• Nenhum resultado encontrado

Sobre o significado da “proteção social” não contributiva como direito de cidadania

PARTE 2 PROTEÇÃO SOCIAL E TERRITORIALIDADE

4.1. Sobre o significado da “proteção social” não contributiva como direito de cidadania

O texto atual da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS)31 afirma como sendo um dos objetivos da assistência social brasileira: “a proteção social, que visa à garantia da vida, à redução de danos e à prevenção da incidência de riscos” dos segmentos mais vulneráveis da sociedade (gestantes, crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiências em precárias condições de sobrevivência).

Na avaliação de Aldaíza Sposati, a inclusão da Assistência Social como política de proteção social não contributiva no texto da Constituição Federal de 1988 representou uma decisão inovadora para ampliação dos direitos humanos e sociais no Brasil. Pela primeira vez o direito à inclusão social, como direito humano inalienável, foi reconhecido no âmbito de ação programática do Estado. Como consequência, foi introduzido o desafio de formular com objetividade a definição do escopo e raio de ação dessa política, por meio de agendas próprias que delimitem a assistência social como direito de cidadania e rompa com a concepção hege- mônica de que se trata de “uma política pobre para os pobres”.

Trata-se de encarar o desafio de superar a crítica à assistência como o lugar da “subci- dadania”, ou da “cidadania invertida”, como afirmou Vera Telles (2013, p.26). Para essa auto- ra, no campo do assistencial, frequentemente, a pobreza se transmuta em “carência”, a justiça em caridade e os direitos em ajuda, estabelecendo uma relação perversa em que o indivíduo acaba tendo acesso à proteção não por sua condição de cidadania, mas pela prova de que dela está excluído. Cria-se a figura do “necessitado” – e não a do cidadão espoliado de seus direi- tos – e a pobreza torna-se um estigma atribuído ao “fracasso” pessoal do indivíduo. O “pobre destituído” passa a ser visto como um “não-sujeito” e as relações sociais tornam-se como que “naturalmente” excludentes. Assim, como também observa Kowarick (2009), a questão da pobreza, enquanto “questão social” – isto é, como o principal problema que “questiona” a capacidade de uma sociedade manter-se coesa – é ideologicamente traduzida em termos de

comiseração e não como processo histórico de negação de direitos ou de “descidadanização”:

a questão social parece, assim, deixar de ser propriamente “questão” – questão política, questão nacional, questão pública – que diz respeito aos direitos como princípios reguladores da economia e da sociedade, para fixar como problema a ser administrado tecnicamente ou então como proble- ma humanitário que interpela a consciência moral de cada um (Telles, 2000, citada por Kowarick, 2009, p.99).

Em decorrência dessas críticas à ação social baseada na solidariedade individual, mas desvinculada da obrigação moral de uma sociedade para com seus membros mais vulneráveis, é que o debate sobre a consolidação da atual política de assistência social tem sido pautado pela afirmação de um “novo paradigma” fundamentado numa concepção emancipadora de cidadania, como vimos na Introdução. Por isso, a definição do modelo de proteção social não contributiva no Brasil permanece como um constante “vir a ser” (Sposati, 2009).

Mesmo reconhecendo que permanece como devir, a construção crítica do conceito de proteção social é importante para análise do movimento real dos serviços socioassistenciais no cotidiano de vida concreto dos cidadãos e cidadãs beneficiários.

Sposati (2009) nos lembra de que a palavra proteção, derivada do latim protectione, supõe a defesa contra a destruição ou alteração de algo ou alguém, remetendo não apenas à conservação, mas à preservação da integridade. Reside, portanto, na ideia de proteção social um caráter preservacionista que diz respeito à vida e remete às ações coletivas de apoio, de guarda, socorro e amparo. Ações que visam garantir um campo de defesa da pessoa humana contra situações de degradação, tais como: humilhação, isolamento, violência, ausência de cuidados, subordinação coercitiva, restrição à liberdade, exclusão, estigma, entre outras ofen- sas à dignidade. Por isso, a proteção social de assistência social não contributiva que se alme- ja construir na política social brasileira deve assumir como principal objetivo a defesa da vida em sentido amplo, especialmente nas situações de vulnerabilidades decorrentes das desprote- ções que começam no mundo do trabalho.

Além de um direito humano inalienável, sentir-se seguro é uma necessidade básica de todo indivíduo que só pode ser satisfeita através das relações com os outros, de modo que a segurança é ao mesmo tempo uma exigência antropológica e uma necessidade social. No en- tanto, quando pensamos na proteção social como ação pública, não é tão simples defini- la.

Enquanto política pública, a proteção social é comumente entendida como um conjun- to de ações redistributivas geridas pelo Estado e voltadas para a provisão e garantia de segu- rança contra vulnerabilidades, além de um bem-estar mínimo à população. Entendida desse modo, segundo Potyara Pereira (2006), a proteção social engloba três elementos: a seguridade

ais. A primeira constitui um sistema programático de segurança contra riscos, circunstâncias,

perdas e danos sociais cujas ocorrências afetam negativamente as condições de vida dos cida- dãos; a segunda refere-se às regulamentações legais que garantem ao cidadão a seguridade social como direito; e as “políticas sociais” – como no caso da Assistência Social – “constitu- em uma espécie de política pública que visa concretizar o direito à seguridade social, por meio de um conjunto de medidas, instituições, profissões, benefícios, serviços e recursos pro- gramáticos e financeiros” (Pereira, 2006, p.16).

Essa definição, contudo, acaba enfatizando apenas o papel dos atores estatais na exe- cução dos sistemas e ações de proteção social. Sabemos que o Estado burocrático moderno é uma instituição complexa que, por um lado, pode ser “disputado” pelas classes trabalhadoras para universalizar políticas de cidadania e, por outro, pode servir à reprodução da violência e da dominação (Manzini-Covre, 2002). Além disso, o “Estado” – assim como o “Mercado” – não é uma instituição valorativamente neutra. Por essa razão, convém levar em consideração o argumento hegeliano da existência de um contexto ético e moral subjacente a toda ação hu- mana quando perscrutamos tanto as condições favoráveis quanto os obstáculos para a objeti- vação da proteção social como direito de cidadania32.

Neste sentido, podemos pensar naquelas contradições que Castel (2015, p. 504) cha- mou de “efeitos perversos” da proteção social. Segundo o autor francês, as intervenções do Estado Social33 têm efeitos homogeneizadores poderosos, colocando a proteção social no cer- ne de uma sociedade de indivíduos:

estabelecendo regulações gerais e fundando direitos objetivos, o Estado Social também aprofunda ainda a distância em relação aos grupos de pertencimento que, em último caso, não têm mais razão de ser para garantir as proteções. (...) A intervenção do Estado permite aos indivíduos esconjurarem os riscos de anomia que, como Durkheim havia visto, existem no desenvolvimento das sociedades industriais. Po- rém, para fazer isso, têm como interlocutor principal – e em caso extremo único – o Estado e seus apa- relhos. A vulnerabilidade do indivíduo, que foi afastada, encontra-se então reconduzida a um outro pla- no. O Estado torna-se seu principal suporte e sua principal proteção, mas essa relação continua sendo a

32

Sobre a dimensão objetiva da moralidade, ver, entre outros, Honneth (2003), Taylor (2013) e Souza (2012). 33

Castel prefere usar a expressão “Estado Social”, ao invés de “Estado Providência”, para se referir ao fenômeno do Welfare State. A esse respeito, convém lembrar a proposta de Esping-Andersen (1991), de diferenciar três “macro-regimes” do Welfare State: o primeiro, liberal, é típico de países como Estados Unidos, Canadá e Aus- trália, no qual os benefícios sociais são direcionados à população de baixa renda, dependente do Estado, enquan- to este encoraja o mercado como principal ator de integração social pelo trabalho; o segundo, chamado corpora-

tivista corresponde à experiência de países como França, Alemanha, Itália e Áustria, onde o edifício estatal foi

construído a ponto de poder substituir o mercado enquanto provedor de benefícios sociais, benefícios estes for- temente ligados à classe e ao status corporativo do mundo do trabalho; por último, o regime social-democrata é referido como uma experiência social típica do pequeno grupo de países escandinavos (Dinamarca, Suécia e Noruega) onde a política social se coloca para além do dualismo Estado e mercado, primando pela redução das desigualdades através da elevação dos padrões médios de qualidade de vida de todos os cidadãos e cidadãs. Esta leitura de Esping-Andersen é interessante para mostrar que o Welfare State assume padrões diferenciados (inclu- sive entre os macro-regimes citados pelo autor) e que seu desenvolvimento e sucesso relativo dependem do mo- do como se configuram as relações entre Estado, mercado e sociedade.

que une um indivíduo a um coletivo abstrato. É possível, pergunta Jürgen Habermas, “produzir novas formas de vida com meios-jurídico-burocráticos?” A receita, se existe, ainda não foi encontrada (Castel, 2015, p. 508).

Também para Habermas (2012) o Estado Social é marcado por uma contradição fun- damental: “garante a liberdade e, ao mesmo tempo, a subtrai” (p. 650). O autor reconhece o progresso histórico do direito ao seguro social em relação ao modo tradicional de lidar com a questão social, mas argumenta que o processo de juridificação dos riscos leva a crescentes interferências no mundo da vida dos sujeitos beneficiados: o “cidadão” torna-se um “cliente”, os riscos são compensados na maioria das vezes de forma monetária e o “tratamento adminis- trativo ministrado por um especialista contradiz, via de regra, a finalidade da terapia, que visa promover a autoatividade e a autonomia do cliente” (p. 653). Habermas chama essa burocra- cia do serviço social de “terapeutocracia”. Observando as consequências do Estado de Bem Estar social europeu e norte-americano, a crítica de Habermas se dirige ao caráter paradoxal deste tipo de juridificação que afeta o mundo da vida e os processos de integração social le- vando à uma relativa privação da liberdade. No entanto, o autor ressalta que tal privação pro- cede não da forma dos direitos sociais, mas do “modo burocrático de sua implementação” (p.655, grifo no original).

Nancy Fraser (2011) faz uma interessante reflexão sobre os limites da proteção social a partir das contribuições do movimento feminista e da obra de Karl Polanyi. Segundo a auto- ra, Polanyi descreve um “duplo movimento” de grande transformação social caracterizada pelo desenvolvimento de mercados “desenraizados” da vida social, típicos do liberalismo, e formas “(re-)enraizadas” das trocas mercantis típicas dos sistemas de proteção social. Fraser aponta para as contradições de cada movimento: as formas mercantis “desenraizadas”, ao mesmo tempo em que tornam as relações impessoais e mediadas exclusivamente pela econo- mia monetária, comportam um aspecto emancipador no que se refere às relações de domina- ção tradicional, como o patriarcado, por exemplo (isto é, a “exposição” da economia dinami- zada favoreceu a ampliação da participação de mulheres em espaços de produção para além do trabalho doméstico); por outro lado, os mercados enraizados, a despeito de promoverem formas de proteção social, podem gerar outras formas de opressão como, por exemplo, a defi- nição de políticas de proteção da família que cristalizam os papeis de homens e mulheres (ao homem correspondendo o papel de “cidadão” público e à mulher cabendo a responsabilidade do cuidado do lar no âmbito privado). Fraser introduz, então, um terceiro eixo analítico – “emancipação” – capaz de tornar a tese de Polayni um “triplo movimento”:

Assim, a proteção social se opõe à exposição e a emancipação se opõe à dominação. Enquanto a prote- ção visa proteger a “sociedade” dos efeitos desintegradores dos mercados não regulados (marchés non

régulés), a emancipação visa jogar luz na dominação de onde quer que ela venha; tanto da sociedade

quanto da economia. Se a ideia principal de proteção é sujeitar as trocas mercantis a normas não eco- nômicas, a da emancipação é a de submeter as trocas mercantis e as normas não mercantilistas a um exame crítico. Enfim, os valores supremos da proteção são a segurança, a estabilidade, e a solidariedade social, enquanto que a prioridade da emancipação é combater a dominação (Fraser, 2011, p. 623).

Podemos então perceber que a proteção social não é crítica per se, assim como as rela- ções econômicas não são somente alienadas ou instrumentais. Em todo caso, o horizonte da emancipação deve estar presente nas ações de proteção social para que seu foco seja o comba- te à dominação. Sabemos que os textos normativos da atual política de assistência social bra- sileira enfatizam esse caráter emancipatório principalmente através da ênfase no polissêmico conceito de cidadania. Mas sabemos também que a aposta exclusiva nas capacidades estatais é insuficiente para promoção da proteção social. Neste sentido, é oportuno buscar uma con- cepção mais abrangente de proteção social que vá além do terreno estatal sem, no entanto, desconsiderá-lo. Assim, é interessante notar que o texto da atual Política Nacional de Assis- tência Social, citando Geraldo Di Giovanni, traz uma definição dos sistemas de proteção soci- al como

as formas – às vezes mais, às vezes menos institucionalizadas – que as sociedades constituem para pro- teger parte ou o conjunto de seus membros. Tais sistemas decorrem de certas vicissitudes da vida natu- ral ou social, tais como a velhice, a doença, o infortúnio e as privações. Incluo neste conceito também tanto as formas seletivas de distribuição e redistribuição de bens materiais (como a comida e o dinheiro) quanto de bens culturais (como os saberes), que permitirão a sobrevivência e a integração, sob várias formas, na vida social. Incluo, ainda, os princípios reguladores e as normas que, com intuito de prote- ção, fazem parte da vida das coletividades” (Di Giovanni, 1998, citado em Brasil, 2005, p. 31).

Essa definição de proteção social parece mais adequada ao propósito de construção de ações críticas no campo dos serviços socioassistenciais, pois enfatiza o caráter preservacionis- ta da proteção e, ao mesmo tempo, a considera um produto histórico das sociedades como um todo – e não apenas do Estado. Isso nos permite passar agora a indagar sobre as relações entre Estado e Sociedade Civil sob outro prisma: o da complementariedade para a execução da

ação pública na área social.