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Ação pública de assistência social: relações entre Estado e Sociedade Civil

PARTE 2 PROTEÇÃO SOCIAL E TERRITORIALIDADE

4.2. Ação pública de assistência social: relações entre Estado e Sociedade Civil

Costumamos entender que “política pública” refere-se a um tipo específico de ação institucional, com objetivos bem delimitados a serem atingidos em curto e longo prazos, en- volvendo vários atores e diversos níveis de decisão. Brigagão, Nascimento e Spink (2011) referem-se à noção de políticas públicas como um conjunto de “proposições, medidas e ações

do governo dirigidas aos problemas de uma determinada população na tentativa de gerir solu- ções, relacionada ao Estado democrático moderno”, em outras palavras, como uma maneira de “colocar o governo em ação” (p.200).

No entanto, de acordo Lascoumes e Le Galès (2012), para designar de forma mais adequada a construção do fenômeno das “políticas públicas” nas sociedades ocidentais con- temporâneas, a noção mais abrangente de “ação pública” seria mais adequada. Isto nos reme- te ao debate sobre a insuficiência dos modelos clássicos baseados em concepções centradas apenas no papel da burocracia estatal e nas formulações top-bottom (“de cima para baixo”) das políticas públicas. A noção de ação pública permite ampliar as análises nesse sentido, enfatizando também outros fatores que influenciam a construção das políticas públicas desde a via bottom-up (“de baixo para cima”). Assim, sob o prisma da ação pública, o estudo das políticas públicas passa a considerar sistemas mais abertos e complexos, que incluem uma multiplicidade de problemas e negociações, de atores e espaços (para além dos Estados cen- trais), de técnicas, ferramentas e instrumentos.

Para o estudo da implementação da assistência social na cidade de São Paulo a pers- pectiva ampliada da ação pública facilita a compreensão do papel das Organizações da Socie- dade Civil (OSC) na produção cotidiana do que vem a ser, para as pessoas beneficiárias, o resultado da política. Como veremos, as OSC têm importância decisiva não somente na exe- cução da política de assistência propriamente dita, mas na configuração desse campo como um todo, inclusive nos níveis de proposição e deliberação34. Neste sentido, concordo com Peter Spink (2013) quando argumenta sobre a importância de ampliar o foco das investiga- ções em Psicologia Social que se debruçam sobre o campo da ação pública, considerando não somente “as atividades do setor público, mas incluindo [também] os diversos arranjos entre governo e sociedade presentes na formulação e gestão do agir público e a pressão de novas instâncias da sociedade civil e a provisão de serviços próprios pelas comunidades” (p.180).

Para compreendermos as ações socioassistenciais em um determinado território, preci- samos tem em mente que a materialização da política pública de assistência social no municí- pio de São Paulo vai além do raio de ação do Estado e inclui diversos outros atores, como as associações religiosas de base local. Este é o cenário que encontramos, por exemplo, no terri- tório do Jaguaré quando desenvolvemos a pesquisa de campo. Vemos então que as ações en-

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No município de São Paulo, as Organizações da Sociedade Civil são responsáveis pela execução da quase totalidade dos serviços ofertados nos níveis de proteção social básica e especial, mobilizando recursos econômi- cos, humanos e materiais. Além disso, possuem assento e força política no Conselho Municipal de Assistência Social (COMAS), influenciando as decisões conforme seus interesses. Para detalhes sobre o papel das OSC na política de assistência social, ver Amâncio (2008), Marin (2012) e Brettas (2016).

gendradas no âmbito da “sociedade civil” são de fundamental importância para a materializa- ção da política de proteção social. Isto nos obriga a pensar sobre a sociedade civil como um elemento central no processo de execução da ação pública.

Segundo Iris Marion Young (2000), redescobrir o conceito e as práticas da sociedade civil é importante para o debate sobre a promoção da democracia e da justiça, pois os movi- mentos que lutam por liberdade e bem estar ampliam as conexões entre os direitos humanos básicos e as instituições que devem ser acionadas para garanti-los. Geralmente a sociedade civil é definida em oposição ao estado e à economia, mas por essa via a sociedade civil seria circunscrita a um topos ou esfera da vida social. Young prefere não utilizar essa linguagem “espacializante”, mas pensá-la como diferentes tipos de atividades35.

Em perspectiva semelhante, Dahrendorf entende que a sociedade civil descreve

the associations in which we conduct our lives and which owe their existence to our needs and initiative rather than to the state. Some of these associations are highly deliberative and sometimes short lived, like sports clubs or political parties. Others are founded in history and have very long life, like churches or universities. Still others are the place in which we work and live – enterprises, local communities. The family is an element of civil society. The crisscrossing network of such associations – their creative chaos as one might be tempted to say – make up the reality of civil society. It is a precious reality, far from universal, itself the result of a long civilizing process; yet it is often threatened by authoritarian rulers or by forces of globalization (Dahrendorf, 1991, citado por Spink, 2014, p. 14-15).

O entrecruzamento das redes associativas, isto é, o “caos criativo” que lhe é caracterís- tico, define o movimento da sociedade civil em cada contexto. No caso da política de assis- tência social no município de São Paulo, as OSC’s são as protagonistas na provisão dos servi- ços socioassistenciais nos territórios através de convênios com o poder público. Decorre desse fato uma série de tensões e conflitos que variam de acordo com os perfis organizacionais, os recursos de poder e os contextos territoriais e institucionais locais (Brettas, 2016; Amâncio, 2008). Por ora, não convém entrar demais neste intricado debate; para nossos fins é importan- te destacar apenas o aspecto do conflito, entendido aqui não como algo negativo que deve ser

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A autora descreve três “níveis” de atividades associativas características da sociedade civil: a associação pri-

vada, na qual as atividades são voltadas exclusivamente para seus próprios membros, como por exemplo na

família, nos clubes sociais, grupos religiosos de oração etc.; a associação civil, que diferentemente das associa- ções privadas dirigem suas ações para fora, isto é, para a pessoas que não são membros associados. Este nível é típico das associações voluntaristas em geral que visam contribuir com a vida coletiva ou ajudar pessoas desco- nhecidas que estão precisando; e, por fim, a associação política, na qual as atividades visam provocar o debate público sobre princípios e prioridades políticas. Este nível é típico de partidos ou coletivos políticos, grupos de defesa de direitos humanos etc., mesmo que não estejam diretamente dirigidos ao estado. A preponderância de um desses níveis de associação reflete em grande medida a autocompreensão que uma determinada sociedade faz de si mesma. Por exemplo, o excesso de associações privadas contribui muito pouco para o fortalecimento da democracia. Apesar de não haver nada de errado, per se, com a organização de pessoas em torno de seus interes- ses comuns, uma sociedade com excesso de associações desse tipo age de forma autocentrada e desconsidera os que estão de fora ou internamente marginalizados, o que tende a reduzir as condições para o estabelecimento de uma efetiva “democracia comunicativa” (Young, 2000; 2001).

eliminado, mas pelo contrário, como elemento constitutivo de uma relação complexa. Por isso a escolha de abordar na pesquisa de campo, como já foi mencionado, dois serviços socioassis- tenciais – um da administração direta e o outro de uma OSC – que atuam em um mesmo terri- tório (ainda que com funções distintas), de modo a analisar não somente as ações de cada ser- viço, mas também as relações entre ambos. Antes, porém, vejamos em traços gerais algumas características da principal forma institucional de proteção social não contributiva no Brasil: o Sistema Único de Assistência Social (SUAS).