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PARTE 1 CIDADANIA E RECONHECIMENTO

1.1. Cidadania legal: o modelo de T H Marshall

A concepção teórica de cidadania moderna mais influente do século XX foi elaborada pelo sociólogo britânico Thomas Humphrey Marshall, em 1949. Este autor define cidadania da seguinte maneira:

A cidadania é um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status. Não há nenhum princípio universal que determine o que esses direitos e obrigações serão, mas as socie- dades nas quais a cidadania é uma instituição em desenvolvimento criam uma imagem de cidadania ide- al em relação à qual a aspiração pode ser dirigida. A insistência em seguir o caminho assim determinado equivale a uma insistência por uma medida efetiva de igualdade, um enriquecimento da matéria prima do status e um aumento no número daqueles a quem é conferido o status (Marshall, 1967, p. 76).

Marshall propõe dividir a cidadania em três partes, ou elementos, analiticamente dis- tintos: civil, político e social. A cada um corresponde um conjunto de direitos e aspirações sociais e um tipo de instituição característica. Essa divisão, ressalta Marshall, serve apenas para mostrar o percurso do desenvolvimento histórico dos direitos da cidadania moderna no caso específico que ele está analisando: a Inglaterra dos séculos XVIII, XIX e XX.

A cidadania civil é formada pelos direitos civis que se referem ao direito à vida, à propriedade, à liberdade de pensamento e de movimento. Segundo Marshall, estes direitos surgiram no século XVIII como demandas da burguesia em ascensão em sua luta contra o Estado absolutista em um contexto de reflexão filosófica sobre as bases do contrato social. As instituições correspondentes à cidadania civil são os Tribunais de Justiça. À cidadania políti-

ca correspondem os direitos à participação na tomada de decisões que envolvem o conjunto

da sociedade. Os direitos políticos, portanto, dizem respeito à liberdade de votar e ser votado, bem como asseguram a livre associação em sindicatos e organizações políticas de qualquer natureza. Para Marshall os direitos políticos surgiram no século XIX como decorrência da ampliação dos direitos civis. As instituições correspondentes são os Parlamentos e Conselhos locais. Por último, a cidadania social é composta pelo conjunto de direitos civis que inclui segurança, bem-estar econômico, o direito de compartilhar da riqueza socialmente produzida e o de viver uma vida civilizada, segundo padrões sociais condizentes. Para Marshall, embora

os direitos sociais tenham sido reivindicados pela classe trabalhadora ao longo de praticamen- te todo o século XIX, com exceção do direito à educação, os direitos à saúde, à habitação, à previdência pública, à assistência social, ao trabalho etc. só foram positivamente consolidados ao longo do século XX. As instituições correspondentes são o sistema educacional, os servi- ços sociais etc.

De acordo com Lavalle (2003) a concepção marshalliana de cidadania apresenta qua- tro características: 1) universalidade da cidadania, isto é, atribuição de um status definido em termos de direitos universais para categorias sociais formalmente definidas ao invés de quais- quer outras hierarquias como castas ou estamentos com qualidades substantivas inerentes; 2)

territorialização da cidadania, que significa a territorialidade utilizada para delimitar politi-

camente os alcances da cidadania, ou seja, o território passa a ser o critério para delimitar a abrangência do status, ao invés de outros fatores, como princípios corporativos; 3) princípio

plebiscitário da cidadania (ou individualização da cidadania), trata da generalização dos vín-

culos diretos entre indivíduo e Estado como forma legítima de reconhecimento e subordina- ção política; 4) índole estatal-nacional da cidadania, que, articulada às demais, representa a existência de um vínculo constitutivo entre cidadania e edificação do Estado-nação, entre o território e um poder centralizado único, de um lado, e, do outro, entre a população constituí- da como comunidade política e o Estado enquanto encarnação presuntiva dessa comunidade concebida em termos culturais ou de identidade nacional.

O modelo de cidadania jurídica formulado por Marshall, ao mesmo tempo em que for- nece as bases fundamentais para qualquer teorização posterior sobre a cidadania moderna, passou a receber diversas críticas desde o último quarto do século XX. Convém mencionar rapidamente cinco conjuntos de críticas à obra de Marshall, levantados por Josué Pereira Silva (2008). O primeiro diz respeito ao evidente contextualismo do caso inglês, que não é passível de generalizações a outras sociedades, inclusive as europeias. Com relação ao caso brasileiro, como mostrou José Murilo de Carvalho (2008), o “percurso da cidadania”, isto é, a ordem do desenvolvimento dos direitos civis, sociais e políticos, ocorreu segundo uma lógica e contin- gências históricas muito diversas às do caso narrado pelo sociólogo britânico. No segundo conjunto destaca-se a crítica ao viés evolucionista e linear, inclusive funcional, em relação à trajetória dos direitos na era moderna, realizada por autores como Bryan Turner e Michael Mann. O terceiro conjunto procura mostrar que a concepção moderna de cidadania sempre esteve atrelada às fronteiras institucionais e culturais do Estado-Nação, o que a torna inade- quada para o contexto globalizado e para dar conta do fenômeno do multiculturalismo, como argumentam autores como Charles Taylor e Will Kymlicka. A dificuldade de equacionar as

crises de desemprego constitui o quarto conjunto de críticas à teoria de Marshall, na medida em que esta se desenvolve no período singular de pleno emprego do pós-guerra, como anali- sado por autores vinculados aos marxismos ou por estudos como o de Robert Castel (2015) sobre a crise da sociedade salarial. Por fim, o quinto conjunto levantado por Silva (2008) se refere às críticas das feministas sobre a ausência da questão de gênero (e raça) na teoria de Marshall. De acordo com Silva, autoras feministas como Nancy Fraser e Linda Gordon ressal- tam que a cidadania social de Marshall trata só do homem branco, pois a concepção tradicio- nal de cidadania social no contexto do Welfare State tende a desconsiderar a função social do trabalho realizado pelas mulheres na esfera privada do lar. Silva destaca o argumento de Iris Marion Young, para quem o “ideal de cidadania universal” deve ser contraposto e superado por uma concepção inclusiva de cidadania, que pode ser descrita como “diferenciada”:

só um conceito de cidadania diferenciada, que leve em consideração a diferença e os interesses de gru- pos, seria capaz de proporcionar uma cidadania plena como a melhor forma de garantir inclusão e parti- cipação de todos. Assim, para o conceito de cidadania diferenciada, os membros de certos grupos de- vem ser incluídos ou incorporados numa determinada comunidade política não apenas como indivíduos, mas também como grupos (Silva, 2008, p. 66).

Esta questão levantada por Young esgarça os limites da dimensão legal da cidadania, pois diz respeito ao problema da dialética entre direito à igualdade e à diferença. Sem dúvidas, este é um dos mais importantes temas para uma teoria crítica da cidadania contemporânea, uma vez que coloca no cerne da definição normativa do status de cidadão e cidadã o reconhe- cimento de igualdade e diferença enquanto pretensões legítimas de equidade. Em outras pala- vras, uma concepção adequada de cidadania ao mundo contemporâneo deve indicar as condi- ções de igualdade onde a diferença for expressão da dominação e, ao mesmo tempo, garantir a diferença onde a igualdade for expressão da dominação. Veremos mais à frente outros deta- lhes sobre esse debate. Antes, passemos a considerar a segunda dimensão da cidadania, que diferente do modelo de status proposto por Marshall, enfatiza o aspecto ativo da cidadania.