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Revolução Industrial e Iluminismo: prelúdios da modernidade ocidental.

7. Civilização Ocidental: tragédia, modernidade e condição humana

7.3. Revolução Industrial e Iluminismo: prelúdios da modernidade ocidental.

A partir da Inglaterra de Bacon e Hobbes, da Itália de Copérnico e Galileu, e da França de Descartes, a atitude mental com relação

à ciência e à técnica muda radicalmente.

O Renascimento, a Reforma Protestante e a Revolução Científica ensejam os alicerces para um novo movimento em direção à modernidade (no século XVIII): o Iluminismo. A astronomia de Copérnico, o telescópio e a concepção de razão reforçada por Galileu, o utilitarismo de Bacon, o método de Descartes e a soberania do Estado preconizada por Hobbes impregnaram as perspectivas dos pensadores iluministas do século XVIII.

Os primórdios da moderna visão de mundo eclodiram durante o Renascimento, provocando uma profunda mudança nas dimensões existenciais – política, religiosa, social, econômica, cultural - prevalecentes até então na civilização européia. O resgate de valores da civilização greco-romana foi o ponto de partida. Na dimensão política, o Estado tornou-se cada vez mais fortalecido (soberania) pelo declínio do regime feudal. No plano religioso, a Reforma Protestante enfraqueceu a hegemonia da Igreja Romana na Europa e a Revolução Científica – com a ciência emergindo como a nova crença do Ocidente - estabeleceu uma cisão definitiva entre a fé e a razão, entre a teologia e a ciência: “a ciência substituía a religião como autoridade intelectual proeminente [...] a razão e a observação empírica substituíam a doutrina teológica e a

revelação da Escritura como principal meio para a compreensão do universo” 293. Nos domínios

do social e do cultural ocorreu uma afluência na classe média que, cada vez mais numerosa e com mais dinheiro, provocou grandes transformações na vida política e cultural impulsionadas pela perspectiva secular (mundana) na literatura e nas diferentes formas de arte. Com a ascensão da classe média e do individualismo, ocorre um deslocamento das questões humanas da esfera pública para a privada. Após o empirismo racional, a novela, ligada ao mundo privado da classe média, substitui a tragédia na moderna cultura urbana 294. Na dimensão econômica, o

mercado – principalmente após a Revolução Industrial (século XVIII) - assumiria uma posição cada vez mais central e estratégica na vida humana individual e associada.

De uma maneira geral o Iluminismo 295 foi uma evolução da Revolução Científica

iniciada em 1543 com a difusão das idéias de pensadores como Copérnico, Galileu, Hobbes, e Descartes, dentre tantos outros.

Assim, em sua essência, o Iluminismo representa um importante movimento intelectual e filosófico ocorrido no século XVIII (chamado de “Século das Luzes”) com raízes na tradição do Renascimento, do movimento humanista e da Revolução Científica. A metáfora

293 TARNAS. R. Ibid, 2000, p. 309. 294 STEINER, G. Ibid, 2006.

295 Dentre os principais filósofos que podem ser considerados representantes do Iluminismo destacam-

se: Francis Bacon (1561-1626), com Instauratio magna scientiarum (Grande restauração) e Novum

organum (1620); Thomas Hobbes (1588-1679), com seu Leviatã (1651); René Descartes (1596-1650),

considerado como um dos “fundadores da filosofia moderna” e uma das figuras chaves da Revolução Científica com sua obra Discurso sobre o Método (1637) e Meditações (1641); John Locke (1632-1704) com Dois Tratados sobre o Governo (1690); Robert Hook (1635-1703), pai da ciência da microscopia e também fundador do liberalismo; Isaac Newton (1643-1727), com Philosophiae Naturalis Principia

Mathematica (1687), uma das maiores obras da física iluminista; Charles Louis de Secondat, conhecido

como barão de Montesquieu (1689-1755), pensador político, famoso pela articulação da teoria da separação de poderes e cargos governamentais; François-Marie Arquet (1694-1778), conhecido como Voltaire, com Cartas sobre a Nação Inglesa (1733); Benjamin Franklin (1706-1790), cientista, filósofo político, pensador pragmático, escritor, naturalista e inventor que ajudou o estado norte-americano na Declaração da Independência e a Constituição de 1787, além de criar trabalhos na área da mecânica quântica e física clássica (eletricidade); David Hume (1711-1776), filósofo, economista e historiador, conhecido pelo seu trabalho na crítica cética à ciência e nas doutrinas avançadas sobre naturalismo e causas materiais; Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), um dos principais filósofos do Iluminismo autor de Emílio (1762), importante obra sobre o pensamento educacional no Iluminismo e do Do Contrato

Social (1762), que contém o idealismo de um estado democrático, inspirado na antiga polis grega, capaz

de garantir igualdade para todos, além da defesa da abolição da escravatura e idéias sobre a reforma agrária; Denis Diderot (1713-1784) com a publicação da Enciclopédia (1751-1765), idealizador da teoria da literatura e da ética trabalhista; e o filósofo idealista alemão Immanuel Kant (1724-1804), com sua

Crítica da Razão Pura (1781) e Crítica da Razão Prática (1788); Adam Smith (1732-1790), professor

de filosofia moral na Escócia que, com sua A Riqueza das Nações (1776), formulou a concepção de “livre mercado”, fundamento do pensamento liberal do século XIX; e Marie Jean Antoine Nicolas Caritat, marquês de Condorcet (1743-1794), colaborador da Enciclopédia e autor de Esboço, na qual defende a tolerância religiosa e a abolição da escravatura.

da luz para esse movimento (sair das “trevas da ignorância” para ver com clareza à “luz da razão”) se faz presente em quase todos os idiomas europeus: Enlightenment (inglês), Aufklärung (alemão), Illuminismo (italiano), Les Lumières (francês), Ilustración (espanhol). Com base numa mistura de racionalismo, cientificismo e ironia, os principais pensadores desse movimento entendiam que a razão e a ciência seriam capazes de explicar todas as coisas do universo, em contraposição à Fé.

Neste contexto vale a pena chamar a atenção para a leitura do Iluminismo feita por Adorno e Horkheimer. Poderíamos dizer que eles fazem uma importante releitura desse período, assinalando as contradições nele presentes. “Desencantamento do mundo” é a expressão por eles utilizada para caracterizar o Aufklärung (Iluminismo ou Esclarecimento) que, ao assumir e dar conseqüência ao credo de Francis Bacon - onde poder e conhecimento são tidos como sinônimos – estabeleceu como metas a dissolução dos mitos e a substituição da imaginação pelo saber 296. Na realidade, a conversão do saber em poder é um dos fundamentos da filosofia de

Bacon considerado, desde Voltaire, como “o pai da filosofia experimental”. Ao propor “o casamento feliz entre entendimento humano e a natureza das coisas”, Bacon – na contramão da tradição – elogia a ciência como o fruto magnífico desse glorioso casamento superando, em seu entendimento, “conceitos vãos e experimentos erráticos”. Em seu tratado In Praise of

Knowledge (1592), Bacon assim se expressa:

A imprensa não passou de uma invenção grosseira; o canhão era uma invenção que já estava praticamente assegurada; a bússola já era, até certo ponto, conhecida. Mas que mudança essa três invenções produziram – uma na ciência, a outra na guerra, a terceira nas finanças, no comércio e na navegação! E foi apenas por acaso, digo eu, que a gente tropeçou e caiu sobre elas. Portanto, a superioridade do homem está no saber, disso não há dúvida. [...] Hoje apenas presumimos dominar a natureza, mas, de fato, estamos submetidos à sua necessidade; se, contudo nos deixássemos guiar por ela na invenção, nós a comandaríamos na prática “297.

Os pensadores frankfurtianos (Adorno e Horkheimer) consideram que para Bacon, e Lutero “o estéril prazer que o conhecimento proporciona não passa de uma espécie de lascívia” e que, na perspectiva de um saber pragmático, tendo a técnica como a essência desse saber que “não visa conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas o método” o que importa

296 ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

1985.

não é, portanto, a busca de uma “verdade” 298, mas a “operation, o procedimento eficaz [...] em

operar e trabalhar e na descoberta de particularidades antes desconhecidas, para melhor prover e auxiliar a vida – o verdadeiro objetivo e função da ciência” 299.

Um dos primeiros atos do Iluminismo foi a tentativa de determinar a validade da “religião nos limites da razão”, segundo a obra homônima de Immanuel Kant. Last but not the

least, acrescenta-se o nome do economista escocês Adam Smith (1723-1790) que, com suas obras Teoria dos Sentimentos Morais (1759) e Investigação sobre a Natureza e as Causas da

Riqueza das Nações (1776), colocou em evidência a importância do sentimento e das paixões na

conduta do homem, além de ter sido o responsável pela criação da economia como ciência e lançado os alicerces para a operacionalização da sociedade centrada no mercado (a mão

invisível de Deus!!) com duas idéias-força: a divisão e mecanização do trabalho e o

entendimento de que a riqueza das nações - e o bem-estar geral da civilização - vem principalmente da indústria e não mais da agricultura 300.

Thomas Hobbes, com suas obras Sobre o cidadão (1642) e Leviatã (1651) e John Locke (1632-1704) com Dois tratados sobre o governo (1690) influenciaram profundamente o pensamento político do Iluminismo. Hobbes estabeleceu os fundamentos do Estado moderno ao propor o poder irrestrito de soberano como a forma mais eficaz para refrear as paixões humanas que comprometeriam a ordem social e ameaçariam a vida civilizada. Diz Hobbes que “a sabedoria não se adquire pela leitura dos livros, mas do homem“. Expressa uma visão pessimista da natureza humana ao considerar que “O homem é o lobo do homem” e que “no estado natural em que vivem os homens, a utilidade é a medida de direito. O egoísmo é uma inclinação natural do gênero humano que é constituído por um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder que só termina com a morte”. No Leviatã Hobbes elege a razão como uma das categorias centrais para regular a vida civilizada: “A razão [...] nada mais é que cálculo (isto é, adição e subtração) das conseqüências de nomes gerais estabelecidos para marcar e

298 Dentre tantas outras relevantes produções artísticas e literárias, abordando o tema da “busca da

verdade”, lembramos que o cineasta Sean Penn (1960-) escreveu e dirigiu Into The Wild (2007), filme exibido no Brasil sob o título Na Natureza Selvagem, inspirado na história real (com requintes do trágico) do jovem Christopher Johnson McCandless, nascido em 1968 (protagonizado por Emile Hirsh) que, após concluir a Emory University, famoso centro universitário em West Virginia, doa suas economias (U$ 24 mil) para fundos de caridade, renuncia a um “futuro promissor” e parte pelos caminhos do mundo em busca do significado do binômio verdade - liberdade.

299 BACON, F. apud ADORNO e HORKHEIMER. Ibid, 1985, p.20.

300 SMITH, A. Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações. 2.ed. São Paulo: Abril

significar nossos pensamentos”, além de ser “o último apetite na deliberação e elemento central

no instinto de conservação” 301.

Locke via o ser humano como bom e benevolente, em sua essência. Em Dois

tratados sobre o governo (1690) concebeu o Estado com uma forma de proteger os direitos

naturais (vida, liberdade e propriedade) dos cidadãos de tal forma que a autoridade dos governantes – ao contrário da soberania absoluta proposta por Hobbes – estaria subordinada à lei. As idéias de Locke relativas aos direitos naturais, bem como à razão e ao direito de rebelião contra autoridades injustas, inspiraram as revoluções liberais – Revoluções Francesa e Americana - ao final do Século das Luzes e bem como a Thomas Jefferson para justificar a Revolução Americana. Em seu Ensaio sobre a compreensão humana (1690), Locke argumentava que “a mente humana é uma lousa em branco, na qual se imprimem as sensações oriundas do contrato com o mundo dos fenômenos. O conhecimento deriva da experiência” 302.

Apoiados no poder da razão, da ciência e da técnica, os philosophes iluministas elaboraram uma teoria do progresso humano acreditando que o avanço gradual do conhecimento levaria, inevitavelmente, à melhoria das condições de sua existência terrena e ao progresso material e moral da sociedade 303. O pensamento de Adam Smith (apoiado em Bacon e

Hobbes), sobretudo em A Riqueza das Nações (1776) converteu a economia de mercado em “agência diretora do processo de produção e consumo e a legitima em nome da prosperidade,

301 HOBBES, T. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 3. ed. São Paulo:

Abril Cultural, 1983, p.27 e 28. Coleção Os Pensadores.

302 LOCKE, J. apud PERRY, M. Ibid, 1999, p. 304.

303 Num exercício de ficção, o filósofo e historiador francês Pierre Thuillier (1927-1998) elaborou em seu

livro La Grande Implosion: Rapport sur l’éffondrement de L’Occident , um relatório preparado por um grupo de historiadores, humanistas e poetas (excluindo em especial cientistas e economistas) sobre as condições que estariam por trás dos tumultos da sociedade ocidental na primeira década do terceiro milênio. O livro, publicado em 1996, parecia antever os eventos terroristas, as mortíferas guerras localizadas e a crise no mercado financeiro já registradas nos primeiros oito anos do atual milênio. O grupo entendeu que o Ocidente, no contexto da pobreza espiritual da modernidade, não soube enfrentar a questão fundamental concernente ao significado da vida humana e entrou em colapso “porque tinha perdido o sentido de poesia, pois uma sociedade não é realmente uma sociedade a menos que possa inventar conceitos e mitos ideais que mobilizem energias individuais e que cinjam a alma das pessoas”. O grupo alertou para o fato de que “a combinação de catástrofe iminente e apatia silenciosa é sinistra”, além de denunciar o culto ao progresso derivado dos “excessos da administração tecnocrata; do tipo de paranóia entre as elites esclarecidas; do imperialismo irrestrito das instituições econômicas e financeiras; da pesquisa obsessiva voltada para a mecanização e automação; do racionalismo ocidental e da ciência que era parte integrante dele; da incapacidade dos governos em conduzir de forma humanitária os empreendimentos pelos quais eram responsáveis; da falta de imaginação e sensibilidade que caracterizaram todos os partidos políticos; do aumento alarmante do individualismo; dos chamarizes da cultura de informação e da comunicação, tão louvada por sociólogos e especialistas da mídia; e dos riscos de exploração ou implosão causados pelo crescente número dos marginalizados” (THUILLIER, P. apud HANDY, C. Além do Capitalismo. São Paulo: Makron Books, 1999, p. 37).

comprometendo os processos restaurativos da natureza [...] concretizando, como conseqüência, a situação alarmante da condição humana, além de comprometer a capacidade auto- regenerativa do ecossistema” 304.

Max Horkheimer denuncia que, no contexto do Iluminismo, a razão foi deslocada da psique humana, onde deveria estar, e transformada num atributo da sociedade, provocando uma profunda socialização do indivíduo na modernidade: uma socialização que parece levar ao desaparecimento do indivíduo por conta de sua própria exacerbação. Critica o conceito moderno da razão e pressupõe que "o antagonismo entre a razão e a natureza está numa fase aguda e catastrófica" e que, no contexto atual da cultura de massas "a denúncia daquilo que atualmente se chama de razão é o maior serviço que a razão pode prestar" 305.

Para Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) Hobbes prepara o caminho para a

transavaliação do social, reduzindo o ser humano "a uma criatura que calcula, tornando

impossível distinguir entre vício e virtude", onde a sociedade assume a condição de mentor supremo e, "não surpreendentemente, padecimento é equiparado ao mal, e o prazer ao bem”. Se o social se transforma no critério central na ordenação da existência humana, então “os vícios, o orgulho, o egoísmo, a corrupção, a fraude, a ganância, a hipocrisia e a injustiça passam a ser virtudes". Em sua opinião, tanto Hume como Adam Smith reforçam um vínculo entre o social e a moral, onde "aquilo que é social é forçosamente moral", substituindo assim a razão pela socialização, como uma dos alicerces filosóficos da modernidade. Ramos alerta para a inclusão total do ser humano na sociedade de mercado, na qual os valores se tornam valores econômicos:

As correntes de pensamento que hoje prevalecem em matéria de ciência social formal, seja em seus termos estabelecidos usuais, seja sob os disfarces marxistas e neomarxistas, apoiam-se numa visão sociomórfica, reduzindo o ser humano a nada mais que um ser social. Daí que a plena realização do indivíduo seja entendida como sua total socialização [...]. Por exemplo, a motivação econômica é considerada o traço supremo da natureza humana e a teoria econômica formal afirma que o mercado (grifo nosso) é a categoria fundamental para a comparação, avaliação e o desenho dos sistemas sociais. Não é por acidente que os cientistas sociais estabelecidos recomendam aos países do Terceiro Mundo a prática maciça de certo tipo de esclarecimento organizado, que se destina a ensinar 'a motivação do sucesso'. 306

304 RAMOS, A. G. As confusões em torno do industrialismo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 dez.

1981c, p. 5.

305 HORKHEIMER, M. Eclipse da razão. São Paulo: Centauro Ed. 2000, p. 177 e 187.

306 RAMOS, A. G. A Nova Ciência das Organizações: uma reconceituação da Riqueza das Nações. Rio

À luz dos acontecimentos dos séculos XX e dos primeiros anos do século XXI, fica comprometido o otimismo dos philosophes do Iluminismo. O historiador teuto-americano Peter Gay (1923-), inspirado em Max Weber, Adorno e Horkheimer, já colocava tal otimismo em perspectiva, numa vertente bem atual do pensamento trágico. Para Gay, o mundo não seguiu o prognóstico dos philosophes: “Os antigos fanatismos revelaram-se mais intratáveis, as forças irracionais mais inventivas [...] os problemas de raça, de classes, nacionalismo, tédio, desespero em meio à fartura emergiram em desafio à filosofia dos philosophes. Presenciamos horrores, que os homens do Iluminismo não conheceram nem em pesadelo” 307.

É preciso, portanto, enfatizar que o Iluminismo como tal expressava uma visão essencialmente otimista do ser humano, e como tal já parece confrontar-se com uma visão trágica da vida. Um dos aspectos vinculados a este otimismo é a crença de que a natureza deva e possa ser totalmente dominada, fazendo também que o ser humano se torne cada vez mais senhor do seu destino.