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Capítulo 5 – Cidadania e o “lugar”: intersecções entre questão social e questão urbana

5.1. Sobre a vulnerabilidade socioterritorial na metrópole

Quando investigamos as ações de políticas públicas territorializadas, como é o caso da política de assistência social brasileira, acabamos necessariamente entrando no debate sobre a cidade e os usos do espaço. A ideia de Milton Santos (2005), de que território é o espaço hu- mano habitado foi assimilada ao texto da PNAS como uma importante inovação em termos de articulação das ações do SUAS a partir da escala local e das demandas concretas das pessoas atendidas pelos serviços.

No entanto, como argumenta Koga (2005), há uma multiplicidade de perspectivas so- bre o território operando simultaneamente nos diversos âmbitos da política assistencial. “Ter- ritório” pode ser considerado apenas como o espaço físico onde as intervenções devem acon- tecer, isto é, como um lugar passivo caracterizado pela delimitação de uma determinada área geográfica à qual corresponde uma esfera administrativa específica. Essa é a visão prioritária da gestão burocrática. Em contraposição a esta definição, pode ser abordado como território

ator, caracterizado pela dinamicidade e expressividade de suas relações sociais. Nesta visão,

território é movimento. Há também outras possibilidades de definição: pela proximidade das relações imediatas dos cidadãos com o lugar de vivência cotidiana e com os serviços públicos ali presentes; pela acessibilidade que, diferentemente da noção comunitária de proximidade, caracteriza o território pelo viés do direito à cidade, à mobilidade e ao acesso a diferentes es- paços e fluxos independente da proximidade com o lugar de moradia; pode-se ainda caracteri- zá-lo pela perspectiva das práticas sociais que articulam relações familiares, de vizinhança e trabalho aos diversos espaços da cidade, ou seja, como campos de práticas “feitos de cone- xões e interações sociais atravessadas pelas circunstâncias objetivas (e os processos estrutura- dores do trabalho e da cidade), pela experiência (no sentido de [E. P.] Thompson) e formas de subjetivação” (Telles, citada por Koga, 2005, p. 20).

Por isso, Dirce Koga prefere usar a expressão “dinâmica socioterritorial” para se refe- rir às relações intra-urbanas e às diferenciações sócio-espaciais que perpassam a vida diária da população e que (re-)desenham constantemente a própria cidade, com suas referências objeti-

vas e subjetivas construídas continuamente pelos próprios sujeitos que a compõem (Koga, 2005, p.20).

Não surpreende, portanto, que seja cada vez mais frequente encontrarmos estudos em psicologia social que privilegiam certa atenção a essa dinâmica socioterritorial. O fenômeno da cidade – que empresta nome à “cidadania” – passa a ser reconhecido cada vez mais como um problema central para a pesquisa social contemporânea interessada em compreender me- lhor a ação pública em contextos de vulnerabilidade e risco. Afinal, como alerta Kowarick (2000), a separação entre “questão urbana” e “questão social” serve apenas a fins analíticos, pois, na realidade, são indissociáveis.

A cidade de São Paulo constitui um exemplo clássico neste sentido. A literatura sobre a pobreza, desigualdade e segregação na metrópole paulista possui uma ampla tradição de estudos que se debruçaram sobre a intersecção entre o social e o urbano (Moya Recio, 2011). Costuma-se apontar três diferentes “padrões” históricos de segregação sócio-espacial em São Paulo desde o final do século XIX: o primeiro, predominante até a década de 1940 caracteri- zava-se pela diferenciação quanto à posse e forma de moradia: as elites viviam em casas pró- prias, geralmente nas partes mais elevadas da região central da cidade, enquanto os trabalha- dores ocupavam as áreas mais baixas, em imóveis alugados nas vilas operárias ou em cortiços superpovoados; o segundo padrão, predominante entre as décadas de 1940 e 1980, ficou co- nhecido como “centro-periferia” em função do crescimento exponencial da autoconstrução de moradias pelas classes populares nas franjas da cidade, geralmente em loteamentos carentes de infraestrutura básica – com exceção do transporte, ainda que precário, para garantir a lo- comoção ao trabalho; o terceiro modelo de segregação, predominante desde o último quarto do século XX corresponde à formação de espaços cada vez mais heterogêneos, onde as cama- das sociais compartilham espaços próximos, mas divididos pela lógica dos muros de condo- mínios e por tecnologias de segurança cada vez mais avançadas que acabam produzindo uma nova ordem de ocupação do espaço público, marcada pela lógica da “evitação social” (Caldei- ra, 2000)41.

Hoje os principais estudos sobre a cidade de São Paulo mostram um cenário cada vez mais heterogêneo, em todos os seus espaços, padrões de crescimento, condições sociais e de- sigualdades – nas palavras de Marques (2015, p.4), “o plural é cada vez mais importante”. A cidade permanece sendo ponto nodal dos conflitos contemporâneos, haja vista a concentração e mobilização de forças sociais que “fluem” cotidianamente por todos os lados do tecido ur-

41

Para mais detalhes sobre as formas de segregação sócio-espacial na cidade de São Paulo, conferir, entre ou- tros, Caldeira (2000), Kowarick (2009) e Marques (2015).

bano. É neste sentido que Kowarick (2000) propõe analisar as lutas sociais e a cidade de for- ma integrada, como uma complexa trama entre exploração do trabalho e espoliação urbana, que pelos processos de produção de experiências, em determinados momentos históricos culmina na fusão dos conflitos e reivindicações gestadas cotidianamente pela classe trabalha- dora nos bairros populares, nas fábricas, no transporte coletivo etc.

Também as políticas governamentais – e a ação pública, de modo geral – encontram- se no cerne das lutas sociais no espaço urbano. Pois se, por um lado, o Estado favorece a acumulação capitalista através da viabilização da exploração da força de trabalho e da mais- valia absoluta urbana, por outro, ele é alvo de reivindicações populares que visam obter me- lhorias em relação aos bens e serviços de consumo coletivo.

Não por acaso que o “urbano” está enormemente presente nos discursos governamentais, traduzindo um esforço que visa criar uma imagem em que o Estado apareça como uma espécie de entranha geradora do bem comum. (...) Nesse sendo, as políticas públicas procuram gerar uma forma de hegemonia que retire das classes populares a sua iniciativa e autonomia, atomizando suas reivindicações a fim de manter o controle sobre a cidade e seus moradores: é preciso, na ótica dominante, fazer com que a obra pública apareça como uma realização do Estado, que, se assim o conseguir, realiza a fundamental tarefa de co- optação, diluindo e canalizando os conflitos das massas urbanas, que permanecem numa ilusão de parti- cipar de uma cidadania constantemente prometida e escamoteada (Kowarick, 2000, pp. 63-65).

Apesar de Kowarick se esforçar em evitar uma análise excessivamente funcionalista dos conflitos sociais, neste ponto ele parece subestimar a contradição interna ao próprio apa- relho estatal que o torna “disputável”, em níveis distintos, pelas forças da sociedade civil. Isto fica patente, por exemplo, quando consideramos as tensões existentes no âmbito da política de assistência social em São Paulo.

Conforme ressaltam pesquisadoras da área, como Amâncio (2008) e Marin (2012), “a política da política de assistência” no município é caracterizada por intensas disputas entre atores estatais e não estatais – por exemplo, em espaços de negociação e deliberação, como o Fórum de Assistência Social (FAS), o Fórum Estadual de Trabalhadores do SUAS (FET- SUAS) e o Conselho Municipal de Assistência Social (COMAS). Afinal, a provisão dos ser- viços é executada quase em sua totalidade pelas OSC, através de contratos estabelecidos com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS)42. No nível da proteção básica, por exemplo, em dezembro de 2015 a rede socioassistencial totalizava 761 serviços administrados por 308 diferentes OSC43. Em termos orçamentários, a previsão do gasto público para 2016 com a rede socioassistencial era a seguinte:

42

Cerca de 94% dos serviços são executados através de convênios entre OSC e SMADS (Brettas, 2016). 43

Segundo as tabelas para elaboração do Plano Municipal de Assistência Social de 2016, disponibilizadas em: < http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/assistencia_social/observatorio_social/monitoramento >

Tabela 3 - Serviços socioassistenciais - Valores e origem dos recursos financeiros de cofinanciamento Tipo de Cofinanciamentos

Privado Total

Proteção Municipal Estadual Fe de ral

Re de Pública Re de Privada

Re de

Re de Privada Re de Pública Re de Privada

Pública Básica 36.892.051,04 372.397.111,18 0 23.185.507,44 8.385.720,20 8.359.581,24 0 449.219.971,10 Especial de Média 25.661.211,00 94.232.121,92 543.333,60 8.417.805,48 6.260.004,00 5.115.784,08 0 140.230.260,08 Complexidade Especial de Alta Comple- xidade 0 173.763.797,27 0 32.729.206,48 0 6.255.159,00 0 212.748.162,75 Sub-Total: 62.553.262,04 640.393.030,37 543.333,60 64.332.519,40 14.645.724,20 19.730.524,32 0 802.198.393,93 Total: 702.946.292,41 64.875.853,00 34.376.248,52 0 802.198.393,93

Fonte: Tabela de Previsão Orçamentária do Plano Municipal de Assistência Social 2016.

Como podemos observar nesta tabela, o gasto com a “rede privada” – isto é, os servi- ços públicos executados por atores não estatais – é muito superior às despesas com a “rede pública” (serviços da administração direta). Além disso, não obstante o aporte de recursos das esferas federal e estadual para o cofinanciamento da rede socioassistencial paulistana, o inves- timento direto do município, através do Fundo Municipal de Assistência Social, representa cerca de 87,5% do gasto total. Nesse cenário, é fundamental a regulamentação das “parcerias operadas por meio de convênios” e a tipificação da rede socioassistencial operante no municí- pio (São Paulo, 2010).

O compartilhamento da responsabilidade pela provisão dos serviços socioassistenciais públicos é uma realidade em todo território nacional. Brettas (2016), analisando o papel des- sas organizações na provisão dos serviços de assistência em nível nacional, destaca a hetero- geneidade dos perfis organizacionais no universo das OSC, que atuam em maior ou menor consonância com as diretrizes da política e/ou com a dinâmica socio-territorial onde estão inseridas. Em sua pesquisa, distingue “três diferentes momentos” sobre o entendimento do papel das OSC a partir de 2004: 1) primeiro, na fase inicial de implementação do SUAS, uma

visão estatista baseada num diagnóstico que associava, de modo generalizante e pejorativo, as

organizações ao conservadorismo, assistencialismo e filantropia. Nesse primeiro momento, predominou a agenda de afirmação da ação estatal no SUAS através de investimentos mais robustos em serviços da administração direta, principalmente pela disseminação de equipa-

mentos de base local, como os CRAS; 2) em um segundo momento, por volta de 2010, fica evidente que as OSC são indispensáveis e dificilmente serão substituídas pelo Estado na pro- visão dos serviços socioassistenciais, passando então a predominar a ideia de “rede socioas-

sistencial privada do SUAS”. Nesse período, em decorrência da pressão política exercida por

algumas OSC, a responsabilidade pela certificação das entidades (CEBAS) é transferida do CNAS para o MDS e, dentro desse ministério, na SNAS, é criada uma área de gestão do con- junto de organizações que atuam no SUAS: o “Departamento da Rede Socioassistencial Pri- vada do SUAS”. A partir de então, começa a haver uma regulamentação mais intensa da atua- ção das OSC; 3) finalmente, a partir de 2013, em função da dinâmica anterior, podemos con- ceber a primazia da ideia de rede socioassistencial do SUAS única, de finalidade pública, independente da natureza da organização ofertante do serviço (Brettas, 2016, pp.149-151).

Em São Paulo as OSC são muito diversas. Geralmente são associações cívicas44, liga- das a grupos com declarada vocação para a ação social, como setores comunitários da Igreja Católica, associações de moradores ou grupos beneficentes e humanitários. Também podem ser associações políticas, como movimentos sociais tradicionais, com maior ou menor enrai- zamento no território onde atuam. Desse modo, o estudo da ação pública no nível local deve considerar a ação de ambos atores, estatais e não estatais, em relação à dinâmica socioterrito- rial na qual estão inseridos. Neste sentido, convém conhecermos agora um pouco da história do lugar onde foi desenvolvida a maior parte da etapa empírica desta pesquisa: o Jaguaré.