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3 O PODER QUE EMANA DO POVO: INTRUMENTOS, PARTICIPAÇÃO E

3.3 Participação e gestão participativa no Brasil

O federalismo brasileiro, composto pelas três esferas de poder, corresponde a uma demanda popular antiga, de ampliação da participação popular na construção das políticas públicas.

O fracasso das políticas públicas extremamente centralizadas, principalmente aquelas de modelo top down, pode ser analisado a partir de sua recorrente inefetividade, ineficácia e ineficiência (LASCOUMES, LE GALÈS, 2012a).

A ampliação da participação e da deliberação em espaços públicos formais e informais afeta positivamente a questão da igualdade formal. Uma vez que a legitimidade das leis e da política deriva não só do status social dos participantes, mas também da “força do melhor argumento”. A prática discursiva pode, assim, servir de escala comparativa para que se avalie em que medida a participação está assentada em hierarquias sociais e políticas ou na contestação de um público organizado em bases sociais pela força do dinheiro e do poder.

Ao elaborarem razões e justificativas para solucionar problemas comuns, os cidadãos participantes se apropriam das leis e das políticas que os vinculam. Políticas que envolvam ambas as dimensões capacitam os cidadãos a julgar de forma mais informada e autônoma as diversas fases – formulação, implementação e gestão – das políticas públicas (FARIA, 2015, p. 235).

Com o intuito de promoção da participação social nas políticas públicas, coadunando com a multiplicação de mecanismos de participação, houve uma ampliação da quantidade de esferas de gestão participativa no âmbito da Administração brasileira. Se há um elemento que assegura a participação social, este mecanismo é a gestão participativa.

Os instrumentos de gestão democrática instituídos, como, por exemplo, os conselhos setoriais, e os fóruns de desenvolvimento local, foram criados com base no discurso acerca da importância da participação da população na gestão pública. O que se verifica é que a participação, no caso brasileiro, tornou-se, atualmente, um discurso recorrente, de modo que o Estado vem, cada vez mais, explicitando que precisa da colaboração da sociedade civil para superar problemas de políticas públicas. Assim, a interação entre governo e sociedade civil significaria, na prática, a distribuição de responsabilidades (accountabilities) (CRUZ, FREIRE, 2003, p. 85-86).

A conceituação de gestão participativa não é unânime, já que não existe uma fórmula universal que caracteriza a sua existência. Sua prerrogativa é que todos os seus processos sejam realizados de forma participativa e democrática. De toda forma:

Por gestão participativa entende-se a estratégia transversal que objetiva agregar legitimidade às ações de governo, de forma a assegurar a inclusão de novos atores políticos e possibilitar a escuta das necessidades por meio da interlocução com usuários e entidades da sociedade (BEZERRA et al., 2012, p. 884).

Gestão participativa é uma modalidade de gestão que se apoia no pressuposto de que a participação dos cidadãos contribui para o aperfeiçoamento da gestão pública e deve ser incorporada em algum nível dos processos que envolvem a formulação e o controle social de políticas públicas (STANISCI, 2015, p. 402).

Se de um lado existe a questão da descentralização até o nível de menor organização, tanto no campo da política quanto no campo da gestão, o texto constitucional foi inovador no sentido de instituir aparatos responsáveis pela promoção da democracia e da cidadania.

A Constituição, ao longo de seu texto, instaura mecanismos para a promoção da participação popular, principalmente na questão das políticas sociais. Com efeito, a CF/88 concede, em seu artigo 5o, que lista uma gama de direitos fundamentais, “instrumentos como

a própria ação popular, (CF/88, Art. 5o., LXXIII), as audiências públicas, as consultas

públicas, o direito de petição (CF/88, Art. 5o., XXXIII), o direito de informação junto aos

órgãos públicos (CF/88, Art. 5o., XXXIV)” (MENEZES, 2005, p. 2). No mesmo sentido,

têm-se a previsão de se exercer a soberania popular por meio de plebiscito, referendo e iniciativa popular (art. 14); a iniciativa popular no processo legislativo estadual (Art. 27, § 4o), a cooperação das associações representativas e da iniciativa popular em projetos de lei

municipais (Art. 29, XII e XIII); iniciativa popular de apresentação de projeto de lei na Câmara dos Deputados (Art. 61, § 2o); a gestão quadripartite na organização da seguridade

social (Art. 194, VII); a descentralização político-administrativa e participação da população na área de assistência social (Art. 204, I, II); e a participação de entidades não governamentais nos programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem (Art. 227, § 1o) (AVRITZER, PEREIRA, 2010). Acrescido dos mecanismos

apontamos pelos autores supracitados, têm-se as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta (Art. 37, § 3o, I, II, III); a participação do setor de

produção na política agrícola (Art. 187); as diretrizes do Sistema Único de Saúde (Art. 198, I, II); a forma descentralizada e participativa do Sistema Nacional de Cultura (Art. 216-A);

e, por fim, o Art. 82 do ADCT21, sobre a instituição dos Fundos de Combate à Pobreza

(BRASIL, 1988).

Avritzer (2012) coloca que as formas de organização da sociedade civil após a CF/88 se deu primeiramente nos grandes núcleos urbanos principalmente nas regiões sul e sudeste, partindo, posteriormente, para as áreas interioranas. Destaca-se, também, o surgimento, desde a década de 1990, de Organizações Não Governamentais (ONGs), que participaram na construção da autonomia da sociedade civil na redemocratização.

Sobre as Instituições Participativas (IPs), decorre:

As IPs são resultado da ação da sociedade civil brasileira durante o processo constituinte que resultou em um conjunto de artigos prevendo a participação social nas políticas públicas nas áreas de saúde, assistência social, criança e adolescente, políticas urbanas e meio ambiente. Esse padrão modificou fortemente a ideia de autonomia da sociedade uma vez que, por mais paradoxal que pareça, a sociedade civil que reivindicou a sua autonomia em relação ao Estado foi a mesma que reivindicou arranjos híbridos com a sua participação junto aos atores estatais durante a Assembleia Nacional Constituinte. A maior parte das IPs tem a sua origem nos capítulos das políticas sociais da Constituição de 1988. Essa foi uma das formas de participação no nível local, tais como conselhos e as formas de participação incipientes no nível federal durante os anos 1990 (AVRITZER, 2012, p. 10-11).

Em outro momento, Avritzer e Pereira (2005) colocam que o grande avanço em termos de participação foi a inclusão dos espaços híbridos e da participação no ordenamento legal, principalmente no texto constitucional, transformando principalmente a atuação do poder local (municipal). Primeiramente, o município ganha mais autonomia, envolvendo, por exemplo, as comunidades no processo de deliberação das políticas sociais, ampliando a gestão democrática.

Mesmo que na atuação em conselhos haja a representação por conselheiros, há uma grande diferenciação da representação realizada por parlamentares, haja vista que: por não assumir uma profissão de representante, não há um desequilíbrio da distribuição de informações na relação representante e representado; por não serem cargos remunerados e de grande visibilidade, ocupam os cargos pessoas que não possuem interesses individuais; a curta duração dos mandatos implica em maior responsabilidade; por ser de âmbito municipal, há um maior contato com a comunidade na avaliação das políticas; auxilia na

21 O Ato de Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) tem por finalidade o estabelecimento de normas de transição entre um antigo e um novo regimento. “Em essência, as disposições transitórias, como o próprio nome já sinaliza, exercem o papel de acomodação e transição do ordenamento jurídico anterior com a nova ordem constitucional. Por natureza, portanto, diante de usa eficácia temporária (essa a ideia das disposições de transição), após produzirem os seus efeitos, ou diante do advento da condição ou termo estabelecidos, esgotam-se, tornando-se normas de eficácia exaurida” (LENZA, 2013).

promoção da participação ativa dos cidadãos; não há interferência maciça da mídia; por serem temáticos ou setoriais, há como o representado acompanhar a performance do representante; e há como relacionar diretamente a ação do conselheiro com a política pública formulada e executada (GOMES, 2015). “Estes [Conselhos populares], quando funcionam, representam importantes espaços de participação popular, superando assim a lógica estritamente institucional da democracia parlamentar” (FONSECA, 2007, p. 252). Esses fatores revestem a atuação dos conselhos de legitimidade.

Ou seja, por meio da deliberação nos conselhos é possível, por um lado, aprimorar o método democrático de tomada de decisão, baseado nas considerações sobre melhor distribuição da informação e o aprimoramento da capacidade de interpretação e julgamento destas por meio da argumentação. Por outro lado, essa deliberação democrática pode levar a melhores resultados devido à maior facilidade de obter uma concertação de interesses, que não tem necessariamente a pretensão de atingir um consenso ou revelar uma concertação de interesses, que não tem necessariamente a pretensão de atingir um consenso ou revelar um improvável “bem comum”, mas que qualifica e viabiliza a tomada de decisões coletivas (GOMES, 2015, p. 903).

Conselhos podem também serem entendidos como “espaços inovadores de formulação e acompanhamento das políticas públicas” (MOURA, LACERDA, ALMEIDA, 2011, p. 118).

O primeiro conselho interestadual foi o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), inaugurado em 1975 (SANO, ABRUCIO, 2013).

Gomes (2015) define conselho gestor de política pública “como um colegiado institucionalizado, municipal, composto por pequeno número de representantes do governo e da sociedade civil, estes designados democraticamente, que é responsável pela gestão de determinada política pública” (GOMES, 2015, p. 895).

Pontua, ainda, que os conselhos são enquadrados tanto na democracia representativa, já que conselheiros são representantes, quanto da democracia deliberativa, uma vez que se trata de um mecanismo colegiado de gestão (Ibidem).

Gomes (2015, p. 904) aponta como objetivos principais da atuação dos conselhos “a identificação, captação e ponderação constante das preferências da sociedade, com vistas à formulação de políticas pública e o controle social sobre estas, incluindo a responsabilidade às demandas da sociedade e a responsabilização dos governantes”. Conclui, assim, que os conselhos municipais são formas interessantes de exercer o controle social.

No entanto, cabe reconhecer que ao menos uma etapa do ciclo de gestão pode ficar parcialmente prejudicada: o estabelecimento de ações corretivas e preventivas mais

drásticas aos comportamentos desviantes. Isto é, a utilização de mecanismos mais rigorosos de sanção pelos conselheiros pode ser limitada, no âmbito dos conselhos, por pelo menos quatro motivos: sua inexistência institucional; o fato dos conselheiros da sociedade civil serem corresponsáveis pelos desvios; a paralisia que pode trazer ao governo; e o efeito negativo que isso implicaria na relação cooperativa do conselho (GOMES, 2015, p. 905-906).

O histórico das Conferências Nacionais se inicia no governo Vargas, especificamente em 1940 com a 1a Conferência Nacional de Saúde. Desde a Constituição de 1988, as

Conferências Nacionais de Saúde e Assistência Social ganharam status constitucional, e o rol de Conferências Nacionais cresceu vertiginosamente desde o primeiro governo Lula, indicando uma orientação voltada para a participação, tornando-se a principal estratégia participativa do governo federal (AVRITZER, 2012). No mesmo caminho, Pogrebinschi e Samuels (2014) colocam que diversas organizações de sociedade civil atuaram positivamente na implementação de mecanismos de participação na Constituição de 1988, que foram ampliados em quantidade e qualidade, principalmente na esfera federal, com as Conferências Nacionais de Políticas Públicas, desde 2003.

Analisando os dados de uma pesquisa realizada em parceira com a Vox Populi, Avritzer chega à conclusão que uma parte expressiva da população brasileira participa dos espaços participativos institucionalizados (4,3%), como orçamentos participativos e conselhos municipais. Conclui, também, que o padrão participativo das Conferências Nacionais não difere muito do padrão das pessoas encontradas no nível local. No mesmo sentido, os dados apresentam que há uma maior participação da sociedade nos níveis regionais e municipais do que nos níveis estaduais e nacional (AVRITZER, 2012), o que ressalta novamente a importância do senso de comunidade dos governos municipais.

Por fim, Avritzer (2012) chega a três conclusões. A primeira é que há uma homogeneidade entre as Conferências nos três níveis, já que o padrão de participação é muito similar ao padrão em nível local. Em segundo lugar, os participantes das Conferências Nacionais acreditam que há deliberação nas reuniões, com fortes debates entre os atores, o que não acontecia anteriormente. Em relação à efetividade:

Os dados apontam para algum elemento de efetividade, mas apontam também para fortes lacunas. Estas lacunas são provocadas pelo fato de ainda não haver uma forma de gestão que se articule claramente com as decisões das conferências nacionais. Assim, as áreas com maior tradição de participação e que têm conselhos bem estruturados têm sido capazes de dar consequência às decisões das conferências. Em outras áreas é muito mais difícil e nuançado o quadro. A questão da efetividade das políticas participativas no plano nacional continuará, a meu ver, dependente da

implementação de arranjos capazes de integrar participação e gestão (AVRITZER, 2012, p. 22).

Para o sociólogo, apesar destas similitudes encontradas nas esferas nacionais e locais, existe uma diferença nítida a respeito dos efeitos que as discussões que se estabelecem nesses espaços deliberativos têm. Na esfera federal, as discussões impulsionam a atuação do poder legislativo em discutir a matéria deliberada, atuando diretamente nos instrumentos normativos brasileiros, com apresentação de propostas de projetos de lei que serão submetidos ao Congresso Nacional e que impactam o Executivo tanto na gestão quanto na alteração do ordenamento jurídico. No âmbito local, as discussões se orientam de forma a debater a implementação de certas políticas públicas, de acordo com a demanda (AVRITZER, 2012).

Neste sentido, vale a pena pensar, tal como fizeram Pogrebinschi et al. (2010), a efetividade enquanto incluindo a apresentação de projetos de lei no congresso. São estes últimos que são capazes de dar uma nova dimensão normativa a determinadas políticas e mostra que o executivo reage às conferências nacionais em duas dimensões, na dimensão da gestão e na dimensão da modificação normativa que seja capaz de alterar o escopo de uma determinada política (Ibidem, p. 20).

Decorrente do modelo adotado atualmente no Brasil, a participação social encontra mais maneiras de ser efetivada. É incontestável que a arena que mais é exitosa na consolidação dos mecanismos de participação popular seja o Município, exaltando novamente o conceito de democracia. No mesmo sentido, a participação dentro da gestão torna-se uma maneira de equilibrar a falta de representatividade no Congresso Nacional brasileiro.

No que tange aos municípios – locus da participação popular e da democracia semidireta, tal como intentada pelos constituintes de 1988 –, o aumento exponencial em seu número, após 1988 (foram criados cerca de 40% a mais), com todo o aparato executivo/legislativo das grandes cidades, torna a existência da maior parte deles completamente dependente dos repasses federais, o chamado Fundo de Participação dos Municípios. Em outras palavras, novos poderes e institucionalidades federativos concedidos aos municípios tornam sua aplicabilidade extremamente dificultada por toda sorte de obstáculos e constrangimentos provenientes: do capitalismo mundializado, das entidades multilaterais (ambos direcionam o papel dos municípios), dos limites fiscais, e também institucionais, em razão da ausência de prerrogativas aos municípios por decisões interpostas pelo TSE e pelo Congresso Nacional. Tudo isso afeita, de diversas formas, a democracia e a participação no Brasil que, a despeito desse conjunto de constrangimentos, vêm avançando, embora num ritmo e numa dimensão aquém do esperado (FONSECA, 2007, p. 250).

Neste diapasão, é novamente no Município que vão estar mais consolidados os elementos de participação, por conta da maior proximidade de governantes e governados,

pelo sentimento de comunidade que se aflora no Município e pela preservação cultural que pode ser entendida nas comunidades municipais.

Os casos de instituições de caráter híbrido, confirmando este entendimento, são mais numerosos na esfera municipal do que na esfera estadual ou federal. O Município, menor unidade federativa autônoma, desempenha papel fundamental para a consolidação da participação como fundamento democrático e para que as esferas superiores consigam entender as necessidades reveladas por essas comunidades, retratando o processo de cooperação que deve se estabelecer na articulação interfederativa.