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Capítulo 5 – Cidadania e o “lugar”: intersecções entre questão social e questão urbana

5.3. A “favela” Vila Nova Jaguaré

A “favela”, também chamada por muitos de seus moradores apenas de “comunidade Vila Nova Jaguaré”, só nasceria entre as décadas de 1950 e 1960 a partir de ocupações espar- sas do terreno doado por Villares à Prefeitura para a construção da área de lazer. Este terreno fica voltado para o rio Pinheiros e para a cidade, de modo que das janelas de várias casas da comunidade tem-se uma bela vista do CEAGESP, do Parque Villa Lobos, da marginal e da Cidade Universitária. Do ponto de vista dos transeuntes que vêm da cidade, a impressão que se tem é a de um amontoado de casas aparentemente inacabadas, umas sobre as outras.

Figura 2 - Localização da Vila Nova Jaguaré e demais áreas em situação de vulnerabilidade social alta e muito alta, segundo o IPVS 2010 (Seade, 2010). Os grupos 1 e 2 significam baixa ou muito baixa vulnerabilidade, os grupos 3 e 4, vulnerabilidade moderada, e os grupos 5 e 6 indicam as áreas de alta e muito alta vulnerabilidade. O grupo 7 refere-se à alta vulnerabilidade em áreas ru- rais.

A VNJ chegou a ser considerada a maior “favela”48 em área contínua da cidade de São Paulo, isto é, em extensão e ausência de vias regulares de acesso. Nela residem atualmente mais de 12 mil pessoas em um território de 150 mil². Seu surgimento e crescimento foram semelhantes à de várias outras “favelas” da metrópole. Suzana Pasternak Taschner, narra uma das primeiras ocupações na “Nova Jaguaré”:

Relata João que, recém-chegado à cidade de São Paulo, vindo de Presidente Prudente, em 1962, alugou uma casa de 4 cômodos no Jaguaré, perto da igreja. Naquela época pagava CR$ 10,00 por mês. Conversando com um moço da vizinhança, um mineiro, ele lhe falou que morava lá há uns 10 anos, em casa própria e durante todo esse tempo olhava para um “Matão” da Prefeitura no qual nunca ninguém mexia. Convidou João para ocupar a terra, plantar qualquer coisa. João relutou um pouco, “o terreno não é meu, não sei não...”, depois cedeu. E lá foram, ele e o mineiro, derrubando o matagal. O mineiro, que já tinha casa, usou a terra só para o cultivo. João, além do seu roçado de mandioca do qual fala com os olhos brilhantes de orgulho, fez o seu barraco, para o qual se mudou com toda a família (Taschner, 1982, citada por Freire, 2006, pp. 110-103).

Após uma “briga com faca”, a polícia ordenou que desocupassem o terreno. João con- sultou o responsável administrativo pelo Serviço de Patrimônio da Prefeitura à época, que lhe deu um prazo de seis meses para deixarem o local, mas que “se tudo corresse bem”, ele pode- ria continuar:

João, devido aos seus contatos com a administração pública, passa a se identificar na favela como fiscal ou ajudante do fiscal da Prefeitura e a gerir a ocupação do espaço físico daquela. Anos mais tarde seria eleito o primeiro presidente da Associação de Moradores da Favela Nova Jaguaré (Frei- re, 2006, p. 103).

O processo de ocupação da área prosseguiu aceleradamente. Em 1962 já se apontava a existência de 135 barracos e, cinco anos mais tarde, em 1968, havia cerca de 370 barracos. No começo dos anos 1980, eram 1.518 barracos (Kowarick, 2009, p.237). No início da década de 1970, quase a totalidade (96,7%) das moradias na VNJ eram feitas de madeira e em 1980 a metade já era de alvenaria e, desde então, esta forma de habitação tem predominado.

Desde o final da década de 1960 havia uma escola de madeira com duas salas de aula, o que aponta para “o reconhecimento por parte da Prefeitura da existência da favela e início das ações institucionais na área” (Freire, 2006, p. 103). Segundo Pisani (2011, citada por Pala, 2011, p.87), em 1973 a VNJ contava com: ambulatório médico, escola primária, dez quitan- das, vinte e um bares, uma barbearia, duas sapatarias, um salão de beleza, duas costureiras e três associações: uma religiosa, uma esportiva e uma de cunho reivindicatório.

48

O termo “favela” é empregado entre aspas pois, além das pessoas com quem conversei se referirem ao local onde vivem apenas por “comunidade”, é necessário ressaltar que, em termos de regularização fundiária, desde novembro de 2015, a população que reside na área abrangida pela comunidade Nova Jaguaré obteve os docu- mentos de concessão de uso do solo para fins de moradia. Oficialmente, portanto, não se trata mais de uma área

irregular. Ainda assim, é importante levar em consideração a conotação pejorativa da palavra “favela” e ressal-

As famílias conquistaram com muito custo seu direito à moradia. Não obstante a As- sociação de Moradores e a constante luta contra as remoções, essa conquista resultou das prá- ticas individuais de muitos moradores. Como explica Lúcio Kowarick:

Os fiscais impediam a construção com blocos e cimento, pois a moradia tinha que ser provisória. Era preciso muita paciência para ir, aos poucos, erguendo a casa própria, um pedaço em um fim de semana, outro pedaço no feriado. Quando havia mais dinheiro, contratavam-se pedreiros e subiam- se as paredes de vez. De repente, não mais que de repente, do madeirite e da tábua surge o bloco e o cimento que, aos poucos, vai se estendendo pelas alturas. É preciso a perspicácia de saber o mo- mento de sedimentar um pequeno pedaço. É preciso paciência para dar, sem tropeços, o diminuto passo adiante. Certamente, este avanço não provém da percepção de um porvir coletivo, mas ad- vém da lucidez construída na vivência dos limites e das possibilidades do imediato: “Se os fiscais chegassem e a família já tivesse se instalado, eles não tiravam, deixavam ficar. Trabalhei três dias sem parar e deu tempo. Quando eles chegaram, nós já távamos morando lá: eles não fizeram nada, deixaram ficar. Não tenho direito, mas tenho direito: o terreno já era meu. Bom! O terreno é da Prefeitura, mas se ele está sob meu domínio, então ele é meu” (Kowarick, 2009, pp. 274-275).

Se, por um lado, as intervenções do poder público municipal visavam remover as fa- mílias das áreas de risco do terreno, por outro elas aos poucos viabilizam a chegada de novos moradores:

A partir dos arquivos da Prefeitura a Favela Nova Jaguaré foi uma das primeiras a receber o abas- tecimento de água potável e energia de forma coletiva no Município de São Paulo. Esta concessão fez com que a Favela atraísse novos moradores, tendo um adensamento intenso, dentro dos pa- drões das construções precárias existentes e das vielas e escadarias estreitas (Pisani, 2011, citada por Pala, 2011, p. 88)

Segundo Fachini (2014, p. 49), entre 1973 e 1978 a taxa de crescimento da VNJ supe- rou a taxa de crescimento da população favelada do município para o mesmo período. Desse modo, ao final da década de 1970 as favelas já não podiam mais ser consideradas pelas auto- ridades municipais um fenômeno provisório e facilmente reversível. Por isso, era necessário formular ações públicas específicas para esses territórios. Assim, no campo das políticas de habitação são criados o Fundo de Atendimento a População Moradora de Habitação Subnor- mal (FUNAPS), o Programa Municipal de Erradicação de Habitações Subnormais (PROMO- RAR) e o Programa Municipal de Regularização de Favelas (PROFAVELA) (Fachini, 2014, p.53).

Segundo Moya Recio (2010), em todo o município, durante a década de 1980, a popu- lação que vivia em favelas continuou crescendo. Enquanto em 1973 havia 1,1% da população morando em favelas, em 1987 passou a ser 8,8% da população paulistana. Apesar da desace- leração da taxa de crescimento nas décadas seguintes, essa porcentagem subiu, no ano 2000, para 11,2% e, em 2010, eram 10,7% da população morando em favelas em São Paulo (apesar de ter aumentado, em números absolutos, conforme a tabela 4).

Tabela 4 - Evolução da população em favelas no Município de São Paulo, 1973-2010 Ano População Total População em favelas % População em Favelas

Período Taxa de Cresc. Anual - favelas Taxa de Cresc. Anual - total 1973 6.560.547 71.840 1,1 -- -- -- 1987 9.210.668 812.764 8,8 1973-1987 18,92 2,45 1991 9.644.122 891.673 9,2 1987-1991 2,34 1,16 2000 10.434.252 1.160.597 11,1 1991-2000 2,97 0,88 2010 11.253.503 1.209.648 10,7 2000-2010 0,41 0,76

Fonte: Moya Recio (2010, p. 51).

A configuração espacial da VNJ assemelha-se ao modelo “labiríntico” típico de outras favelas paulistanas (Ramos & Carvalho, 2008). Alguns moradores costumam falar dos “peda- ços” da comunidade, de acordo com o uso dos espaços feito por determinados grupos, como por exemplo, as “biqueiras”, isto é, os pontos onde jovens se reúnem para consumir drogas.

De modo geral, desde o final dos anos 1980, houve um incremento generalizado da criminalidade na cidade de São Paulo, principalmente nas favelas. A própria VNJ já teve seus “justiceiros”, que, na total ausência da polícia, praticavam “justiça pelas próprias mãos”. Hoje o cenário é de estabilidade e muitos moradores dizem que se sentem seguros; alguns dizem que temem mais a presença da polícia do que o tráfico.

Contudo, a despeito da presença do crime organizado na VNJ e dos eventuais conflitos com a polícia, é o preconceito vindo do olhar externo sobre os moradores que constitui talvez o maior desrespeito em termos de reconhecimento. Esse olhar estigmatizante produz a figura do “favelado” como pecha derivada do lugar de moradia. Nas contas de água e luz, por exem- plo, cada moradia recebe um código – FV – taxativo de que se trata de “favela”. Assim, para contornar o preconceito e conseguir um emprego, é comum que as pessoas da VNJ omitam a informação sobre onde moram ou usem o endereço de outrem (Kowarick, 2009, p.273).

A humilhação decorrente da desconfiança e do menos-valor atribuído às pessoas que moram em favelas pode significar marcas negativas profundas na forma como autocompreen- dem a si mesmas. Assim, considerando que a experiência do desrespeito é o motor para a luta por reconhecimento, podemos entender, por exemplo, a razão dos moradores em utilizar o termo “comunidade” como um recurso comunicativo para enfatizar os aspectos positivos da vida na VNJ. Trata-se de uma forma de resistência.

Na pesquisa de campo, após o mapeamento inicial dos serviços socioassistenciais con- veniados que atuam no Jaguaré, optei por focalizar um Centro para Crianças e Adolescentes,

situado dentro da VNJ, além do CRAS da Lapa, que atende a esse território. Desse modo, acredito que temos um pequeno recorte da relação majoritária da implementação do SUAS na cidade de São Paulo: a relação entre Estado financiador e regulador e OSC conveniada.

Tabela 5 - Comparativo entre a “Vila Nova Jaguaré” e as Favelas do Município de São Paulo

Vila Nova Jaguaré Fave las do MSP

1991 2000 2010 1991 2000 2010* N % N % N % N % N % N % População 8.075 --- 9.055 --- 8.389 --- 867.588 --- 1.160.597 --- 1.209.573 --- Domicilios 1.549 --- 2.389 --- 2.346 --- 188.822 --- 291.983 --- 336.762 --- Hab/dom 5,21 --- 3,79 --- 3,58 --- 4,59 --- 3,97 --- 3,59 --- C hefes mulheres 249 16,07 717 30,01 1.313 55,97 38.663 20,71 80.137 27,45 133.262 39,54

Elaborado por Camila Saraiva a partir de cartografias do CEM/Cebrap e Censos Demográficos IBGE. Fonte: Moya Recio (2015). Adaptado.

*Os dados de 2010 incluem núcleos urbanizados.

Figura 3 - Vista aérea do acesso à Nova Jaguaré pelas ruas Engenheiro Vitor Freire e Três Arapongas. Fonte: Fachini (2014, p.184).