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O simbolismo da água

IV. 1.1 O simbolismo religioso

IV. 1.1.1 A água como fonte de vida

O simbolismo da água como fonte de vida abrange inúmeros significados: origem e fonte de vida, fertilidade, cosmogonia e sabedoria. Como uma massa indiferenciada, que representa a “infinidade dos possíveis”, contém o virtual, o informal, o germe dos germes e promessas de desenvolvimento242. Nos planos espiritual e corporal, exalta significantes de vida, força e pureza, caos indiferenciado primordial, ou matéria-prima da criação. “Nas tradições judaica e cristã, a água simboliza, em primeiro lugar, a origem e a criação. (...) Fonte de todas as coisas, manifesta o transcendente e deve ser, em conseqüência, considerada como uma hierofania243”. É ainda a origem e o veículo de toda vida, o sopro vital (prana), símbolo universal de fertilidade e fecundidade. “A água viva, a água da vida se apresenta como um símbolo cosmogônico. E porque ela cura, purifica e rejuvenesce, conduz ao eterno244”.

Bachelard aponta que águas superficiais materializam “mal”, ou seja, não deixam à imaginação “tempo para trabalhar a matéria”. Neste ponto incluem-se inicialmente as águas claras e as águas brilhantes; com um pouco mais de profundidade estaria a água anual, “como uma água que vai da primavera ao inverno e que reflete facilmente, passivamente, levemente, todas as estações do ano245”. E logo, o poeta, em profundidade, depara-se com a água viva, “a água que renasce de si, a água que não muda, a água que marca com seu signo indelével as suas imagens, a água que é um órgão do mundo, um alimento dos fenômenos corredios, o elemento vegetante, o elemento lustrante, o corpo das lágrimas246”. Para a imaginação poética, uma água

242 CHEVALIER, Dicionários de símbolos, p. 15. 243 Ibid., p. 16.

244 Ibid., p. 16. O grifo é nosso.

245 BACHELARD, A Água e os Sonhos, p. 12. 246 Ibid., p. 12.

“preciosa” torna-se seminal. “Uma gota de água poderosa basta para criar um mundo e para dissolver a noite. Para sonhar o poder, necessita-se apenas de uma gota imaginada em profundidade. A água assim dinamizada é um embrião; dá à vida um impulso inesgotável247”.

Para Eliade, as águas simbolizam a totalidade das virtudes, a “matriz de todas as possibilidades de existência248”. Elemento que representa, por excelência, o indiferenciado, o virtual, a substância primordial de onde tudo nasce e para onde tudo volta – “por regressão ou cataclismo249”. As águas existirão sempre, mas nunca sozinhas. São sempre germinativas, residindo em sua essência à virtualidade de todas as formas. Torna-se um símbolo de vida – a “água viva”. “Rica em germes, ela fecunda a terra, os animais, a mulher250”. Desse modo, o simbolismo das águas está presente em todo o ciclo vital, representando vida, morte e renascimento.

Os mitos cosmogônicos nunca tinham como ponto de origem um símbolo da Terra, porque as águas é que “precedem e suportam qualquer criação, qualquer ‘construção firme’, qualquer manifestação cósmica251”. Em povos de todos os continentes, é comum a mitologia descrever a origem do gênero humano ou de uma raça particular como derivados da água. Além disso, a idéia fundamental é a de que a formação da matéria proveio das águas – hilogenia.

A água como substância mágica, medicinal, rejuvenescedora, as fontes da juventude, do amor e a “água da vida”, são fórmulas míticas de uma mesma realidade metafísica e religiosa. “Na água reside a vida, o vigor e a eternidade252”. Na dimensão mitológica, a água cura porque “refaz a criação” e também pela sua propriedade de absorver o mal “graças ao seu poder de assimilação e de desintegração de todas as formas253”. Logicamente, a “água da vida” não é acessível a qualquer um.

[Esta água] está guardada por monstros. Acha-se em territórios de difícil penetração, na posse de demônios ou divindades. O caminho para a sua origem e a sua obtenção

247 Ibid., p. 10.

248 ELIADE, Tratado de História das Religiões, p. 153. 249 Ibid., p. 153.

250 Ibid., p. 153. 251 Ibid., p. 155. 252 Ibid., p. 157. 253 Ibid., p. 158.

implicam uma série de consagrações e de ‘provas’, exatamente como na busca da ‘árvore da vida’. 254

Em se tratando de vida espiritual, a água também aparece como símbolo da sabedoria, porque não tem contestações. “É livre e desimpedida, corre segundo o declive do terreno255”. É a medida, “pois que o vinho forte demais deve ser misturado com a água, mesmo em se tratando do vinho do conhecimento256”. Para os babilônicos, nas águas também reside a sabedoria: os oráculos, muitas vezes, estão localizados próximos à água. Fontes e espelhos d´água também revelam propriedades oraculares. Outras vezes, os profetas bebiam água de fontes sagradas ou misteriosas, o que lhes conferia seu poder.

“Na mitologia guarani, a água é tida como símbolo de vida, sabedoria e moderação257”. Para Prezia, o grupo tupi - tupinambá, tupinikim, guarani, etc. - tinha uma grande ligação simbólica (e afetiva) com a água, sendo esta uma referência para a escolha das áreas de ocupação258.

Para os Tupis, Mara, a filha do cacique, engravidou durante um sonho e sua filha Mandi morre ainda muito pequenina. Ao derramar suas lágrimas e seu leite sobre o túmulo da filha, desejando que a mesma renascesse, brota, um dia, um arbusto de mandioca. Assim, originou-se o principal alimento indígena. Na mitologia Maué, são as lágrimas dos amigos do alegre e bondoso Aguiry que deveriam regar o local onde foram enterrados os olhos do menino. Deste local surgiu uma planta nova, que tem as sementes em forma de olhos, o Guaraná.

Na mitologia dos índios Kamaiurá, que fazem parte do tronco Tupi-Guarani259 (o mesmo dos primeiros habitantes de São Paulo), a água e seus elementos aparecem na origem dos homens, como símbolo de origem e fim da vida. Mavutsinim, o Primeiro Homem, transformou uma concha da lagoa em uma linda mulher e casou-se com ela. Com relação ao primeiro Kuarup, a festa dos mortos, os troncos de árvore que tomaram

254 Ibid., p. 157.

255 CHEVALIER, Dicionários de símbolos, p. 16. 256 Ibid., p. 16.

257 Benedito A. PREZIA, op. cit. p. 144.

258 O simbolismo da água para os tupis será melhor abordado em capítulos posteriores. Vale aqui a

observação de Prezia quanto às áreas de ocupação.

vida foram, ao final, retirados da terra e lançados ao fundo das águas, onde permaneceriam para sempre. Em outro mito, existe a canoa encantada que ao tocar a água, cobre-se com muitos peixes, dos mais variados tipos260. E as mulheres Iamuricumás lançaram suas crianças ao rio e estas se tornaram peixes261.