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PARTE 1 CIDADANIA E RECONHECIMENTO

1.3. Cidadania, identidade e reconhecimento: dilemas e flexibilidade

A discussão sobre a relação entre os direitos subjetivos e identidade constitui o ponto mais controverso e menos desenvolvido do debate sobre a cidadania moderna (Leydet, 2011). Esta dimensão refere-se diretamente ao senso de pertencimento e ao grau de reconhecimento social recebido ou negado aos indivíduos em uma determinada comunidade política, de modo que a dimensão identitária da cidadania diz respeito tanto aos conflitos morais quanto à ques- tão da integração em sociedades complexas.

Ao longo dos séculos XIX e XX, as questões identitárias associadas ao status de cida- dania foram objeto de inúmeros conflitos, geralmente traduzidos em termos de identidade nacional e exclusão ou segregação. Por um lado, o uso nacionalista do discurso da cidadania revela seu potencial negativo de homogeneização, o que o torna funcional a diversas formas de autoritarismo; além disso, são inúmeros os casos em que o status de cidadania esteve blo- queado em grande medida (e por longos períodos) a diversos grupos sociais, tais como pesso- as negras, mulheres, LGBT, analfabetos, imigrantes etc. Por outro lado, os movimentos soci- ais que defendem os direitos de cidadania desses e outros grupos encontram sua força motriz precisamente na luta pelo reconhecimento da legitimidade das diversas formas de identidade e pela paridade de participação cidadã nas esferas públicas (Honneth, 2003; Taylor, 2000; Fra- ser, 2001).

Para autores como Axel Honneth (2003) e Charles Taylor (2000), a identidade é mol- dada através das relações de reconhecimento recíproco, de modo que a ausência ou distorções na forma como os sujeitos são reconhecidos pelos outros constitui um modo de desrespeito com consequências reais: “o não-reconhecimento ou o reconhecimento errôneo podem causar danos, podem ser uma forma de opressão, aprisionando alguém numa modalidade de ser falsa, distorcida e redutora (...) [Por isso] O devido reconhecimento não é uma mera cortesia que devemos conceder às pessoas. É uma necessidade humana vital” (Taylor, 2000, pp. 241-242).

Nas cidades medievais, por exemplo, as relações jurídicas e as obrigações morais de senhores e súditos baseadas na noção generalizada de “honra” eram mediadas pelo reconhe- cimento mútuo de papeis sociais bem definidos. Com o advento da modernidade, a concepção de cidadão ou cidadã emerge da passagem das relações de reconhecimento baseadas na honra para relações pautadas pela noção de “dignidade” (“dignidade inerente dos seres humanos” ou “dignidade do cidadão”.) Diferentemente da honra que só os nobres possuíam, a dignidade é pressuposta a todos sem exceção.

Honneth (2003, p.203) ressalta a transformação nas condições cognitivas que transfe- riu a validação da “ordem social” das tradições metafísicas para os processos decisórios in- tramundanos, alterando tanto a compreensão cotidiana do sistema de valores quanto a condi- ção de validade dos direitos de cidadania. Para esse autor, é neste momento que ocorre o “de- sacoplamento” entre o reconhecimento jurídico e a estima social, ou seja, na linguagem do direito todo ser humano deve ser considerado “um fim em si” enquanto que a semântica do “respeito social” pressupõe o “valor” de um indivíduo conforme critérios intersubjetivamente estimados sobre sua “relevância social” (p.184).

Na visão de Taylor (2000) a aceitação generalizada do princípio da cidadania nas esfe- ras pública e privada ocorre a partir do advento das duas novas “fontes morais”, especifica- mente modernas, do Self: o ideal de dignidade e o ideal de autenticidade. O primeiro, de cará- ter universalizante, diz respeito àquelas exigências morais de respeito à vida, à integridade e ao bem-estar que permitem a generalização da ideia de igualdade; o segundo tem caráter par- ticularizante de valorização da identidade pessoal, ao “único jeito de ser eu mesmo”, isto é, à originalidade de cada pessoa que a faz fiel a si mesma e a sua própria maneira particular de ser. Assim, por um lado, uma política que enfatiza a dignidade deve buscar a equalização dos direitos de cidadania, evitando a todo custo a assimetria entre cidadãos de uma comunidade política. Taylor ressalta a pobreza como um dos principais impedimentos à fruição plena dos direitos de cidadania e, por isso, são necessárias políticas sociais de redistribuição e integra- ção que visam reduzir a desigualdade e garantir a dignidade de todos; por outro lado, o filóso- fo canadense argumenta sobre a necessidade de uma “política da diferença”, que preserve (e valorize) o princípio da autenticidade quando as normas generalizantes da igualdade produzi- rem a injustiça do não-reconhecimento da identidade particular de um indivíduo ou grupo socialmente minoritário. Nesse sentido, há um conflito entre as duas modalidades de política (igualdade e diferença). Na primeira está o princípio do tratamento igual, cego às diferenças; na segunda, está a necessidade de reconhecer e mesmo de promover a particularidade. A pri- meira reprova a segunda por não respeitar o princípio da não-discriminação; a segunda, por sua vez, reprova a primeira porque ela nega a identidade ao impor às pessoas uma forma ho- mogênea que é infiel a elas (Taylor, 2000).

Fraser (2001) aborda esse debate fazendo uma distinção analítica entre injustiças eco- nômicas e injustiças culturais, ambas enraizadas em processos e práticas que prejudicam al- guns grupos em detrimento de outros. O remédio para as injustiças econômicas corresponde à

redistribuição (por exemplo: “redistribuição de renda, reorganização da divisão do trabalho,

nômicas básicas” etc.); o remédio para as injustiças culturais corresponde ao reconhecimento (por exemplo: “reavaliação positiva de identidades desrespeitadas e dos produtos culturais de grupos marginalizados, (...) valorização positiva da diversidade cultural (...) mais radicalmen- te, poderia envolver a transformação geral dos padrões sociais de representação, interpretação e comunicação, afim de alterar todas as percepções de individualidade”) (Fraser, 2001, p.252).

A autora problematiza a questão colocando os problemas reais que incidem na inter- secção dessa distinção entre injustiças econômicas e culturais. Categorias como “gênero” e “raça”, por exemplo, atravessam o dilema redistribuição/reconhecimento uma vez que se constituem em modos ambivalentes de ser em coletividade, nas quais incidem ambas as for- mas de injustiça e para as quais são necessárias as duas formas de remediação. Contudo, o problema reside no fato que os dois remédios propostos apontam para direções opostas e não são facilmente perseguidos simultaneamente, ou seja, onde a lógica da redistribuição procura eliminar as diferenças, a lógica do reconhecimento opera no sentido oposto, para valorizar a especificidade do grupo social.

Prosseguindo nesse ponto de tensão entre os binômios dignidade/autenticidade, redis- tribuição/reconhecimento ou igualdade/diferença, podemos agora (re-)colocar a questão sobre a cidadania, a partir da constatação de uma espécie de “inflação normativa” do conceito (La- valle, 2003, p.92).

Como argumenta Lavalle (2003), o espinhoso tema da relação entre igualdade e dife- rença transborda a questão da cidadania exigindo que qualquer esforço de reconstrução do potencial analítico desse conceito avance fundamentalmente em direção à consideração crítica da noção de equidade. Ao mesmo tempo, mais do que uma contradição entre princípios uni- versais de igualdade e demandas políticas de reconhecimento, para esse autor, o conceito de cidadania tem mostrado uma “extraordinária flexibilidade” para incorporar as pretensões normativas de uma época e renovar-se como recurso heurístico para a crítica social. Nas pala- vras de Lavalle:

Não parece descabido afirmar que a conciliação prática entre igualdade e diferença está longe de repre- sentar obstáculo incontornável nas tendências atuais da cidadania. Não parece provir daí – da universa- lização processada sob condições de heterogeneidade – o maior desafio a ser enfrentado por essa cate- goria política moderna, mas da corrosão das condições para operar uma efetiva universalização da equi- dade (Lavalle, 2003, p. 90).

Desse modo, a questão sobre a definição da cidadania tem acompanhado a tendência contemporânea de passar da discussão sobre o fundamento dos direitos para uma problemáti- ca mais importante, que é a de como efetivamente garanti-los (Bobbio, 2004). Mais: garanti- los para que a linguagem dos direitos possa oferecer a base semântica de uma gramática de

lutas sociais por reconhecimento da dignidade humana e da obrigação moral de garantir o devido respeito e as condições básicas necessárias para o pleno desenvolvimento das capaci- dades dos cidadãos e cidadãs mais vulneráveis. Neste sentido, cabe lembrar o argumento de Bobbio (2004) quando afirma que a linguagem dos direitos possui uma grande função prática, capaz de emprestar força às lutas pela democracia e pela satisfação das necessidades materiais e morais. Contudo, este autor alerta que a linguagem sobre os direitos pode se tornar engana- dora e intransparente se não for crítica da distância entre o direito discursivamente reivindica- do e o direito efetivamente reconhecido e exercido. Em perspectiva semelhante, Vera Telles (1999) entende que é necessário recuperar esse sentido crítico e questionador que a linguagem dos direitos contém e utilizá-la para problematizar o presente à luz da promessa de igualdade e justiça intrínseca à acepção moderna da cidadania.

Por ora, podemos então concluir que a cidadania, de modo genérico, pode ser definida como a condição de cidadão ou cidadã reconhecido(a) como membro pleno de uma comuni- dade política, com direitos e deveres para com a coletividade a que pertence, perante a qual possui a liberdade para exercer poder nas esferas públicas e saber que serão respeitadas suas pretensões de reconhecimento identitária. Como a cidadania é um processo sempre em aberto, a realização plena desse “status” só pode ser atingida de modo que permaneça aberto à pró- pria transformação e superação em direção a novos direitos e liberdades. Enquanto não atin- girmos um patamar social de respeito adequado às pretensões normativas de nossa época, o horizonte da cidadania poderá servir como uma ferramenta crítica para desvelarmos as pato- logias da sociedade.