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Cidadania política ou ativa: quando os movimentos sociais entram em cena

PARTE 1 CIDADANIA E RECONHECIMENTO

1.2. Cidadania política ou ativa: quando os movimentos sociais entram em cena

A relação entre cidadania e movimentos sociais é um dos temas mais caros ao debate brasileiro sobre cidadania. A partir da década de 1980 proliferaram textos que buscavam ex- plicar o ressurgimento dos movimentos sociais no cenário político brasileiro e, em meio às lutas contra o regime autoritário da ditadura militar e ao processo de redemocratização do país, as interpretações do período resgataram a conotação intrinsicamente política da cidada- nia quanto ação desses movimentos. Ganhou visibilidade a ideia de “cidadania ativa” presente

em artigos de autoras(es) como Eunice Durham, Evelina Dagnino e Sergio Tavolaro (citados por Silva, 2010), entre outros.

Essa concepção prioriza os processos de luta pelo alargamento da esfera dos direitos e coloca a cidadania como uma estratégia de mudança social. Isto significa,

enfatizar o seu caráter de construção histórica, definida portanto por interesses concretos de luta e pela sua contínua transformação. Significa dizer que não há uma essência única imanente ao conceito de ci- dadania, que o seu conteúdo e seu significado não são universais, não estão definidos e delimitados pre- viamente, mas respondem à dinâmica dos conflitos reais, tais como vividos pela sociedade num deter- minado contexto histórico. Esse conteúdo e significado, portanto, serão sempre definidos pela luta polí- tica (Dagnino, 1994, citada por Silva, 2010, p.102).

Subjaz à concepção ativa da cidadania um postulado basilar positivo sobre a capaci-

dade dos sujeitos de agir no mundo. Isto pressupõe que a condução da vida e a coordenação

das ações guardam algum potencial de transformação da realidade. Como afirmou Hannah Arendt (2010), a capacidade de ação é uma característica ontológica. Também para Habermas (2012), a ação comunicativa e a interação são constitutivas do mundo social (simbólico e ma- terial). Sem entrarmos na discussão filosófica sobre o “agir” (agency) enquanto aspecto ima- nente da busca pela autorrealização humana (Taylor, 2007), vale a pena destacar que nessa perspectiva ser cidadão vai além do mero status ou adscrição de pertencimento a uma deter- minada comunidade, mas supõe desde o princípio a participação nessa comunidade que, não por acaso, é uma comunidade política. Aqui, mais do que os termos pelos quais definimos a cidadania, importa conhecermos os termos que revelam os meios pelo qual a cidadania é exercida.

Autores como Rego e Pinzani (2014), por exemplo, em um estudo sobre os impactos do Programa Bolsa Família no nordeste brasileiro, ressaltam a importância do capability ap-

proach (abordagem das capabilidades) desenvolvido por Amartya Sen e Martha Nussbaum,

para a construção de políticas públicas que não garantam apenas direitos sociais, mas também o “direito a certas capabilidades”, isto é, o reconhecimento de que para usufruir plenamente de um direito de cidadania é necessário distribuir também as condições para o desenvolvi- mento das capacidades e habilidades (daí o termo “capabilidades”) para que os sujeitos pos- sam aparecer no espaço público sem que se sintam envergonhados ou humilhados por sua condição social (de pobreza, de diferença etc.). Neste sentido, as “capabilidades”, enquanto direito real de escolha de vida, assumem a posição de critério para avaliação das políticas pú- blicas no horizonte da justiça social (Rego & Pinzani, 2014, p.78) e da possibilidade de cons- trução de uma “sociedade decente”, no sentido de Margalit (2010).

É como capacidade real de escolha de vida que a capabilidade é promovida à categoria de critério para avaliar a justiça social. (...) O direito a certas capabilidades remete à idéia grega de areté, e não se deve esquecer que ela significa fundamentalmente a excelência da ação. É no nível do alicerce antropológico da idéia de poder agir, de agency, que opera a avaliação de nossas capacidades, subterraneamente ligada à idéia de bem viver. É belo e bom poder agir (Ricoeur, 2006, pp. 158-160).

Considerado esse pano de fundo, podemos compreender melhor a “redefinição” da noção de cidadania proposta por Dagnino (2004) ao analisar os movimentos sociais na década de 198017. A autora utiliza a expressão “nova cidadania” (ou “cidadania ampliada”) para de- signar um conjunto de características das lutas políticas voltadas para a democratização da sociedade, a partir de cinco elementos constitutivos: 1) uma redefinição da ideia de direitos que extrapola os limites da conquista legal e fundamenta-se na concepção arendtiana do “di-

reito a ter direitos”; 2) a constituição de sujeitos sociais ativos, enquanto agentes políticos,

isto é, a nova cidadania como uma estratégia dos “não-cidadãos, dos excluídos”, uma “cida- dania desde baixo”; 3) o direito a participar efetivamente das decisões políticas nas burocraci- as do Estado, de modo a conquistar a possibilidade de efetuar transformações radicais na so- ciedade e na estrutura de relações de poder; 4) a necessidade de transcender o foco privilegia- do da relação entre Estado e indivíduo para incluir fortemente a relação com a sociedade civil; 5) ir além da cidadania como mero pertencimento, reivindicando uma nova sociabilidade, mais igualitária em todos os seus níveis, inclusive das regras e normas para viver em socieda- de: “um formato mais igualitário de relações sociais em todos os níveis implica o ‘reconheci- mento do outro como sujeito portador de interesses válidos e de direitos legítimos’” (Dagnino, 2004, p.105).

O projeto de cidadania ampliada descrito por Dagnino implica, como a autora não dei- xa de observar, uma reforma moral e cognitiva, em outras palavras, “um processo de aprendi- zagem social” que a partir do nível das interações comunicativas implicam a “constituição de cidadãos como sujeitos sociais ativos” (Dagnino, 2004, p.105). Nesta perspectiva, a cidadania ativa é essencialmente política e este elemento se sobrepõe a um quadro definido de categori- as de direitos, ou seja, a dimensão política da cidadania está voltada para o alargamento das possibilidades de ser no mundo e, consequentemente, da ampliação do horizonte ético da so- ciedade a partir do reconhecimento da legitimidade do conflito.

No entanto, o conceito de cidadania revela-se ainda suficientemente amplo e complexo para ir além das dimensões legal e política e nos colocar uma problemática “psicológica”, ou melhor, identitária, relacionada ao (auto-)reconhecimento dos indivíduos como sujeitos.