• Nenhum resultado encontrado

3 O PODER QUE EMANA DO POVO: INTRUMENTOS, PARTICIPAÇÃO E

3.2 Participação, deliberação e democracia

A partir do compromisso firmado pelos governantes na Constituição Cidadã, o provimento de serviços e garantias de direitos humanos tidos como fundamentais se insere nesta lógica de descentralização dos órgãos e das estruturas de poder. Devido às assimetrias regionais de um país tão vasto, pensar as políticas públicas como uniformes para toda a extensão territorial é incorrer em uma homogeneização antidemocrática e antirrepresentativa.

Participação e democracia são conceitos extremamente interligados principalmente para autores como Archon Fung (2006). O autor defende a criação de uma teoria que trate sobre a forma de participação nos governos atuais. Na democracia moderna, não há uma forma definida de como deve ser feita a participação, tomando como base o governo grego de Atenas.

Fung (2006) coloca que existem três dimensões distintas que podem variar nos processos de participação direta. O primeiro se refere a quem participa. Enquanto em algumas arenas a participação é averta, disponível para todos os públicos, em alguns casos os participantes são específicos, como representantes de grupos de interesses. A segunda dimensão trata sobre como os participantes trocam informação e conhecimento e tomam decisões. Enquanto que em grande parte das arenas participantes apenas recebem informações e explicações oficiais, alguns poucos espaços possuem caráter realmente deliberativo, onde podem tomar partido, explicar as razões e mudar de opinião. A terceira

dimensão diz respeito sobre a correlação entre as discussões e a ação pública efetiva. Essas dimensões determinam a capacidade e as limitações da forma de participação. Esses três aspectos são chamados por Secchi (2015), respectivamente, de acessibilidade, tipo de interação e grau de influência.

Colocando essas três dimensões de seleção dos participantes, modo de comunicação e extensão da influência, produz-se um espaço tridimensional – um cubo da democracia – de escolhas de desenho institucional segundo as quais variáveis de mecanismo participativos podem ser localizados e contrastados com arranjos mais profissionalizados19 (FUNG, 2006, p. 70).

Democracia representativa não corresponde ao significado de soberania popular, devido à “assimetria de informações, deliberada ou não, entre representantes e representados, de insuficiências de capacidade cognitiva dos atores e da imperfeição dos instrumentos de sanção destinados a controlar a relação de representação” (GOMES, 2015, p. 897).

Sobre deliberação democrática, Almeida e Cunha (2011) colocam:

Alguns conselhos integram sistemas nacionaos de participação e deliberação complexos, em que a deliberação ocorre em instâncias nas quais prevalece a participação (fóruns de organizações da sociedade civil), a negociação (comissões intergestores), o debate e a decisão (conselhos e as conferências), a representação eleitoral (casas legislativas) e a articulação (rede de instituições governamentais e da sociedade civil), como nas áreas de saúde e da assistência social (CUNHA, 2009; HENDRIKS, 2006).

A natureza deliberativa desses arranjos institucionais indica que eles tenham a função normativa de debater, decidir e controlar a política pública à qual estão vinculados, ou seja, que apresentam o potencial de propor e/ou alterar o formato e o conteúdo de políticas e, com isto, suas deliberações incidem diretamente sobre a (re)distribuição de recursos públicos (ALMEIDA, CUNHA, 2011, p. 109).

Para Chambers (2012, p. 60), “não há nada particularmente democrático sobre a deliberação. Um só indivíduo, uma oligarquia ou um déspota pode deliberar. (...) Deliberação é democrática quando é realizada por um grupo de iguais confrontados com uma decisão coletiva20”. É neste ponto que se ressalta a importância da estruturação

federalista brasileira em três níveis, pois com o Município dotado de autonomia municipal, os entes são tratados como iguais no processo deliberativo conjunto.

19 Tradução nossa. No original: Putting these three dimensions of participant selection, communicative mode, and extent of influence yields a three-dimensional space – a democracy cube – of institutional design choices according to which varieties of participatory mechanisms can be located and contrasted with more professionalized arrangements.

20 Tradução nossa. No original: There is nothing particularly democratic about deliberation. A solitary individual, an oligarchy, or a despot can deliberate. So what makes deliberation democratic? Deliberation is democratic when it is undertaken by a group of equals faced with a collective decision.

A demanda pós abertura democrática brasileira de instituições participativas criou espaços híbridos com presença de atores estatais e de atores da sociedade civil na constituição de políticas nas áreas de assistência social, saúde, meio ambiente e espaço urbano. Desde a previsão destes espaços, a quantidade de representantes da sociedade civil cresceu substancialmente.

A representação destes atores da sociedade civil, no entanto, é diferente daquela exercida por representantes eleitos, como no caso dos parlamentares, por não haver uma necessidade de autorização explícita para a representação e por não haver limitação no que se refere aos contornos territoriais (AVRITZER, 2007). O autor (ibidem) traz uma análise interessante sobre as formas de representação na política contemporânea:

Quadro 2 - Formas de representação na política contemporânea Tipo de Representação Relação com o Representado Forma de Legitimidade da Representação Sentido da Representação Eleitoral Autorização através

do voto

Pelo processo Representação de pessoas Advocacia Identificação com a

condição

Pela finalidade Representação de discursos e ideias Representação da sociedade civil Autorização dos atores com experiência no tema

Pela finalidade e pelo processo

Representação de temas e experiências

Fonte: Avritizer, 2007, p. 458. Adaptado pela autora.

Neste contexto, é inegável o brilhantismo de Brugué, Canal e Paya (2015) de atentar para o aumento da complexidade dos problemas enfrentados pela Administração Pública e a simplicidade da Administração Pública. Para os autores, para problemas malditos, que apresentam caráter multidimensional, precisa-se de inteligência na Administração para se encontrar soluções também multidimensionais. É nesta perspectiva que se revela novamente a criação de espaços de deliberação conjunta, aumentando a probabilidade de resolução dos problemas ao ter atores que encaram o mesmo problema com perspectivas diferentes.

A análise das arenas públicas permite avaliar a construção e a representação da democracia a partir dos atores envolvidos (CRUZ, FREIRE, 2003). Como forma de conter a discricionariedade da política pública governamental, por ora pautada cegamente pelo

conceito de eficiência, a repartição dos processos de política pública a outros atores sociais reflete no aumento da credibilidade da ação. “De forma geral, a heterogeneidade dos atores e formas de mobilização é de tal ordem que torna difícil abordar a execução de um programa (seja qual for sua origem) sem passar por uma caracterização das configurações locais” (LASCOUMES, LE GALÈS, 2012a, p. 87-88). Assim, ressalta-se a importância de desenvolver políticas que possuam caráter participativo, implementando confiança aos desdobramentos das tomadas de decisão da Administração Pública (SOUZA, 2006).

Há vantagens e riscos em institucionalizar-se a participação. A adoção de legislação não garante que a participação dos cidadãos ocorra de falto nem garante sua qualidade e seus resultados. Contudo, ela é um reconhecimento à importância da participação, fornece um marco normativo que garante arranjos participativos e autonomia em relação à discricionariedade dos governantes (FILGUEIRAS, 2015, p. 653. GRIFO NOSSO).

É neste enquadramento que se entende que a mera existência destes espaços contribui de forma significativa para a construção participativa brasileira. O aumento de mecanismos participativos não se dá somente pelo caráter qualitativo das discussões, negociações e pactuações estabelecidas, mas o fator quantitativo é demonstrativo de que a existência destes espaços já traduz a força de discutir, deliberar e gerar resultados que influenciam tanto a gestão quanto a implementação de políticas públicas.

Neste cenário, Papadopoulos e Warin (2007) advertem para o crescente número de inovação de participação nos últimos anos em diversos países, como inquéritos políticos ou leis de acesso à informação, incluindo meios de participação em mediação com terceiros interessados. Para os autores, as inovações de participação são vistas como tendência no avanço da democracia contemporânea.

Trazendo para a conjuntura brasileira, Fonseca (2007) aponta que houve uma grande reforma institucional desde 1988, fruto das lutas ocorridas desde a década de 1970, que conteve como elementos pontuais a descentralização, reconfigurando o pacto federativo; a participação popular, tanto de conselhos gestores e a participação direta; e o fortalecimento da cidadania em seu sentido universal. Para o autor, “as palavras chaves que sintetizam a Constituição, no espírito de uma verdadeira (re)fundação da República, são descentralização; participação popular; incorporação na vida política das associações civis; revalorização da ação pública; e cidadania” (Ibidem, p. 247).

Entre a relação entre descentralização e participação temos que “a descentralização e os governos locais estão estreitamente associados à temática da participação. Motivos

importantes são a proximidade e relacionamento direto com os cidadãos” (FILGUEIRAS, 2015, p. 653).

Diante deste cenário de elaboração de instrumentos participativos, seguindo os princípios de descentralização e participação no arranjo federativo brasileiro, a implementação da gestão participativa na Administração Pública brasileira ainda ocorre, e se põe como instrumento de ação pública e gestão cada vez mais consolidado.