• Nenhum resultado encontrado

5. O Mediterrâneo como berço de civilizações

5.2. Grécia: Raízes da Civilização Ocidental

5.2.2 O teatro trágico

Os padrões e arquétipos da arte grega no período clássico (correspondente aos 400 anos que antecederam a morte de Alexandre Magno, em 323 a.C.) influenciaram sobremaneira o ambiente artístico no Ocidente até o surgimento da arte moderna, ao final do século XIX.

Na perspectiva de Werner Jaeger, “o estilo e a visão artística dos Gregos surgem, em primeiro lugar, como talento estético” 150. A idealização da arte só iria surgir mais tarde, no

período clássico (século V a.C.): até o século IV a.C. “a arte grega é fundamentalmente a expressão do espírito da comunidade” 151.

A exemplo da filosofia e da política, a arte grega (a arte trágica, inclusive) submeteu-se, a partir do século V a.C., ao pensamento racional e contribuiu para a transição do mundo mítico para um mundo ordenado e racional. Os poetas e dramaturgos gregos proclamaram a capacidade criativa do indivíduo e o espírito humanista. Safo, que viveu na ilha de Lesbos por volta de 600 a.C., foi uma das primeiras poetisas gregas, ao escrever poemas sobre os temas da amizade e do amor. Píndaro (c. 518-438 a.C.) foi outro importante poeta lírico da Grécia.

A arte no período clássico valorizava sobremaneira a beleza, no sentido ideal, retratando a essência e a forma de suas esculturas, pinturas, templos, poesias e espetáculos teatrais, dentro de padrões refinados e de excelência. A escultura grega estabeleceu um paradigma de beleza que iria sensibilizar até mesmo o Renascimento. A pintura também alcançou alto nível de excelência, apesar da maioria das obras não ter conseguido sobreviver até os nossos tempos.

Mas o grande destaque da arte grega parece ter sido o teatro: uma forma de arte originária do período helênico. Ao expressar os sentimentos, as fraquezas, as angústias e os triunfos do ser humano, os dramaturgos gregos realçaram a individualização e a humanização.

150 JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.11. 151 JAEGER, W. Ibid, 2001, p.18.

Os festivais religiosos dedicados a Dioniso 152 constituíram o nascedouro do teatro grego, com

destaque para os espetáculos trágicos que projetaram a civilização grega, através dos milênios sucessivos, em padrões insuperáveis. O início da tragédia grega 153 é creditado a Téspis que,

ao final do século VI a.C., foi o primeiro ator que se destacou do coro e passou a dialogar com o mesmo, ressaltando assim uma consciência do indivíduo 154.

As tragédias gregas acompanharam as mudanças políticas, sociais e culturais de sua época, refletidas nas obras dos três grandes autores trágicos: Ésquilo (c. 525-456 a.C.), Sófocles (496- 406 a.C.) e Eurípides (c. 480-406 a.C.).

As tragédias de Ésquilo, que participou das batalhas de Maratona e Salamis, refletem os feitos heróicos da Grécia através de conflitos envolvendo religião, destino e culto dos heróis. Seus dramas pressupõem que o conhecimento só pode ser alcançado através do sofrimento e da dor. As paixões humanas, os princípios morais e os desígnios traçados pelos deuses estão presentes na obra de Sófocles. Eurípides, em plena era dos sofistas, relega a tradição mítica a um plano secundário e exalta as paixões humanas bem como as contradições íntimas da alma. As tragédias de Eurípides já refletem mais o espírito racionalista da filosofia grega.

152 As Grandes Dionisíacas, festas populares centradas no tema da vinha, eram celebradas anualmente

em Atenas, em princípios do março. Foram elas que deram origem ao nascimento da poesia dramática grega. No decurso destas festas, eram declamados "ditirambos", hinos enaltecendo os sofrimentos e a vitória do deus. Mais tarde, dentro do mesmo espírito, foram representadas nos teatros consagrados a Dioniso, as tragédias (“cantos do bode” - tragos, em grego - nome do animal imolado nesses festivais); as comédias e os dramas satíricos, muitos deles inspirados primitivamente na lenda de Dioniso. Apesar de ser o último dos grandes deuses a entrar no Olimpo, Dioniso renovou e revolucionou completamente o gênio grego, após o séc. VIII a.C. As artes, até então submetidas a Apolo, graças a esta renovação, proliferaram e conheceram uma exaltação nunca vista até então. Às festividades populares e às celebrações artísticas juntavam-se, em todos os lugares de culto, ritos de caráter orgiástico, através dos quais os fiéis entravam em êxtase ou numa bebedeira descontrolada. Estas manifestações, que na origem haviam dado lugar a sacrifícios humanos, tinham como finalidade permitir ao iniciado incorporar a própria pessoa do deus, comendo do seu corpo e bebendo do seu sangue, numa representação simbólica através da carne (animal) de uma vítima sacrificada ou de um copo de vinho.

153 O historiador Hendrik Van Loon (1882-1944) expressa uma versão acerca da origem do nome

tragédia: “Em grego, ‘bode’ é tragos e cantor é oidos. O cantor que berrava como um bode era chamado

tragos-oidos (canto-bode); é desse estranho nome que veio a moderna palavra ‘tragédia’, que no sentido

teatral significa uma peça com final infeliz, do mesmo modo que a comédia (que na realidade significa uma canção comos, ou alegre) é o nome que se dá a uma peça de final feliz” (VAN LOON, Ibid, 2004, p.70-71).

Figura 21: Dioniso e Ariadne

Dioniso e Ariadne 155 (1522/1523), de Ticiano (1490-1976): óleo sobre tela, National Gallery, Londres.

155 A bela deusa Ariadne (Figura 21) apaixonou-se por Teseu quando este foi a Creta enfrentar o

Minotauro. Ela o ajudou a vencer o monstro que vivia no célebre labirinto construído por Dédalo. Antes de entrar nele, Ariadne deu-lhe uma espada e um novelo de linha - o fio de Ariadne - para que ele pudesse achar o caminho de volta. Assim, depois do seu feito heróico, Teseu partiu de volta para a sua terra. Pelo caminho os dois pararam na ilha de Naxos para descansar, e quando Ariadne adormeceu, Teseu abandonou-a partindo da ilha sem ela. Ao acordar, vendo-se sozinha, Ariadne entrou em desespero. A deusa Afrodite teve pena dela e prometeu-lhe um amante imortal, em vez do ingrato mortal, que a enganara. É o momento mitológico em que se enquadra o quadro Dioniso e Ariadne de Ticiano, mestre renascentista da cor e da luz. Ariadne, que caminhava sozinha na ilha, encontra o deus Dioniso e os dois são contagiados pelo amor ao primeiro olhar. Dioniso consolou-a e pouco tempo depois a desposou no Olimpo, na presença de todos os deuses. O casal teve vários filhos, dos quais se destacam Enópion (o provador do vinho), futuro rei de Quios, e Estáfilo, futuro Argonauta. Os motivos deste encontro mitológico (registrados na tela de Ticiano) são lindíssimos: Dioniso atira a coroa de Ariadne ao céu e esta se transforma numa constelação - a Corona Borialis -; no chão a cabeça de vitela mostra que os folgazões já estão empanturrados de carne crua, e no canto superior direito Atlas transporta o barril de vinho; Dioniso é jovem, belo e reconhece-se a coroa de louros e folhas de parreira; o seu carro é puxado por duas onças que olham desconfiadas uma para a outra, repetindo o olhar do par apaixonado; a flor de alcaparra entre os cascos é um símbolo tradicional de amor; Sileno, o preceptor de Dioniso, é representado por um velho gordo montado num burro; um sáfiro embriagado e vestido a rigor agita uma perna de vitela no ar; as Bacantes tocam címbalo, trompa de caça e pandeireta; o manto de Dioniso e Ariadne forma um elo; por fim é útil reparar no pote onde Ticiano assina o quadro. Essa assinatura começa uma nova época na história da pintura - a valorização do pintor (Disponível em < http://em-mim-

serenamente-2.blogspot.com/; http://dicionario-de-mitologia-grega-e-

romana.portalmidis.com.br/d/dionisio.htm > Acessado em 16 ago. 2008).

Ésquilo operou uma grande inovação no teatro grego ao introduzir dois atores: número ampliado para três na época de Sófocles e, no tempo de Eurípides os espetáculos trágicos usavam tantos atores quanto se fizesse necessário. Para os gregos o lançamento de cada espetáculo trágico era considerado um acontecimento da maior importância e os dramaturgos bem-sucedidos eram homenageados tanto quanto os generais após uma grande vitória.

Na interpretação de Perry, “a essência da tragédia grega está na luta do herói trágico contra as forças cósmicas e os obstáculos intransponíveis que acabam por esmagá-los”. No entanto, o historiador entende que o herói trágico não era uma simples vítima passiva do destino. “Era um ser racional que sentia a necessidade de compreender sua condição, explicar a razão de seus atos, analisar seus sentimentos e responder ao destino com discernimento” 156.

Numa outra vertente de pensamento, George Steiner (1929-), dissocia a tragédia de qualquer tendência racionalista (esta temática será melhor analisada em capítulos posteriores). Ele faz um cotejo do espírito da tragédia com o espírito de justiça divina inerente à percepção judaica do mundo. “O Livro de Jó – lembra Steiner -é sempre citado como uma instância da visão trágica. Mas essa fábula negra pertence ao outro extremo do judaísmo e, mesmo aqui uma mão ortodoxa tem insistido nos clamores da justiça (tema dos mais relevantes no estudo da tragédia) contra os da tragédia” 157. O Antigo Testamento reserva um final feliz

para compensar Jó por muitos sofrimentos e agonias 158. Na perspectiva de Steiner, onde há compensação existe justiça, o que descaracteriza a essência do drama trágico. Em suas próprias palavras:

“Essa demanda por justiça é o orgulho e o túmulo da tradição judaica. Jeová é justo, mesmo em Sua fúria. [...] Na somatória do tempo, não pode haver dúvidas de que os caminhos de Deus para com o homem são justos. Não somente justos, eles são também reacionais. O espírito judaico é veemente em sua convicção de que a ordem do universo e dos bens do homem é acessível à razão. Os

156 PERRY, M. Ibid, 1999, p. 72.

157 Existe compatibilidade entre arte e tragédia, o que não ocorre entre justiça e tragédia e entre filosofia e

tragédia. Cf. STEINER, G. A morte da tragédia. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 1.

158 “E o Senhor virou o cativeiro de Jó, quando orava pelos seus amigos; e o Senhor acrescentou a Jó

outro tanto em dobro a tudo quanto dantes possuía. [...] E assim abençoou o Senhor o último estado de Jó, mais do que o primeiro; porque teve catorze mil ovelhas e seis mil camelos e mil juntas de bois e mil jumentas. Também teve sete filhos e três filhas. [...] E em toda a terra não se acharam mulheres tão formosas como as filhas de Jó; e seu pai lhes deu herança entre seus irmãos. E depois disto viveu Jó cento e quarenta anos; e viu a seus filhos, até a quarta geração. Então morreu Jó, velho e farto de dias.” Livro de Jó, 42, 10 a 17 (c. 1520 a.C.)

caminhos do Senhor não são improcedentes nem absurdos. Conseguiremos aprová-los completamente se conferirmos aos nossos questionamentos a visão lúcida da obediência. O marxismo é caracteristicamente judaico em sua insistência por justiça e razão, e Marx repudiava o conceito inteiro de tragédia. ‘A necessidade’, ele afirmava, ‘é cega somente na medida em que não é compreendida’. O drama trágico surge precisamente da asserção contrária: a necessidade é cega e o encontro do homem com ela lhe roubará os olhos, seja em Tebas ou em Gaza. A asserção é grega, e o sentido trágico da vida construído a partir daí é a maior contribuição do gênio grego ao nosso legado” 159.

Steiner cria outras figuras que se confrontam em sua argumentação, no sentido de caracterizar a tragédia como um domínio que não se deixa reger pela razão e nem pela justiça. Eis seu comentário sobre a queda de Jericó que, por haver desafiado Deus, pode ser considerada meramente justa, no designo racional da intenção divina: “seus muros se erguerão novamente, na terra ou no reino dos céus, quando as almas dos homens forem restauradas para a graça”. Já o incêndio de Tróia é, para Steiner, trágico e definitivo, como fruto dos “ódios humanos e pela escolha do destino temerário, misterioso”. Da mesma forma, as guerras narradas no Antigo Testamento “São sangrentas e dolorosas, mas não trágicas: elas são justas ou injustas”. Movidas por convulsões políticas nebulosas, num clima de fúria sem ódio, as guerras do Peloponeso, pelo contrário, são trágicas. Numa alusão ao caráter extemporâneo da tragédia grega, Steiner comenta que ainda estamos pagando pelas guerras do Peloponeso, na medida em que “nosso controle do mundo material e nossa ciência positiva têm se desenvolvido fantasticamente; mas nossas próprias realizações se voltam contra nós, tornando a política mais fortuita e as guerras mais bestiais” 160.

No teatro grego – bem como numa possível ressignificação do trágico na nossa civilização ocidental – o tema da tragédia se associou ao da comédia. Aristófanes (c.457- c.385 a.C.) é considerado o maior dramaturgo grego em comédias. Contemporâneo do arquiteto Fídias, dos trágicos Sófocles e Eurípides e do filósofo Sócrates, Aristófanes viveu durante o apogeu da sociedade Ática. De suas onze peças que restaram, destacam-se: Os Babilônios, As

Nuvens, As Rãs, As Aves, A Paz e Os Cavaleiros. Quionides, Magnes, Cratino e Menandro,

foram outros autores cômicos da Grécia clássica.

159 STEINER, G. Ibid, 2006, p.31. 160 STEINER, G. Ibid, 2006, p. 111.

Considerada por alguns uma ‘variante’ da tragédia 161, a comédia também teve

origem nos festivais dionisíacos, com o caráter de farsa (komos), evoluindo posteriormente para um tipo de sátira política.