de Assis (1181-1226), que receberam, inclusive, a denominação de mendicantes, por adotarem a humildade e a pobreza como seus fundamentos, além de introduzirem uma pregação através do diálogo e da palavra aberta, vivendo entre os homens, e não na solidão dos mosteiros.

222 PERRY, M. Ibid, 1999, p. 153-154.

223 O conflito entre a Igreja e o Estado permeou extensos períodos da Idade Média. “O fato de a tradição

romana ter dois herdeiros deixava os fiéis burgueses da Idade Média numa situação difícil. A teoria que estava por trás do sistema político medieval era simples: enquanto o senhor temporal (o imperador) cuidava do bem-estar físico dos seus súditos, o senhor espiritual (o papa) cuidava de suas almas [...] um dizia ao outro que não metesse o nariz onde não fora chamado, e tudo inevitavelmente terminava em guerra” (VAN LOON, H. W. A história da humanidade. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.164).

224 É bem possível que pelo descaso do cidadão medieval comum frente às questões econômicas e

políticas, assume grande vulto um dos aspectos sombrios da economia medieval: o fenômeno da fome. Como uma das conseqüências da explosão demográfica (considerando o atual território da França, sua

autonomia crescente desse domínio de atividade. Os objetivos perseguidos são o preço justo e a boa moeda. A monarquia cristã é uma instituição sagrada e o rei é, em primeiro lugar, o defensor da fé” 225.

Ao mesmo tempo em que sustenta que, de fato, nem na modernidade desaparece uma fundamentação teológica para a vida humana, tanto na política quanto na economia, Giorgio Agamben (1942-) resgatou a centralidade da economia ao longo da Idade Média que, numa dimensão subterrânea, coincidiu com o nascimento da economia animal 226. Agamben

considera que o atual triunfo da economia sobre as demais dimensões da vida humana teve sua origem mais remota com o conceito de oikonomia, em Aristóteles (384-322 a.C.) que designava a administração da oikos (a casa grega), em suas múltiplas relações, incluindo as de uma