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3 O PODER QUE EMANA DO POVO: INTRUMENTOS, PARTICIPAÇÃO E

3.1 Ação Pública e Instrumentos de Gestão

Para melhor compreensão da abordagem feita neste trabalho, faz-se imprescindível a explicação de duas colocações: a de ação pública e de instrumento de gestão.

Acredita-se que os modelos que são utilizados nas vertentes clássicas de estudo e de execução da Administração Pública já se encontram defasados e não conseguem contemplar com clareza os novos arranjos que se fazem cada vez mais presentes neste século. Assim, substitui-se essa estrutura centralizada e altamente hierarquizada por uma estrutura mais descentralizada e que coloca a transversalidade como elemento cooperativo dos entes da Administração Pública.

18 Tradução nossa. No original: In the modern state, a self-ruling people consists of all those and only those who are both authors and subjects of the law. In this sense, the People are a supreme sovereign, as it is often expressed in constitutions.

Neste diapasão, coloca-se a definição da ação pública, em substituição ao termo política pública dado o surgimento e maior envolvimento interativo entre os atores sociais, não só inseridos na ótica governamental.

Esse conjunto de interações que tem, pouco a pouco, substituído a expressão políticas públicas por ação pública, considerada mais adequada para definir o fenômeno contemporâneo. Políticas públicas têm abrangência mais restrita na medida em que implicam exclusivamente a intervenção do Estado, ações governamentais, atuação setorial das atividades etc. Ação pública, por sua vez, se aplica não só à atuação da Administração Estatal, mas também a de outros atores públicos ou privados originários da sociedade civil, que agem conjuntamente em busca de objetivos comuns, sobretudo a efetivação dos direitos sociais (SARMENTO, 2012, p. 13).

Aproveita-se para esclarecer que neste trabalho, devido ao costume ainda recorrente de se dizer “política pública” quando se quer tratar de “ação pública”, os termos são utilizados como equivalentes. A identificação da política pública, e a quebra deste paradigma, em seu escopo mais amplo de ação pública é uma construção lenta e gradual. Por isso optou-se por essa escolha.

No campo de análise deste estudo, são diversos os elementos que podem ser entendidos pelo viés da ação pública. A questão da promoção da participação é apenas parte deste processo de entendimento de arranjos federativos.

E o mais intrigante é que em tais Estados [compostos], como sobejamente refere a doutrina, é praticamente impossível que a prossecução de uma política pública resulte da escolha de um só actor, isto é, cada unidade decisória deve ter em conta as estratégias seguidas pelas demais, por que as decisões tomadas por cada ente

governativo inserem-se inevitavelmente num sistema decisório global (Francesc Morata) (SILVEIRA, 2007, p. 10).

A análise da ação pública através da instrumentação permite que seja possível a flexibilização da aplicação da política. A alteração do instrumento pode, por exemplo, acarretar na alteração do seu objeto sem modificar seu público (LASCOUMES, LE GALÈS, 2012).

Lascoumes e Le Galès (2012b, p. 20) colocam que a instrumentação da ação pública é “o conjunto dos problemas colocados pela escolha e o uso dos instrumentos (técnicas, meios de operar, dispositivos) que permite, materializar e operacionalizar a ação governamental”.

Apesar da multiplicidade de perspectivas e de aplicações que os instrumentos podem ter, a sua composição pressupõe a existência de três elementos: substrato técnico, representação esquemática de organização e filosofia gestionária (Ibidem). Neste mesmo

sentido, “Um instrumento de ação pública constitui um dispositivo que ao mesmo tempo técnico e social que organiza relações sociais específicas entre o poder público e seus destinatários em função das representações e das significações das quais é portador” (Ibidem, p. 21).

O Instrumento seria “um dispositivo técnico com vocação genérica portador de uma concepção concreta da relação política/sociedade e sustentado por uma concepção da regulação” (LASCOUMES, LE GALÈS, 2012a, p. 22).

Diferentemente de outras abordagens que usam os termos como sinônimos, Lascoumes e Le Galès atribuem significados diferentes para instrumento técnica e ferramenta.

O instrumento é um tipo de instituição social (o recenseamento, a cartografia, a regulação, a taxação, etc.); a técnica é um dispositivo concreto que operacionaliza o instrumento ( a nomenclatura estatística, a escala de definição, o tipo de figuração, o tipo de lei ou o decreto); finalmente, a ferramenta é um micro dispositivo dentro de uma técnica (a categoria estatística, a escala de definição da carta, o tipo de obrigação previsto por um texto, uma equação calculando um índice)” (LASCOUMES, LE GALÈS, 2012b, p. 22).

Estudar instrumento de gestão não se restringe à concepção do artefato, mas abrange os efeitos de seu uso no mundo concreto. Assim, a escolha do instrumento não é neutra (AGGERI, LABATUT, 2001).

Pensar através do instrumento, também, permite que os aspectos que envolvem a implementação de uma política não perpassem substancialmente no campo político. A instrumentação da ação pública atua na construção teórica da relação entre governante e governado (LASCOUMES, LE GALÈS, 2012a).

A descentralização e as dinâmicas que ela induz em termos de gestão territorializada e contratualizada são erroneamente na maior parte das vezes percebidas como uma fragmentação da ação pública e um recuo do Estado. Um movimento inverso de recentralização se observa em médio prazo através das atividades de designação, de delimitação e de tratamentos dos desafios via instrumentos dotados de quase- automaticidade” (LASCOUME, LE GALÈS, 2012a, p .37).

Lascoumes e Le Galès (2012a) classificam os instrumentos em quatro distintas categorias: legislativo e regulador; econômico e fiscal; convenção e incentivo; e informativo e de comunicação. Neste sentido:

O essencial dos trabalhos de política pública consagrados à questão da instrumentação é marcado por uma forte orientação funcionalista que se caracteriza por quatro traços:

- a ação pública é fundamentalmente concebida em um sentido pragmático, isto é como um procedimento político-técnico de resolução de problemas por meio de instrumentos;

- raciocina-se em termos de naturalidades desses instrumentos que são considerados como estando à disposição” e que não põem questões em termos de melhor adequação possível aos objetivos fixados;

- a questão da eficácia dos instrumentos é a problemática central. Os trabalhos sobre a operação das políticas consagram uma grande parte de suas investigações à análise de pertinência dos instrumentos e à avaliação dos efeitos criados;

- face às lacunas faz ferramentas clássicas, e sempre em uma direção pragmática, a pesquisa de novos instrumentos é, muito frequentemente, considerada, seja por oferecer um ramo de alternativa aos instrumentos habituais (cujos limites foram demonstrados por numerosos trabalhos sobre a operação), seja por conceber meta- instrumentos permitindo uma coordenação dos instrumentos tradicionais (planejamento, esquema de organização, convênio)” (LASCOUMES, LE GALÈS, 2012b, p. 33).

Trazendo para a questão brasileira, neste contexto:

podemos definir os institutos jurídicos de participação popular na Administração, em traços gerais, como instrumentos legalmente previstos que possibilitem aos administrados, diretamente, ou através de representantes escolhidos especificamente para este fim, tomar parte na deliberação na execução ou no controle das atividades desenvolvidas pela Administração Pública, com o objetivo de tornar a atuação administrativa mais eficiente, e dar efetividade aos direitos fundamentais, por meio da colaboração entre a sociedade e a Administração, da busca de adesão, do consentimento e do consenso dos administrados e, afinal, da abertura e transparência dos processos decisórios (PEREZ, 2004, p. 96) (SANTOS, 2014, p. 441).

A concepção de instrumentos de gestão perpassa, no enredo desta dissertação, pela ideia de construção de espaços deliberativos como da participação em si: “Dessa maneira, a participação se define como um “instrumento” de gestão que contribui para a adequação das estratégias de desenvolvimento, cuja difusão deve ser cuidadosamente avaliada de acordo com as capacidades e as necessidades de cada comunidade” (ECHAVARRIA, 2013, p. 361). A ideia de ação pública e o conceito de instrumentação da ação pública perpassam ao longo desta dissertação como elementos chaves, interligando os conceitos apresentados de participação, deliberação, democracia e gestão no arranjo federativo.

Tem-se, como exemplo, a colocação dos Conselhos Nacionais como fóruns híbridos caracterizados por Cruz (2017) como Ação Pública Transversal e Participativa.

A aproximação do conceito de dinâmica transversal ao conceito de fóruns híbridos traz consigo o aporte de que, ao mesmo tempo que os fóruns híbridos são transversais, as ações públicas transversais, para serem democráticas, requerem fóruns híbridos e seus procedimentos dialógicos (CRUZ, 2017, p. 66-67).

A federação atua com a existência de pelo menos duas esferas de poder, representando, assim, pelo menos dois atores que possuem interesses comuns e concorrentes,

além dos interesses da população que em certos casos são adversos aos propósitos dos governantes. No caso brasileiro, além dos três níveis federativos, a ampliação de mecanismos de participação multiplicou a quantidade de atores envolvidos com a Administração Pública e na construção de um Estado democrático.

Devido à falta de neutralidade da escolha do instrumento de ação pública, a criação, ampliação e consolidação desses mecanismos participativos, como espaços deliberativos que envolvem mais de um ator social, representam o compromisso do Estado brasileiro, consolidado na escrita do constituinte do texto maior vigente, em aprofundar as características democráticas do país.

Assim, estabelece-se o laço entre gestão participativa e federalismo, através do propósito da ampliação da participação, da descentralização e da democracia brasileira.